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ISBN 85-86736-06-6 versión on-line

An. 3 Col. LEPSI IP/FE-USP 2002

 

"Vista bonita" A cerca dos entraves ma direção do processo educacional

 

Ieda Prates da Silva 1

 

 

Em um universo institucional onde se imbricam as questões educacionais, psíquicas e sociais, a escuta psicanalítica tem possibilitado que se interrogue, no interior da instituição, que sujeito é este, destinatário da educação? Parece-nos tratar-se de um sujeito que está bastante apagado por trás das vestes da organicidade (patologias, deficiências), da fragilidade das funções parentais (famílias "desestruturadas", violentas, negligentes) ou da crueza da miséria (extrema pobreza).

Este apagamento do sujeito vinculamos ao conceito de desamparo, na acepção que nos traz Alfredo Jerusalinsky2: desamparo aqui significa não a falta de amor ou de cuidado, mas a falta de um significante que impeça o sujeito de ser subsumido no real. Então, refere-se à inexistência ou insuficiência de uma inscrição, isto é, de uma marca que outorgue a esta criança a possibilidade de situar-se em relação ao mundo e a si própria. Uma marca que lhe venha do Outro e que recorte seu corpo. Aqui nos serviremos das palavras de Jerusalinsky, quando nos diz que "... o discurso materno é aquele que se exerce sob a forma de recortar o corpo da criança, recorte que se opera dizendo não a esses pequenos objetos cuja extração, cuja separação, será capaz de um modo imediato e direto de provocar um esvaziamento ou uma falta." (Jerusalinsky, 1997, pg.78)

É o registro da falta, à nível simbólico, que nos impede de sermos engolfados pelo real, seja este de pura carne, pura deficiência ou pura miséria. É nesse sentido que a realidade do aluno é tomada na sua concretude factual: real revestido de um imaginário cada vez menos sustentado simbolicamente. Pois o simbólico é aquilo que provoca uma abertura – de sentido, de possibilidades – enquanto o registro imaginário prende, fixa o sujeito numa cena que passa a valer como verdade. É assim que as dificuldades econômicas, sociais, familiares, ou a deficiência orgânica, passam a justificar todos os problemas que a criança ou adolescente apresente na escola. Justificativa que vem à priori, tamponando qualquer possiblidade do professor interrogar-se pelo seu ato. Aliás, esta explicação totalmente calcada na realidade do aluno, justifica a inexistência do ato educativo. Pois, se a criança não está em condições de aprender, para quê (e para quem) o professor irá ensinar? Discurso que está bem marcado no parágrafo que transcrevo a seguir: "Pontuamos que o gozo assola as instituições escolares, principalmente aquelas que fracassam em ensinar aos alunos de baixa renda: gozo que atravessa o discurso dos educadores através de queixas, de acusações, de culpabilizações às condições econômicas, familiares e sociais dos alunos e que, ao mesmo tempo, os deixa paralisados, conduzindo à cristalização e à repetição de seus discursos."(Almeida & Legnani, 2000, p.108)

Quero destacar aqui o lugar de não-sujeito não só do aluno, mas também do professor neste processo. O professor não reconhece nem seu ato, nem o ato da criança, diluídos que estão neste assujeitamento onde não há singularidade reconhecida, em que todos são vítimas de uma fatalidade inexorável, só restando o sentimento de impotência do lado do educador e a versão de fracasso do lado do aluno. Não há aqui uma possibilidade de responsabilização pelo ato de ensinar, que provocasse o desejo pelo ato de aprender. Trata-se de uma inversão na direção do processo educativo, onde as demonstrações de aprendizagem do aluno é que justificariam o ato de ensinar por parte do professor. Isto é devidamente enfatizado pelas autoras acima citadas, quando destacam que a tarefa educativa seria justamente a de "ensinar para que houvesse, como efeito, a possibilidade do aprender." (Almeida & Legnani, 2000, p.105)

Esta desresponsabilização, longe de provocar alívio no professor, é geradora de um mal-estar crônico e que parece mais acentuado na escola pública. Evidentemente a função do educador se legitima e se dignifica no desenvolvimento de seus alunos: é aí que ele cresce como professor, que ele atinge um reconhecimento social. Hoje em dia, nos deparamos frequentemente com uma desvirtuação na direção desta demanda de reconhecimento, pois o professor convoca o social a reconhecê-lo não mais como aquele que ensina, mas como aquele que é vítima da impossibilidade de ensinar.

Esta posição psicologizante, na qual os traumas da vida são considerados como incapacitantes, faz com que a escola, lugar por excelência gerador de experiências ressignificadoras, fique presa ao estatuto imaginário da pura realidade fenomênica. Quando a instituição escolar é regida por este funcionamento, a falta é tomada sempre na sua dimensão de privação (do lado do aluno) e de frustração (da parte do professor), não alcançando este par a condição da castração, enquanto possibilitadora de engendrar ali lugar para o sujeito de desejo. E sabemos que a existência e o reconhecimento de um sujeito de desejo (que tem que estar ali, pungente, no aluno e no professor) é condição para que se dê a aprendizagem. É nesta medida que as pulsões, passando pelo recalcamento, mas não sucumbindo totalmente a ele, podem se transformar naquilo que Freud denominou de anseio de saber. Ou seja, a curiosidade sexual, a satisfação imediata e corporal, direcionam-se para outros fins, atingindo uma satisfação de caráter sublimatório, ao tomar contato, por exemplo, com o objeto de conhecimento ou com as atividades artísticas, esportivas e culturais que a escola pode proporcionar.

