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ISBN 978-85-60944-12-5 versão

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

O sujeito refém do orgânico

 

 

Renata Guarido

 

 


RESUMO

O trabalho discute conseqüências da medicalização no mundo contemporâneo, em especial os efeitos da presença do saber médico difundido no discurso social e na escola. Como alguns destes efeitos aponta para a desresponsabilização do sujeito sobre seu fazer e seu sofrimento, e a possibilidade de um esvaziamento da dimensão simbólica/ formativa do ato educativo na atualidade. O trabalho é fruto da dissertação da autora, intitulada "O que não tem remédio remediado está": medicalização da vida e alguns efeitos da presença do saber médico na educação. (FEUSP, 2008)

Palavras-chave: Educação, medicalização, subjetividade.


 

 

Em diversos momentos dos intervalos da programação televisiva nos encontramos com propagandas de remédios não controlados por receitas: anti-gripais, calmantes naturais, reguladores intestinais, remédios anti-estresse. Por determinação da legislação vigente estas propagandas sempre terminam com o aviso: "ao persistirem os sintomas o médico deverá ser consultado". Isso remete ao fato de que o produtor do remédio fala diretamente ao consumidor, fala à sua possibilidade de se auto medicar, diríamos, de se auto controlar, antes mesmo de consultar o médico. Estratégia de marketing aplicada aos medicamentos: hoje vende-se remédio como se vende qualquer outro produto.

Mais algumas produções com as quais nos deparamos frequentemente:

"Ele não para quieto, não se concentra, anda todo o tempo na sala de aula, acho que é hiperativo"; de alguém que chega ao psicanalista e apresenta sua queixa: "Estou aqui porque tenho síndrome do "pânico"

E mais algumas vinhetas, essas são recortes de artigos que da revista Nova Escola e reproduzo aqui literalmente:

Revista Nova Escola: Novembro 1995 Dislexia: "A dislexia é uma deficiência genética e hereditária que pode ser identificada por certas alterações anatômicas no cérebro. (...) A simples observação não basta para definir o quadro de deficiência. Assim, antes de tomar qualquer atitude, o professor deve sugerir à família que procure um especialista para exames detalhados. A dislexia é uma síndrome."

Setembro 2002: "Existem mais crianças com distúrbios do que você imagina. Saiba identificá-los e encaminhá-los para tratamento. Quando um ou outro aluno tem um desempenho inferior aos demais, é fácil perceber que há algo errado. Se o problema é a comunicação, porém, vale a pena um olhar mais clínico sobre o assunto. Veja a seguir como é perfeitamente possível detectar as principais alterações nos alunos e identificá-las, para encaminhar para o tratamento mais adequado."

Novembro de 2003: "Seu aluno anda irritado, agressivo e não consegue ficar parado. Tira a concentração dos colegas, atrapalha a aula, não presta atenção nas explicações e se sai cada vez pior nas avaliações. Você até tenta controlar a situação, achando que se trata de indisciplina. É possível, no entanto, que o caso seja mais sério. Ele pode sofrer de estresse. (...) O problema é que os sintomas se confundem com mau comportamento, rebeldia ou hiperatividade. (...) Porta de entrada para a depressão, precisa ser logo identificado."

Maio de 2004: "Apesar da medicina ainda não contar com dados conclusivos sobre as formas de tratamento, o TDA é considerado um distúrbio psiquiátrico, portanto, uma doença. (...) Uma série de tratamentos vêm sendo pesquisados, mas nada se mostrou superior à associação de remédios com acompanhamento psicológico. (...) Como avaliar o comportamento da criança: Se você suspeita que seu aluno seja portador de TDA, observe-o atentamente. O distúrbio pode ser detectado segundo critérios baseados na proposta da Associação Americana de Psiquiatria. Os sintomas devem ser observados a partir dos 7 anos de idade." [em seguida dois módulos de sintomas são apresentados, a partir da reprodução da avaliação diagnóstica do DSM-IV]

Setembro de 2004: "Adolescentes: Até bem pouco tempo a indisciplina e o comportamento emocionalmente instável dos adolescentes eram atribuídos à explosão hormonal típica da idade. Pesquisas recentes mostram, no entanto, que essa não é a única explicação para a agressividade, a rebeldia e a falta de interesse pelas aulas, que tanto preocupam pais e professores. Nessa fase, o cérebro também passa por um processo delicado, antes desconhecido: as conexões entre os neurônios se desfazem para que surjam novas. Simplificando: o cérebro se 'desmonta', reorganiza partes e em seguida se "monta" novamente, de forma definitiva para a vida adulta. (...) Atividades feitas com base em um rap que a moçada adora, por exemplo, permitem que as informações sejam fixadas na memória com mais facilidade. "A música estimula o lobo temporal do cérebro e faz com que os circuitos estabelecidos com o córtex pré-frontal – região que analisa informação –sejam mais consistentes"[fala de um neurologista consultado pela revista] (...) A neurologia explica: Tudo que pode parecer estranho no comportamento dos adolescentes tem explicação neurológica."

