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ISBN 85-86736-06-6 versión
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An. 3 Col. LEPSI IP/FE-USP 2002
Escolarização e subjetivação de crianças em estruturação psicótica - um trabalho transdisciplinar
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Ilvo Fernando Port 2
Trata-se aqui, de uma pesquisa em que psicanalista e educador trabalham de forma transdisciplinar e interinstitucional, nos processos de subjetivação e de escolarização em classe de educação infantil de escola regular, de uma criança em estruturação psicótica. Tive a idéia de realização desta pesquisa a partir das freqüentes demandas de educadores envolvidos com casos de inclusão educacional.
Estas demandas davam-se em razão do estado de perplexidade daqueles, causado tanto pelos efeitos imaginários do diagnóstico de Psicose, quanto pelo confronto com a diferença radical da criança em estruturação psicótica, devido a sua não sujeição à lógica fálica (Calligaris, 1989), própria das neuroses e que orientou a formação profissional dos educadores. Esta perplexidade, engessa sua espontaneidade impedindo-os de sentir, de pensar e de ter idéias e portanto de perceber as possibilidades, fazendo-os sentirem-se totalmente desautorizados para exercer sua função.
Diante destas demandas eu recuava, pois considerava que meu campo de pesquisa era a clínica, e não a educação, e portanto, me sentia impotente para responder as demandas prescritivas, ao mesmo tempo em que achava que respondê-las diria de uma posição de mestria avessa a psicanálise (Lacan, 1992). Em outros momentos, tentava responder sua demanda, ser onipotente.
Fui percebendo que a educação também dizia respeito ao meu campo de pesquisa, já que, especialmente em relação às crianças em estruturação psicótica (Jerusalinsky, 1997 e Kupfer, 2000), ela pode ter um papel extremamente importante no processo de subjetivação. A necessidade de uma aproximação sistemática com os educadores foi ficando cada vez mais clara.
No caso Fabio, de oito anos de idade, em atendimento psicanalítico desde 1998, tenho encontrado algumas vias alternativas à onipotência e à impotência.
Sua mãe disse que ele não falava, mas ele falava. Porém, sua fala tinha problemas - era ecolálica, e por vezes sintagmática - por exemplo, enunciava o texto de uma propaganda de TV, sem sentido aparente para o contexto do momento - expressava-se de forma aparentemente descontextualizada no tocante à entonação afetiva - falava como um "robozinho"- e à significação – falava, por exemplo, "cadeira" para expressar que estava brabo. Falava somente na terceira pessoa.
Seu esboço de brincar, restringia-se a ficar observando e manipulando aparelhos elétricos e fazer montagens com cubos de encaixe, em seqüências lógicas que envolviam combinações de cores e posições geométricas. "Passeava" pelos brinquedos, porém, sem exercer a prática significanteque transforma o brinquedo em brincar (Rodulfo, 1990). Assim, as sessões se repetiam numa espécie de montagem imaginária, sem que Fabio tivesse algum tipo de troca simbólica comigo.
Em reuniões quinzenais, a professora fala do processo de escolarização e suas dificuldades - mínima participação em atividades compartilhadas com colegas, circulação sem limites por alguns locais da escola e a reação com gritos e agitação motora a situações de mudança. Eu, por outro lado, tento fazer hipóteses, a partir dos relatos da professora e da leitura metapsicológica (Caon, 1999) - do que podem derivar e de que significações podem haver em relação à subjetivação de Fabio.
Fomos construindo, assim, um trabalho sistemático que identifico com o conceito de transdisciplinaridade, segundo o qual, "o pesquisador se esforça em pôr problema para outros pesquisadores". (ibidem, p. 66) Ao saírem dos lugares da impotência e da onipotência, evitando que se dê uma relação hierárquica. ambos se autorizam e reconhecem saberes parciais, limitados, colocando-se a pensar e ter idéias.
O autorizar-se dos educadores possibilitou que pudessem, a partir de seu estilo, sentir o tempo de permanência na escola, viável para Fábio e para a comunidade escolar, privilegiando sua participação em atividades que exigissem menos capacidade simbólica, como a hora do recreio, momentos de brincadeiras variadas e de atividades livres. Jerusalinsky (1997, p.87) coloca da importância de se pensar também nos outros alunos, pois o "confrontar-se com formas tão estranhas e destoantes de sua própria imagem – situada num semelhante - coloca em questão os pontos de sua identificação imaginária", podendo trazer prejuízos à sua subjetivação, pois "a criança até a puberdade está submetida aos riscos da ruptura do espelho no qual se reconhece". Acrescento a isso que a professora respeite também, sua própria capacidade de investir, para que possa reconhecer possibilidades na inclusão, e não um fardo a carregar.
