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An. Col. franco-brasileiro sobre a clínica com bebês Jan. 2005
Saber científico e saber inconsciente
Claude Boukobza
RESUMO
Este estudo pretende discutir a partir do trabalho psicanalítico com bebês, como opera a intervenção com a palavra em sujeitos que ainda não podem articula-la.Neste sentido são apresentados fragmentos clínicos que permitem colocar questões tais como: de que natureza é o saber que a criança pode ter do que se passou "ïn útero"?; De que maneira a divulgação possibilitada pelos recursos tecnológicos do saber científico (ultrassons, exames intrauterinos, etc.) pode influenciar o que se passa na relação mãe-filho?
Estes dois termos parecem a priori antinômicos – e, na história da psicanálise de crianças, por muito tempo o foram. Com efeito, o único instrumento da intervenção psicanalítica é a palavra, e os bebês não falam, não nos levam a falar dos processos linguageiros propriamente ditos. Contudo, o processo analítico seguramente tem um efeito, nos dias de hoje amplamente reconhecido nos distúrbios do lactente: distúrbios do sono, da alimentação, da relação, etc.
Como age a linguagem sobre um sujeito que não pode ainda articulá-la? Esta questão é o nó górdio dos analistas que atendem crianças pequenas. Vou tentar num primeiro tempo abordá-la, para em seguida questionar a qual tipo de saber recorremos quando falamos de psicanálise com os bebês.
Tomemos um primeiro exemplo, de uma criança de onze meses, Bruno, que me foi trazido por sua mãe por distúrbios do sono: desde os quatro meses, ele tem muita dificuldade para dormir e quando dorme desperta várias vezes por noite berrando, parecendo muito angustiado. Os pais não agüentam mais e estão muito preocupados com seu filho.
A mãe me conta que tudo começou muito bem, que Bruno muito cedo teve um bom ritmo de sono à noite, "uma criança ideal", diz ela, "para uma mamãe de quarenta anos". Esta criança satisfazia, pois, em todos os pontos, seus pais maravilhados. Mas, aos quatro meses, teve uma bronqueolite que necessitou de cuidados e de um longo tratamento de fisioterapia respiratória. Os distúrbios do sono começaram com a bronqueolite e não cessaram desde então. Tentamos trabalhar em sessão esta ligação entre dificuldades respiratórias e sono, mas Bruno não parece de modo algum interessado. Fico sabendo, na segunda sessão, que esta primeira entrevista pouco efeito teve. Em desespero de causa, recorri a um de meus "recursos clássicos"e perguntei para a mãe se algo aconteceu aos quatro meses de gestação. Vem então, para a mãe, um fluxo de associações bem misturadas, que vou reordenar para fins de exposição.
No quarto mês de sua gravidez, então, a mãe teve o que ela chama de "síncope"(um desmaio), e foi transportada ao hospital onde recebeu injeções de morfina. Na seqüência, ela – que era uma mulher extremamente ativa – teve que passar todo o resto da gravidez deitada, sob pena de perder o filho. Verbalizo para Bruno o que ele pôde sentir de angústia ao perceber o contato com o corpo vivo e continente de sua mãe bruscamente rompido ou modificado por ocasião deste desmaio e deste tratamento. (Pode-se também interrogar os efeitos da morfina sobre o feto. Na época, interroguei a este respeito um grande professor de Neonatologia, que me respondeu: "Mas minha senhora, só a senhora poderá nos dizer isto!"). Bruno interrompe então sua brincadeira, prende seu olhar no meu e me escuta muito atentamente. A mãe acrescenta que o único modo de acalmá-lo durante suas angústias noturnas é colocando a palma da mão contra seu crânio e acariciando-o por um momento assim.
Ela continua a me explicar que tem dois outros filhos maiores, nascidos de um casamento anterior. O pai deles morreu em um acidente de carro, diz ela com um tom pouco convencido. "Na realidade, não pedi uma investigação, mas acho que se tratou de um suicídio. Este homem era um doente mental grave e os últimos anos de nossa vida em comum foram muito difíceis. Em seguida, tive que me ocupar sozinha de meus dois filhos e ao mesmo tempo continuar um trabalho que me requisitava muito. Nunca tive tempo de me questionar sobre tudo isso. Somente quando fiquei imobilizada para esta terceira gravidez é que pude tomar o tempo de refletir sobre isso. Na realidade, eu só pensava nisso", acrescenta ela, pensativa.
Explico então a Bruno que o pai de seu irmão e de sua irmã não era o mesmo que o seu, que eles tinham tido um pai que morrera e que, mesmo se sua mãe pensava muito nisso quando estava grávida, o pai dele estava bem vivo e presente e que ele mesmo não tinha nada a ver com esta história e com este morto.