Janeiro de 2005: "Nesta reportagem, buscamos uma explicação científica para o processo de aprendizagem. A neurociência, área da medicina que estuda o sistema nervoso, está contribuindo muito para esclarecer o que acontece com o cérebro do ser humano, desde sua formação até o envelhecimento. Com isso, ajuda os educadores a entender o que ocorre no cérebro da criança quando ela está em contato com novas informações, como ela processa essas novidades e de que forma o aprendizado se torna conhecimento para toda a vida."
Basta não? Ainda que exaustivos os exemplos dão o tom do que quero tratar aqui.

O que vemos nos exemplos trazidos aqui são, de um lado, o discurso científico sobre o organismo difundido no discurso social de forma a explicar o funcionamento humano e as causas biológicas de seu sofrimento, de outro, as formas hoje adquiridas pelo discurso capitalista: há sempre um objeto pronto a atender as necessidades de cada um, aqui eles aparecem na forma da medicação. Discurso científico e lógica do mercado, no entanto, não andam em paralelo em nossos tempos, muito pelo contrário. Pela via da produção científica se credita valor cada vez maior às técnicas desenvolvidas para solucionar as disfunções do organismo que se desregula, aproximando aqui o funcionamento humano de uma máquina (metáforas não pouco utilizadas: o cérebro associado ao computador, o corpo associado a uma máquina). E pela reprodução de um consumo irrestrito, os resultantes dessas técnicas são vendidos como bens necessários à manutenção e enriquecimento da vida de cada um.

O que estas vinhetas nos dizem é que o discurso sobre o homem e seu sofrimento está hoje dado pela idéia de que é um organismo em funcionamento que interessa, que é nele onde devemos buscar as causas do sofrimento ou os desajustes da aprendizagem. Tempos contemporâneos onde o discurso social está povoado dos enunciados da ciência, de um cientificismo que informa sobre as novas descobertas científicas, as novas técnicas desenvolvidas. No caso da medicina, tomada aqui como representante desse discurso científico, da medicina apoiada na Biologia, seu esforço tem sido o de elucidar os funcionamentos humanos considerando sua base neurofisiológica e seus determinismos genéticos.

O desenvolvimento de novos conhecimentos fundamentalmente no campo das neurociências e a produção da biotecnologia, tem conduzido a uma ampliação notável dos limites do que parece ser possível de explicar pela própria biologia, gerando a convicção de que poderia reduzir-se a ela a compreensão de tudo o que seja humano. "Neste sentido o campo das perturbações psíquicas é um dos mais eloqüentes: o sofrimento transformado em transtorno, o medo em excitação da amídala, a angústia em movimentos moleculares no interior do espaço sináptico."1

As produções científicas acerca dos seres vivos avançam desde a metade do século XIX. As teorias sobre a constituição celular, as qualidades das células e sua forma de divisão, permitiram o avanço do conhecimento sobre as condições da reprodução humana, impulsionando os estudos sobre a hereditariedade. A bioquímica e a biologia molecular deram suporte ao entendimento de que o que é vivo tem suas características e funções inscritas nos elementos moleculares e a genética procura a codificação das informações que estas moléculas carregam.

Podemos reconhecer que os novos conhecimentos biológicos que vêm sendo conquistados desde o século XIX, deram sustentação ao desenvolvimento de novas tecnologias médicas a partir do século XX, desde aquelas que permitiram um maior controle sobre as doenças (antibióticos, vacinas, etc.), sobre as condições de vida (controle de contaminação da água e do ar), sobre as condições de reprodução (controle da natalidade e técnicas de reprodução assistida), bem como tecnologias de manipulação genética e o desenvolvimento de fármacos que interferem na atividade cerebral, especialmente as drogas psiquiátricas desenvolvidas a partir dos anos 50.

As pesquisas biológicas permitiram o desenvolvimento de um conhecimento que "decifra" o funcionamento daquilo que impulsiona a vida. Por outro lado, este modelo também disseminou a idéia da possibilidade de pesquisa sobre o cérebro, seu funcionamento e seus elementos – os neurônios, as sinapses, os neurotransmissores - como a base para a descrição e entendimento de tudo aquilo que pode ser considerado manifestações humanas, patológicas ou não. Esse tipo de fundamentação biológica tem interferido nas novas produções e práticas psiquiátricas; por isso a psiquiatria contemporânea tem muitas vezes sido chamada de neuropsiquiatria ou psiquiatria biológica.