É na medida que o professor não esteja referenciado à si mesmo numa condição vitimizada, mas ao objeto de conhecimento, por um lado, e desejoso de despertar o anseio de saber do aluno, por outro (principalmente daquele aluno que parece se encontrar à beira da vida), que estará em condições de ensinar.

Para isto o professor tem que ser um tanto crítico em relação aos ideais que imperam em nosso contexto social atualmente. Se ele acreditar piamente no imperativo da imagem de sucesso e desempenho, na aparência, no acúmulo de informações como garantia de eficiência, na rapidez como indicativo de inteligência, estará de tal forma preso a ideais performáticos que dificilmente será sensível ao processo, fixando seu interesse apenas nos resultados esperados. O não cumprimento destes ideais joga o aluno numa condição de fracasso, e isto lhe cai como uma "segunda pele" que se lhe gruda de tal forma, que passa a lhe acompanhar, empurrando-o para situações de multirrepetência e/ou evasão escolar, assim também como reações agressivas.

A contribuição que quero trazer aqui diz respeito aos efeitos da ética psicanalítica nas instituições, na medida em que esta ética busca encontrar o sujeito, resgatando sua palavra, implicando-o em seu ato, responsabilizando-o por sua condição no mundo. É a partir de intervenções que levem os sujeitos desta instituição a interrogar-se sobre seu ato, que pode haver reconhecimento de sua implicação no sintoma que faz sofrer.

Nesse sentido farei um breve relato da experiência de constituição de espaços de fala, em pequenos grupos, proporcionados às diretoras das escolas municipais de Novo Hamburgo. Estes grupos ocorreram durante dois anos (1999/2000), a partir de uma queixa constante vinda dos supervisores da SMED (Secretaria Municipal de Educação e Desporto), quanto à desimplicação das diretoras em relação às suas responsabilidades, falta de capacidade de administrar situações de conflitos, não comprometimento com a direção pedagógica da Secretaria e dificuldade na condução das reuniões gerais de diretoras, tal era o nível de conversas colaterais e de sua impossiblidade de escuta. A idéia predominante era a de se contratar um curso de Relações Humanas para as direções de escolas. Propusemos como alternativa um trabalho em pequenos grupos, para o qual as diretoras e vice-diretoras seriam convidadas, reunindo-se conforme o critério de proximidade geográfica das suas escolas. Trabalhamos bastante esta idéia em reuniões internas da SMED, pois era dificil para o ambiente educacional entender uma proposta de espaços de fala, sem objetivos concretos, sem técnicas ou tarefas pré-estabelecidas: o instrumento privilegiado na condução dos grupos, seria a escuta. (Algo muito pouco palpável para o discurso pedagógico.) Mas com a discussão que se estabeleceu, venceu-se a resistência inicial e podemos propor o trabalho numa reunião geral de diretoras. Estas acolheram a idéia sem entender absolutamente do que se tratava. Receberam a proposta algumas com curiosidade, outras com desdém ou com absoluta indiferença. Foram formados cinco sub-grupos, com uma média de dezoito participantes em cada um, os quais passaram a ser coordenados por uma dupla, formada por uma psicóloga e uma colega de outra área: pedagoga, psicopedagoga ou assistente social. A idéia da dupla coordenação vinha de vários fatores: em primeiro lugar, do mito de que seriam grupos dificílimos de trabalhar, tal a resistência e a revolta de muitas diretoras; também porque considerávamos importante a interdisciplinariedade nessa intervenção institucional, tanto quanto a possibilidade de reflexão conjunta, após a realização dos grupos. Foi um exercício de alteridade e de limitação narcísica notável, de respeito ao estilo do outro e, acima de tudo, de muita aprendizagem. Além das reuniões semanais de cada dupla, haviam encontros quinzenais com todas as coordenadoras destes grupos, para discutir o trabalho, as questões e impasses surgidos, para compartilhar nossas angústias e refletirmos sobre a direção e os efeitos deste trabalho. Algumas das psicólogas tinham formação analítica, outras não. Logo se fêz necessário a busca de uma Supervisão, e ali a transferência com a psicanálise foi determinante: escolheu-se a supervisão de uma psicanalista. Passamos a ter supervisões quinzenais, o que foi fundamental na trajetória desta atividade.