Peço então para ver o pai e a terceira sessão se passa com Bruno e seus pais.
Os resultados foram espetaculares, como ocorre freqüentemente com os bebês, é preciso dize-lo. Bruno já dormia melhor desde a segunda consulta e a melhora foi totalmente consolidada ao cabo da terceira.
O que é que foi operante? O fato de que a mãe ela mesma tenha podido falar de tudo isso e aí colocar um pouco de ordem? Não se pode, contudo, pensar que ela tenha podido resolver e ultrapassar em tão poucas entrevistas as dificuldades vividas com seu primeiro marido. O fato, sem dúvida, de que uma ligação significante tenha sido feita entre elementos que vinham atropeladamente e de modo muito confuso: a síncope da mãe, a bronqueolite da criança, sua angústia diante do adormecimento e que, por outro lado, a história dele tenha sido separada do fantasma deste morto que não lhe pertencia? Como Bruno não pode nos dizer nada sobre isso, só podemos formular hipóteses. Durante as entrevistas, ele brincava aos pés de sua mãe ou de seus pais, sem solicitar contato corporal com eles. O trabalho se fez no espaço da relação mãe-filho, mas Bruno reagia a algumas de minhas palavras de modo muito autônomo.
Em A relação de objeto (1954-55), Lacan se interroga sobre o modo como a relação pré-genital pode ser apreendida. Estas experiências, diz ele, são preparatórias para a relação edípica, mas não podem ser apreendidas no só-depois senão a partir da articulação significante do Édipo. "As imagens, as fantasias que formam o material significante da relação pré-genital vêm elas mesmas de uma experiência que se fez no contato do significante e do significado". "É só-depois que este passado é captado e que se estrutura esta organização imaginária. Os objetos dos diferentes períodos, oral, anal, são já tomados por outra coisa do que o que são. São objetos que já foram trabalhados pelo significante e que aparecem submetidos a operações cuja estrutura significante é impossível extrair". Os termos "trabalho", "operação"parecem-me aqui particularmente importantes e recobrem isto a que assistimos nas terapias bem precoces. É este movimento que acompanha ou que freia o trabalho analítico. O que explica, ao mesmo tempo, sua eficácia e a rapidez com que geralmente ele opera: ele não faz senão recolocar em funcionamento um processo potente que simplesmente tinha travado.
É inegável que a questão do que tinha podido se inscrever no corpo de modo não somente pré-genital, mas aqui pré natal permanece misteriosa e que a resposta do médico à psicanalista pode deixar perplexo. Sem dúvida a criança sabe alguma coisa disto, que ela vive in utero, mas de qual natureza é este saber do qual a intervenção psicanalítica teria por função desembaraçá-la?
Para tentar articular esta questão, que me parece estar no cerne da intervenção psicanalítica junto aos bebês, gostaria de tomar três exemplos, ao mesmo tempo muito similares, mas diferentes.
A Sra. K. traz Julia, sua filhinha de três anos, por distúrbios do sono e dificuldades de relacionamento na escola de educação infantil na qual ela acaba de entrar. Ela me explica de saída que deu à luz filhas gêmeas, Julia e Maud, mas que Maud faleceu no hospital, pouco após seu nascimento, devido a um erro médico. Pelo menos, era do que estava persuadida a mãe. Ela conta tudo isso nos mínimos detalhes diante de Julia, que perambula pelo consultório, com um ar sonhador e alucinado. "Aliás, Julia procura sua irmã na escola, como procurava na creche, ela chama pela Maud", diz a mãe. "Eu tive que explicar tudo à professora e à diretora. Será que devo falar disso com os outros pais?"O fato de ter perdido uma filha e a reivindicação contra a equipe médica parecem constituir para a mãe uma razão de ser, uma identidade. O pai, tímido e silencioso, parece extenuado pelo sofrimento e pela busca de sua mulher. Qual lugar para Julia nesta história? E o que busca ela? Sua gêmea que teria crescido longe dela? Ou a razão de ser de sua mãe? Ela sozinha não pode satisfazer sua mãe, falta uma metade, bem mais interessante que ela mesma, já que pode mobilizar os pediatras, os psis, até mesmo os homens da lei. O objeto fálico da mãe é Maud, a ausente. E Julia não pode existir senão como apêndice desta criança morta, como faltante de sua gêmea. Mas a quem Maud faz falta? Pode-se mesmo falar de "irmã", já que nenhuma relação viva pôde se construir, exceto talvez in utero? A mãe pensa que Julia tem ou teve uma irmã; Julia, por sua vez, tem um fantasma que ela não pode largar sob pena de não mais interessar sua mãe.