As pesquisas sobre a ação dos neurotransmissores e sua participação no funcionamento cerebral, permitiram a construção de hipóteses causais da ação destes neurotransmissores nas variações de conduta, humor e pensamento dos seres humanos. O mapeamento do código genético humano também tem como um de seus pressupostos a possibilidade de encontrar, na sequenciação e identificação genética, os determinantes de tendências de comportamento e formação de nossa personalidade.

A discussão que envolve as implicações deste tipo de fundamentação para a prática psiquiátrica não deve se reduzir a um partidarismo, ora do fisiologismo ora do subjetivismo, para debater as questões envolvidas no campo dos tratamentos e teorizações sobre o sofrimento humano. No entanto, a visão de um determinismo biológico tornou-se hegemônica atualmente, sustentando cada vez mais uma racionalidade médica que tende à objetivação dos sinais sintomáticos e ao uso de medicamentos psicotrópicos como eixo fundamental de tratamento dos sofrimentos psíquicos. (Domont De Serpa, 1998)2

A direção assumida pelas práticas psiquiátricas contemporâneas também depende da influência, sobre a atuação médica, do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM). Desenvolvido nos EUA, o Manual tem por critério, desde 1980, objetivar os sinais diagnósticos dos transtornos mentais, evitando os problemas causados pela heterogeneidade de concepções que vinham fundamentando a prática diagnóstica em psiquiatria até então. (Aguiar, 2004)

O DSM -IV é hoje referência mundial para diagnósticos psiquiátricos; entretanto, embora se tratando de um texto voltado aos profissionais da área médica, pode-se encontrar na mídia leiga a difusão dos conjuntos de sinais sintomáticos presentes em seu texto. É o que encontramos nos diversos sites sobre autismo,TDAH, sobre Transtornos Globais do Desenvolvimento e nos artigos, por exemplo, da Revista Nova Escola.

Para entender a mudança que vem ocorrendo nos últimos anos na forma de redefinição dos sofrimentos humanos cotidianos, é fundamental colocar em jogo a intersecção das novas produções científicas com os novos procedimentos diagnósticos, o desenvolvimento e marketing da indústria farmacêutica e a difusão, no senso comum, dos fundamentos biológicos do que é próprio do humano. É um fenômeno de nossos tempos o aumento monumental do uso de medicamentos psicotrópicos.

Alguns dados são ilustrativos: para os antidepressivos de última geração verificou-se, nos EUA, um aumento de prescrição (considerando o número de doses mínimas) da ordem de 1300% durante o período de 1990 – 2001. Entre tais antidepressivos encontra-se, por exemplo, o Prozac. Considerando o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade, o crescimento de prescrições dos psicoestimulantes envolvidos em seu tratamento (metilfenidato – Ritalina -) também nos EUA, chegou a quase 800% de 1990 – 2000. (Rose, documento on-line)3

Os dados americanos são alarmantes. Sabemos que o crescimento no uso de antidepressivos e psicoestimulantes em outras regiões do mundo não atinge os mesmos números que os americanos, no entanto não são pouco significativos e sabemos que acompanham a mesma tendência de enorme crescimento.

Os dados comparativos para o uso de substâncias como os antidepressivos e os psicoestimulantes no Brasil não estão disponíveis; encontramos alguns dados isolados , mas são dados parciais e pouco reveladores da situação geral do uso dos medicamentos no país. No entanto, não deixam de chamar atenção.

No site da Agência Nacional de Vigilância Sanitária divulgou-se, em 2006, dados do relatório de 2005 da Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (JIFE), revelando o Brasil como o maior consumidor mundial de anfetaminas, utilizados especialmente nas medicações para inibição do apetite e para a obesidade. No Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Unifesp), encontramos a informação de que de 2000 – 2002 houve no Brasil um aumento de 46% nas prescrições de antidepressivos para crianças.

A produção dos remédios (não somente os psiquiátricos) e seu uso não podem ser vistos somente no campo científico e da prática médica; os remédios atualmente produzidos apresentam-se como novos bens a consumir, atrelados a condição de produção de bem-estar, felicidade, autorealização, idéias de nosso tempo contemporâneo.