Jerusalinsky (1997) aponta a necessidade de que no ambiente escolar hajam professores que sejam capazes de estender a capacidade metafórica dessas crianças. Nesse sentido, o rumo do trabalho da professora tem sido capturar essas ações delirantes (Idem, 1984) em atividades regradas pelo Outro educacional. A criança em estruturação psicótica encontra-se em uma colagem em relação ao Outro primordial, que não sofre um corte pois a função paterna apresenta falhas. Assim, se no tratamento psicanalítico tratamos de reconhecer significantes privilegiados no mito familiar, que possam operar um corte e a ao mesmo tempo algo de uma costura, proporcionando efeitos de "inscrição" (idem, 1996, p. 95), na escolarização, a oferta de significantes da cultura – como a co-memor-ação das tradições, jogos, cantigas e brincadeiras, recursos próprios da especificidade do educador, propondo deslizamentos de sentidos, pode oferecer diferentes possibilidades de operar esse corte e costura. Torna-se possível a apresentação da Lei, que de alguma forma fracassa no meio familiar em que a criança convive.
Acredito que a captura, de que falamos, produza esse efeito de extensão - aquilo que antes era uma ação delirante, desliza agora para cena uma tem nome, com sentido e formas de gozo compartilhadas e regradas e portanto passíveis de serem adiadas. De uma relação de espelhamento, própria da relação com o Outro primordial, desliza para uma relação de especularidade (Idem, 1984), em que a imagem que se devolve à criança é diferente da pura reprodução imaginária de uma mesma significação engendrada pela mãe - é, agora, carregada de significações articuladas à uma filiação à cultura.
Enquanto a educadora colocava como problemas as ações delirantes de seu aluno, que a impediam de ter qualquer referência de como trabalhar com ele, eu lhe devolvia hipóteses de sentido para essas ações, da lógica que estava em jogo, e outros problemas, por exemplo, o de como agir frente a essas hipóteses em sala de aula - disso ela sabe muito melhor do que o psicanalista. A partir daí, ocorre uma certa quebra da perplexidade, algo como um efeito de significante mestre – S1 e as coisas se colocam a andar novamente.
Aponto agora, algumas das situações e dos encaminhamentos que encontramos na tentativa de proporcionar essa extensão da capacidade metafórica:
- Fabio não suporta ouvir o não, quando isso ocorre, ele se agita, grita. Digo à professora, que aceitar o não pressupõe uma capacidade de simbolização que justamente é o que tem problemas nas psicoses, o que é um paradoxo, pois ao mesmo tempo o não, os limites, podem ser organizadores. Devolvo-lhe a questão de como colocar esses limites de uma forma indireta, sem que operem como injunção, que sejam suportáveis para ele. Ela começa a encontrar alternativas: não diz, por exemplo, não pode subir nas mesas, mas sim se tu subires na mesa, estraga os jogos. Ele passa a subir apenas nas mesas em que não há crianças jogando;
- Está, a todo instante, passando cuspe pelo próprio corpo, pelos objetos e móveis da escola. O pedido de que pare, parece não ter efeito. Tentamos trabalhar com a idéia de colocar a lei, porém partindo das ações delirantes apresentadas por Fábio, reconhecer sua importância, enquanto defesa contra a invasão do real - talvez o lambuzar-se tenha algo de construção de sua imagem corporal (Dolto, 1984), no sentido de construção de superfície, como coloca Rodulfo, (1990). Propomos, como objetivos da educação, um deslocamento desse lambuzar-se com o próprio cuspe, algo próximo do puro real corpóreo, para uma atividade compartilhada e reconhecida pelo social, que agora tem nome, passível de ser regrada, simbolizada, enfim;
- Na reunião seguinte, a professora diz que a tentativa não deu certo - ele começou a gritar e pedir que ela ficasse junto dele, porém ela não podia, pois ele estava na porta da sala de aula e a atividade era no pátio da escola. Falo de sua falta de referências simbólicas, que lhe torna necessário um mapeamento real e imaginário da situação, para não sentir-se num total desamparo. A mudança da sala para o pátio deu-se sem a sua participação ou aviso prévio, pois ele chegava um pouco mais tarde. Assim, só lhe restava ficar na porta da sala gritando pela professora. Usei como exemplo a metáfora de um jogo de Amarelinha, em que a maioria das crianças consegue pular de uma casa para a outra, mas que, para a criança psicótica, esse vazio entre uma e outra pode significar um abismo terrível, e que a questão é estar atento para colocar casas extras entre uma e outra, tantas quantas forem necessárias. Porém, que casa colocar e como, ou que significantes ou situações acrescentar aos que ele apresenta na cena escolar, são questões para as quais a educadora está melhor instrumentalizada;