A Sra. L. me traz sua filhinha, Laura, de seis meses, para pedir uma opinião. Ela me explica que teve, ela também, filhas gêmeas, mas que a pequena Hélène, que sofria de uma cardiopatia grave diagnosticada in utero, foi operada muito cedo após o nascimento, mas falecera subseqüentemente a esta operação, sem que Laura a tivesse visto. A Sra. L., naturalmente, sofreu com esta provação, mas, diz-me, não chorava na frente de Laura: "Ela me alegrava, era ela que me fazia agüentar. Eu só tinha vontade de chorar quando ela dormia". Esta menina se desenvolveu muito bem, tinha uma boa relação com seu entorno, sorria com facilidade. Contudo, recentemente a mãe perguntou ao pediatra: "O senhor acha que ela sente falta da irmã?""Sim, certamente, ela lhe faz falta", respondeu o pediatra. Ela quer também minha opinião. Como tento lhe explicar que uma irmã que ela não viu não pode lhe fazer falta do mesmo modo que faz falta para os pais, que as palavras não podem ter o mesmo sentido quando se trata de um lactente e de um adulto, que possivelmente um vestígio da presença desta irmã com quem ela compartilhou a matriz se tinha inscrito, mas que, quanto a saber o que era o inconsciente de um bebê, não se estava ainda neste ponto, a mãe retruca, como uma prova: "Desde que o pediatra me disse isso, ela não sorri mais". Era o que motivava a consulta. Vê-se bem aqui como o que operou não foi tanto a falta direta de sua irmã, tampouco a tristeza da mãe, mas o efeito da palavra do médico - ouvida como um oráculo pela mãe - sobre esta última e sobre sua relação com sua filha.
Recebo o pequeno Pierre, de quatro anos, devido a dificuldades de relacionamento com sua irmã gêmea, Pauline. Um dia, em sessão, quando eu o atendia já há algum tempo, Pierre tenta escrever números, que parece já conhecer. Mas ele só pode fazer um 2 desenhando primeiramente um 3 e transformando-o em seguida em 2. Minhas tentativas pedagógicas fracassam lamentavelmente. Como relato minha surpresa para a mãe, esta me diz: "Como, a senhora não sabe? Quando fiquei grávida, me anunciaram primeiramente que eu estava esperando gêmeos, isso foi um pouco difícil, mas me habituei à idéia. Depois, o médico que disse que seriam trigêmeos. Isso eu não pude enfrentar e nós tínhamos decidido, meu marido e eu, com a morte na alma, uma interrupção de gravidez. Quando me preparava para sofrer esta intervenção, a ecografia mostrou que um dos ovos tinha sido eliminado espontaneamente. É a isto que eles devem suas vidas. Aliás, o pediatra sempre me diz, se Pierre sonha com bruxas, caldeirões, etc., é porque ele pensa ter devorado este terceiro bebê".
Eis aqui um saber que permaneceu inconsciente para a criança, e sem dúvida barrado pela mãe – como demonstra sua surpresa diante do fato de não saber, embora ela não me tivesse dito – que se manifesta na dificuldade de aprendizagem e que poderá ser trabalhado em análise.
Podemos nos perguntar se o saber sobre os bebês e os embriões, ao ser difundido de forma tão maciça e, sobretudo, objetiva, não teria efeitos danosos, sem dúvida sobre a própria criança, certamente, em todo caso, sobre a relação mãe-filho. Ele pode impedir que o recalcamento se faça, como no caso de Julia, recalcamento a partir do qual um saber poderá se construir subjetivamente para e pela criança ela mesma. O lugar e a função do "psi"na pólis e na instituição médica é aqui bastante delicado. Da mesma maneira que as campanhas alinhadas sob a bandeira "O bebê é uma pessoa"foram importantes e trouxeram uma nova maneira de considerar a criança pequena como um sujeito e uma nova maneira de se dirigir a ela, sem que um retrocesso seja possível, nem desejável, assim também a difusão maciça e objetivante de um saber ainda balbuciante ocasionou confusões entre verdade científica e verdade subjetiva, entre saber consciente e construção da fantasia. Talvez seja necessário reconsiderar e aperfeiçoar esta necessidade de tudo dizer.
Sobre a autora: Claude Boukobza é psicanalista, membro do Espace Analytique de Paris, trabalha na Unidade de Acolhimento Mães-Bebês de Saint Denis.