Assim, o que chamamos de medicalização no mundo contemporâneo aponta para uma descrição biológica das experiências humanas, para uma retradução de seus sofrimentos em termos sintomáticos e para uma intensificação do uso de medicamentos no alívio das dores cotidianas.

As vicissitudes da escolarização das crianças estão, sem duvida, incluídas neste contexto, especialmente quando renomeadas sob o prisma do Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade.

Assistimos em nossa época a uma multiplicidade de diagnósticos psicopatológicos e de terapêuticas que simplificam as determinações dos sofrimentos ocorridos na infância. O que reconhecemos como resultado deste tipo de prática é que um número cada vez maior de crianças e em idade cada vez mais precoce é medicado de forma a tentar conter manifestações da criança, sem considerar o contexto na qual se apresentam; não levando em conta, também, as complexas manifestações singulares de cada sujeito. Assim, no lugar de considerar um psiquismo em estruturação, supõe-se um déficit neurológico.

Os meios de comunicação tratam o TDAH quase como uma epidemia e divulgam de maneira simplista os sinais sintomáticos presentes nos manuais diagnósticos e o uso de medicação, no caso a Ritalina, como forma de tratamento, associada às psicoterapias de fundamentação cognitivista ou comportamental. Atualmente, no limite, sobre qualquer criança, pode recair a suspeita do TDAH, ainda que muitas delas exibam perfeita condição de implicarem-se de forma atenta e detida em algo que as interesse. Sito aqui um relatório de um grupo de profissionais argentinos (psicólogos, pediatras, psiquiatras, neurologistas, psicopedagogos e psicomotricistas):

"Todas as drogas utilizadas no tratamento de crianças que apresentam dificuldades para concentrar-se e que se movem mais do que o meio tolera, têm contra-indicações e efeitos colaterais importantes, (...) em diferentes trabalhos, com respeito ao metilfenidato (principio ativo da ritalina) se coloca que:

- não deve ser administrado em crianças menores de seis anos; não é aconselhado no caso de crianças com tiques (caso da Síndrome de Tourette); é arriscado seu uso em crianças psicóticas, pois intensifica sua sintomatologia (fenômenos elementares); leva, com o tempo, a retardo no crescimento; pode provocar insônia e anorexia; pode baixar o limiar de excitação para as convulsões em pacientes com histórico de convulsões ou de alterações do exame de eletroencéfalograma, mas que não apresentam ataques convulsivos."4

Uma breve consideração sobre o lugar ocupado pela ciência atualmente. Os enunciados científicos adquiriram em nosso tempo um valor de verdade. Valem pela coerência interna de seus termos, valem como saber exclusivo na elucidação dos problemas impostos por seu objeto, ainda que este seja o homem e sua vida. Pela maneira como a produção cientifica se dá, formalizada na pretendida distância entre sujeito que investiga e objeto investigado, a ciência procura garantir, por essa suposta impessoalidade de sua produção, o universalismo de seus enunciados, que adquirem ainda a possibilidade de dizer tudo sobre o objeto que investigam. As escolhas sobre as pesquisas a serem feitas são dadas pelo argumento de uma decisão técnica, arbitrária e feita entre os cientistas. Tal decisão, apoiada numa discussão entre pares, pretende subtrair da ciência a responsabilidade e conseqüência política de seu fazer. Assim é, que o debate ético em torno das últimas conquistas da tecnologia científica, torna-se cada vez mais complexo - como vemos, por exemplo, naquilo que envolve as pesquisas e manipulações genéticas de embriões humanos. (Lebrun, 2004)5

Universalidade dos enunciados, a distância entre ciência e política, ou seja, entre enunciados científicos e seu valor no mundo que os homens habitam, parecem apontar para o risco de um sem limites da ciência, como coloca Gerard Lebrun.

O que a escola tem haver com isso? O que a educação tem haver com isso?

Em primeiro lugar, observamos uma divulgação e uso sem critérios de categorias médico/psicológicas no cotidiano escolar. É muito frequente, como vimos, a apropriação do discurso médico-psicológico no cotidiano escolar, tanto na suspeita de um diagnóstico, quanto na demanda para que este se realize. Mas claro, isso tem uma história: a própria formação do campo escolar esteve pautada, a partir da modernidade, pela administração de uma intervenção do estado e dos especialistas na educação das crianças.

A constituição da instituição escolar é expressão da própria constituição moderna de infância. A instituição da escola, também como espaço de educação das crianças, em detrimento da ação exclusiva e privada da família que antes imperava, respondeu às exigências dos tempos modernos e da organização dos estados.

Assim, a infância na modernidade é reconhecida não somente como um tempo particular da constituição humana, mas também entendida como tempo de preparo e prevenção para a produção de indivíduos capazes para o trabalho e saudáveis, do ponto de vista psíquico, para participarem do social.