As primeiras reuniões de grupos de diretoras foram um despejar de queixas, de lamentações, de comparações com as administrações anteriores, de culpabilizações ora das famílias dos alunos, ora da falta de recursos, ora do quadro de professores ou da Secretária de Educação. Porém, ao encontrarem ali uma escuta que as interrogava, não numa posição superegóica, tampouco numa posição de cumplicidade, mas num lugar terceiro, fazendo emergir a fala do sujeito submerso naquele discurso queixoso, a queixa deu lugar à reflexão, à busca de alternativas para os problemas no seu trabalho, ao questionamento sobre a função de direção numa escola e, principalmente, a que se tornassem vulneráveis e responsáveis pelos efeitos de sua fala. O que não se deu sem muitas situações de conflitos, de ameaças de desistências, de ausências de alguns membros, mas tudo isso vinha a ser trabalhado no grupo. Também se criaram momentos de identificação, de solidariedade entre elas, de trocas de experiências e de ensinamentos coletivos.

Uma dinâmica que contribuiu para o rompimento de um imaginário impregnado de competições persecutórias, foi a sistemática de realizarmos os encontros a cada vez em uma das escolas, quinzenalmente. Isto foi muito interessante e enriquecedor para o grupo, pois ao mesmo tempo que favorecia a identificação de muitos aspectos de sua realidade escolar, permitia a convivência com a diversidade de situações e com os diferentes estilos de cada uma administrar. As diferenças no grupo eram tomadas, inicialmente, como negativas e eram geradoras de conflitos e até de inimizades. Com a possibilidade de fala (e a escuta que incidia sobre ela), a inimizade foi dando lugar à divergência, sem que isto implicasse que uma diretora estava certa e a outra, necessariamente, errada. A verdade já não estava mais num único lugar, não era de um único dono.

Nossa aposta é de que os diretores e supervisores pedagógicos, na medida em que têm estes espaços continuados de fala, passem por uma mudança na sua posição subjetiva que acarrete efeitos na instituição escolar. Isto se observou, por exemplo, em reuniões das equipes diretivas com o grupo de professores, as quais, em algumas escolas pelo menos, deixaram de ser tão burocráticas ou ditatoriais (preenchidas obssessivamente com decisões administrativas, cobranças ou avisos), para ceder lugar à palavra do professor.

E só a partir desta implicação do professor é que ele pode abrir espaço para que o aluno se manifeste, desde seu lugar de sujeito; que ele pode ter esta leitura e esta sensibilidade para enxergar o que não se pode ver a olho nu. O microscópio do professor será o seu desejo, a sua aposta no que está para além da crueza da realidade a sua frente.

Parece-me que enquanto os professores não forem escutados, realmente escutados como sujeitos de seu ato, e não como vítimas ou algozes, dificilmente poderão apresentar para seus alunos o que estou chamando de "vista bonita": metáfora para dizer desta possibilidade do educador, ao olhar para uma criança com dificuldades, de enxergar ali uma beleza que está para ser descoberta, para ser lapidada.

Lembro-me de uma crônica de Nilson Souza, na Zero Hora 3, em que ele traz um diálogo entre um escultor e o cronista, admirador de suas obras. Quando este último lhe pergunta sobre o segredo de sua perícia, o escultor, com um brilho nos olhos, responde: " – A pedra pede: crava aqui que eu quero sair para fora."

É justamente isto o que de mais belo e intrigante a criança nos traz: a vida que está por vir, a surpresa do não-acontecido, do imprevisível. Enígma que se relança a cada criança que vem ao mundo, a cada novo aluno que um professor recebe.

Por isto, o professor não pode estar totalmente preso ao tempo do "é", mas deve soltar-se no "como se", para que a criança possa "vir-a-ser". O quê? Não sabemos, ninguém o sabe. Mas precisamos suportar este não-saber.

 

Referências Bibliográficas:

Almeida, S. e Legnani, V. (2000) A Idealização do Ato Educativo: Efeitos no Fracasso Escolar das Crianças das Camadas Populares. In: Estilos da Clínica – Revista sobre a Infância com Problemas, Vol.V, nº 8, pp.94-111. São Paulo: Instituto de Psicologia - USP.

Freud, S.(1910) Leonardo da Vinci e uma Lembrança da sua Infância. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XI. Rio de Janeiro: Imago, 1987.

Jerusalinsky, A.(1997) A Escolarização de Crianças Psicóticas. In: Estilos da Clínica – Revista sobre a Infância com Problemas, Ano II, nº 2, pp.72-95. São Paulo: USP – Instituto de Psicologia.

Kehl, M. R: (1990) O Desejo da Realidade. In: A. Novaes (org). O Desejo (pp.363-382). São Paulo: Companhia das Letras.

Kupfer, M.C.(2000) Educação para o Futuro: Psicanálise e Educação. São Paulo: Escuta.

Lacan, J.(1995) O Seminário, livro 4: A Relação de Objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

 

 

1 Psicanalista; Psicóloga da SMED/Novo Hamburgo; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.
2 Em palestra proferida em Novo Hamburgo: Consequências da criança ser considerada como sujeito ou como objeto da Saúde e da Educação, em 07/072001, a convite do Grupos em Intersecção.
3 Parto de Pedra, crônica publicada no Jornal Zero Hora, de 14/05/1999.