- O ligar e desligar as luzes, que ele realizava compulsivamente, passam a ser considerados sinais para o início ou final da dança da vassoura. Fabio e seus colegas gostam e participam da cena, que se repete em outras ocasiões;
- Estava interessadoem relógios e a todo instante queria pegá-los e perguntar "que horas são no relógio".A professora trouxe diferentes tipos de relógios (de brinquedo, de papel, de diferentes cores, tamanhos; entre as diferentes formas de explorá-los que propôs, trouxe historinhas e brincadeiras. Uma delas era a de "gato e rato" - trata-se de um círculo composto pelos alunos de mãos dadas, em que o rato está dentro e o gato quer entrar para pegá-lo. Mas tem de ser pela porta, em que há um relógio, e que só abre na hora certa. Fábio é a porta, e tem um relógio de papel pendurado no peito. Nestas condições, ele participa;
- Da recusa ao contato físico, passa correr e empurrar as crianças; acha graça quando estas reclamam ou choram, assim como quando a professora lhe pede para parar. Ela faz a cena deslizar para um brincar de Lex, ou Pega-Pega. As crianças passam a correr atrás dele para pegá-lo, a cena se constitui;
- No jogo de Bingo, a professora pede que ele "cante" as peças; na chamada, que ele leia os nomes dos alunos. Estes se surpreendem pelo fato de ele saber ler. Ela aproveita a situação para falar das diferenças (eles perguntam porque ele é tão diferente dos demais) entre as pessoas, de como têm habilidades diferentes e podem se ajudar;
- Os educadores planejam uma visita ao jardim zoológico com os alunos, querem que Fábio possa ir junto, mas irão de ônibus. Ficam em dúvida de como será sua reação, se não "entrará em crise", com tantas mudanças. Irão, então, com um carro particular para, caso isso ocorra, uma professora trazê-lo de volta;
- Repete parte de uma propaganda de TV, em que o ator diz – meu nome é Silva – soletrando em seguida - S – I – L – V – A - Sua professora diz, no mesmo tom de voz – meu nome é Souza – S – O – U – Z – A – Souza é o sobrenome de Fabio. Ela propõe um deslocamento, que acerta o alvo da referência paterna em cheio. Fabio passa a repetir a propaganda, mas agora com seu sobrenome, com todas as conseqüências estruturantes que podem daí advir.
Atualmente, Fábio tem participado de um número maior de atividades, falado mais e com um sentido mais articulado ao contexto, respondendo perguntas e fazendo comentários sobre os acontecimentos a seu redor. Começa a aceitar combinações, tem brincado com uma maior simbolização, aceitado os contatos físicos e afetivos, circulado melhor por outros espaços e seu olhar para as pessoas está com uma expressão mais significativa. Com sua melhor integração, a comunidade escolar têm reconhecido nele uma criança com possibilidades e oferecido espaços novos para sua participação, como na informática e na hora do conto. Amplia-se em seu redor uma rede de relações especulares – talvez uma diferença da escola regular em relação à especial, seja a de que naquela, essa rede de relações especulares seja maior, pois os demais alunos, por sua posição subjetiva, ajudam em sua sustentação, o que na escola especial pode ter uma certa limitação, ficando essa sustentação mais restrita aos educadores e terapeutas - a comunidade se reconhece em Fábio e ele se reconhece na comunidade.
Referências Bibliográficas:
CAON, J. L. (1999). O pesquisador psicanalítico e a pesquisa psicanalítica. In: J. A. T. MACHADO (org.). Filosofia e Psicanálise. Ciência, pesquisa, representação e realidade em psicanálise – um diálogo (pp. 35-73). Porto Alegre, RS: EDIPUC RS.
CALLIGARIS, C. (1989). Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.
DOLTO, F. (1992). A imagem inconsciente do corpo (N. M. Kon e M. Levy).São Paulo, SP: Perspectiva.
JERUSALINSKY, A. (1984). Psicanálise do autismo.Porto Alegre, RS: Artes Médicas.
________ (1996). Considerações preliminares: a todo tratamento possível de uma criança. Amarelinhas - À margem da infância – um estudo transdisciplinar da psicose e do autismo, 3, 95-114.
________ (1997). A escolarização de crianças psicóticas.Estilos da Clínica - revista sobre a infância com problemas. 2 (2), 72-93.
KUPFER, M. C. (1999).A psicanálise na clínica da infância: o enfrentamento do educativo.In: A psicanálise e os impásses da educação. Anais do I Colóquio do Lugar de Vida (pp. 97-103).São Paulo, SP: USP.
_________ (2000). Educação para o futuro. Psicanálise e educação. São Paulo, SP: Escuta.
LACAN, J. (1969-70).O avesso da psicanálise. O seminário – livro 17 (A. Roitman, Trad.) Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 1992.
RODULFO, R. (1990). O brincar e o significante. um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.
1 Pesquisa de mestrado, desenvolvida no PPGEDU da UFRGS, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Maria N. Folberg.
2 Psicólogo e psicanalista.