Para gerir convenientemente esta época da vida, a infância, na modernidade, torna-se um problema a ser abordado, ou seja, uma época a ser cuidada, assistida, tutelada. No lugar de uma autoridade familiar, um conjunto de especialidades se consolidou como capaz de orientar a educação das crianças, aconselhando tanto as trocas afetivas familiares quanto a moralidade e organização que deveriam ser observadas no processo da escolarização.

Diante do desenvolvimento da ciência e das práticas das especialidades no domínio da criação e educação das crianças, vimos se consolidar, ao longo do último século, uma autoridade em matéria de educação. A presença dos especialistas na educação se tornou de tal maneira senso comum, que é possível dizer de um tecnicismo em voga nas práticas educativas. Reside aí a força conquistada pela psicologia no discurso pedagógico, bem como da nova vertente da medicalização observada nos tempos atuais.Desta forma a permeabilidade da escola ao discurso médico, bem como a o discurso psicológico é histórica.

Assim, se muitos já evocaram a presença da psicologia no interior da escola como tendo efeitos de exclusão e estigmatização, como poderíamos pensar nos efeitos desta biologização do humano que tentei abordar aqui com vocês?

Um primeiro efeito a ressaltar é o da desresponsabilização.. A hegemonia do discurso sobre o organismo, sobre seus aspectos funcionais, reduz a consideração da dimensão simbólica da subjetividade. Desresponsabilização, pois os problemas e condições do aprendizado das crianças estão dados pelo funcionamento cerebral e não pelas interferências de um outro em sua condição de estruturação e desenvolvimento. Assim, o encontro entre adultos e crianças no interior da escola corre o risco de ser reduzido a uma administração de estímulos. Há aqui uma tendência a um esvaziamento do ato educativo e da densidade da experiência humana.

Crianças e adultos, sendo desresponsabilizados de sua implicação com aquilo que lhes acontece, tornam-se também impotentes para aturem sobre seus sofrimentos e aprendizados. E a impotência é então mais um efeito deste discurso biológico. Só é visto como potente o especialista que saberia o que fazer diante do diagnostico que profere.

Sendo o aprendizado descrito como efeito do funcionamento cerebral, da estimulação correta deste órgão que nos governa, temos sua descrição reduzida a uma dimensão privada, que ocorre no interior do individuo e não a partir do laço entre dois ou mais sujeitos; ou seja, o aprendizado perde o caráter de ser fruto da ação humana, dimensão do encontro na pluralidade própria do mundo público, onde produzimos história. (Arendt, ) Outro efeito: o conhecimento se produz no interior do indivíduo, no âmbito privado, fruto do bom funcionamento do organismo, nada tem haver com a transmissão, em sua dimensão simbólica. É, assim, fruto de uma mecânica.

Finalmente, então, de aliviados de um peso (não temos nada haver com o que nos acontece), crianças e adultos ficam também impotentes para atuar sobre sua condição como sujeitos, quando muito, podem tomar um remedinho que regule seus organismos em colapso. Na pior das hipóteses, terão que agüentar seus efeitos colaterais. Mas há sempre um preço a pagar.

 

Notas:

1 Terzaghi, M.A. Los niños y los diagnósticos: certezas e incertidumbres. Reflexiones sobre la importancia y los límites Del diagnóstico médico. Texto não publicado.

2 DOMONT DE SERPA,O. Mal-Estar na Natureza. Belo Horizonte: Te Cora Editora, 1998. 372p.

3 ROSE, N. Becoming Neurochemical Selves. Disponível on-line: http://www.springerlink.com/content/qm2c3r90rkx2tepj Acesso em 26/07/2007

4 Consenso de expertos del área de la salud sobre el llamado "Trastorno por Déficit de Atención con o sin Hiperactividad": relatório não publicado

5 LEBRUN, J-P. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004. 218p.

 

Referências bibliográficas

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COSTA, J. F. Ordem médica e Norma Familiar. [1979]. 5ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004. 231p.

DONZELOT, J. A polícia das famílias. 3ª edição. São Paulo: Edições Graal, 2001. 209p.

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______. A crise atual da medicina. Reprodução de conferência pronunciada por Michel Foucault na Escola de Saúde Pública do Rio de Janeiro, 1974. (mimeo sem paginação)

______. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 29ª edição. Petrópolis: Vozes, 1987. 288p.

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ROUDINESCO, E. Por que a psicanálise? RJ: Jorge Zahar Editor, 2000. 163p.

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