ISBN 978-85-60944-35-4 versão
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ISBN 978-85-60944-35-4 versão on-line
An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011
Uma vida iluminada: uma breve discussão sobre experiência, memória e os impasses adolescentes no laço social atual
Rose GurskiI; Marcelo de Andrade PereiraII
IPsicanalista (APPOA). Professora do Instituto de Psicologia (UFRGS). Coordenadora do NEPEIA Núcleo de Estudo, Pesquisa e Extensão em Infância e Adolescência. roselenegurski@terra.com.br
IIProfessor do Programa de Pós-Graduação em Educação – UFSM. Coordenador do FLOEMA – Núcleo de estudos em estética e educação da UFSM. doutorfungo@gmail.com
Este escrito se insere no contexto de estudos que buscam extrair os efeitos éticometodológicos da conjugação da Psicanálise com a produção de Walter Benjamin, especialmente o segmento dos estudos de Benjamin voltados à chamada arqueologia da Modernidade. Uma das pesquisas deste segmento de estudo visa aprofundar a análise de determinadas aspectos da adolescência contemporânea à luz desta conjugação. Buscamos interrogar de que modo o conceito de experiência e tempo podem auxiliar na discussão sobre os impasses do adolescer na atualidade.
Sabemos que o estudo e a pesquisa em torno do tema da adolescência contemporânea vêm ocupando o centro do debate em diferentes esferas do campo social. As políticas públicas, as pesquisas acadêmicas e mesmo a preocupação crescente dos especialistas e dos educadores com os caminhos dos jovens deste tempo representam sinais de que o sofrimento juvenil tem crescido de modo exponencial. São vários os sintomas que se apresentam, dentre eles destacamos o aumento considerável de jovens em conflito com a lei, os índices de suicídio e o uso cada vez maior de drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas. Neste âmbito, é preciso que nos perguntemos acerca da medicalização do sofrimento juvenil, bem como sobre a criminalização crescente dos atos juvenis.
Uma das hipóteses que nos orienta neste estudo é de que os atos extremos dos jovens seriam modos de representação no espaço social, formas que utilizam a fim de obterem um reconhecimento que não é possível por outras vias. Neste sentido, parece que, ao encontrarem nos laços sociais e familiares uma espécie de desertificação em termos de narrativas e de recursos simbólicos1, os jovens acabam por viver o adolescimento delinquindo e tornando-se os chamados "toxicômanos", seja de drogas prescritas ou proibidas.
Dialogar com as condições do discurso social que recepcionam os atos juvenis na atualidade pode levar à qualificação dos diagnósticos e dos atendimentos de adolescentes em situação de sofrimento psíquico extremo. Entendemos que a escuta desses jovens pode ser enriquecida a partir da compreensão do laço social e do momento de estruturação psíquica pelo qual passam.
Sabemos que o problema de todo sujeito e, em especial do adolescente, é encontrar formas de se representar no laço social. Tal questão torna-se mais aguda para aqueles que, recém saídos do mundo da infância, precisam de referentes que indiquem o valor dos seus atos e de suas palavras em relação ao Outro social (Jerusalinsky, 2004). Sabemos, ainda, que a dose dessa garantia depende tanto da história das relações infantis do sujeito, quanto do modo pelo qual a cultura na qual está inserido trata dos valores simbólicos. Isso porque os sentidos são construídos desde os códigos que cada tempo cultural indica como lugar de produção do sujeito.
Partindo destas questões, tomamos a narrativa "Uma Vida Iluminada" para interrogar, sobretudo, as facetas contemporâneas das condições com as quais os adolescentes se encontram no tecido social atual a fim de elaborar a operação psíquica que lhes concerne. Pensamos que o filme de Liev Schreiber, do ano de 2005, condensa de maneira muito precisa algumas das problematizações implicadas nos impasses do adolescer.
Em busca do tempo passado: uma busca rígida?
Uma busca rígida é a nominação dada pelo personagem Alex à saga pela recuperação da memória realizada em conjunto com Jonathan, o protagonista do filme. É com esta expressão que Liev Schreiber, diretor do road movie "Uma vida iluminada" inicia e dá sequência à narrativa de humor clownesco que se passa nos recônditos da Ucrânia. Ao que perguntamos: será o enlace entre passado e o presente uma busca rígida?
Uma vida iluminada inicia-se, com efeito, por um anelo de recuperação e encontro com o passado. Jonathan é um jovem norte-americano cujo hobby é colecionar as marcas deixadas no tempo e no espaço por seus familiares. Isso inclui recolher objetos os mais inusitados, objetos portados por seus familiares. Jonathan parece, nessa ação de coleta, ansiar por algum testemunho. A esse amontoado de objetos somam-se os últimos rastros deixados e ofertados a ele por sua avó que jaz no leito de morte, quais sejam: uma fotografia e uma dentadura. Jonathan parece, ademais, aguardar ali as últimas palavras da avó.
Na foto ofertada pela avó a Jonathan vemos seu marido, o avô do personagem central, ainda jovem, ao lado de uma moça. As cenas deixam claro que a moça não é ela. Ao entregar-lhe a foto, a avó apenas diz que o avô queria que ele, o neto, ficasse com aquela fotografia para sua coleção. O jovem colecionador imediatamente toma aquela imagem como um enigma. Que saber poderia estar cifrado naquela foto? Que questão o avô lhe transmitia na expressão do desejo de que ele portasse um recorte que indicava nuances de seu passado e de sua história?
Impossível neste fragmento não pensar no texto "Experiência e Pobreza", de Walter Benjamin (1994), no qual o autor tratou do esvaziamento das transmissões geracionais através da parábola do pai moribundo que, no leito de morte, deixa uma espécie de enigma aos filhos. Benjamin, neste escrito, diz que as instituições higiênicas e sociais produzidas pela burguesia, ao longo do século XIX, permitiram aos homens evitar o espetáculo da morte. Morrer que antes era um espetáculo público passou a ser algo cada vez mais expulso do universo dos vivos. Na analogia que cria entre a autoridade da experiência e a morte diz que é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem, e da sua existência, assumem, pela primeira vez, uma forma transmissível, pois no interior do agonizante desfilam imagens e o inesquecível aflora de repente, conferindo a tudo que diz respeito a ele um tom de autoridade. O moribundo, no limiar da morte, faria uma aproximação entre dois mundos: o familiar e conhecido mundo dos vivos e o outro mundo desconhecido e estranho, mas também comum a todos. Da mesma forma, o viajante que vem de longe e o moribundo partilham de uma aura semelhante, a aura que confere a ambos uma autoridade suprema.
Neste recorte, Benjamin parece justamente interrogar um dos traços da contemporaneidade: esquivar-se da morte, enquanto representante radical da falta do objeto e do real parece estar associado a esquivar-se da enunciação, do aspecto narrativo que carrega o que tem de próprio no sujeito.
Lembramos que, para Lacan será o confronto com o real, com a dimensão da falta em sua radicalidade que fará surgir a possibilidade de produzir um dizer, uma enunciação, uma verdade, uma narrativa ou, por outro lado, a esquiva e a sutura da falta pela "presentação" de algo que ocupe o lugar vazio. Assim é que o empobrecimento da narratividade acaba sendo o efeito desta relação tão apaixonada do sujeito contemporâneo com o objeto.
Bem, na medida em que a narrativa transcorre, vemos se desdobrar a tal busca rígida da história, iluminada sempre pelos traços da memória dos objetos e das pessoas. Como uma espécie de arauto de palavras vivas, um último herdeiro, Jonathan, atravessa as fronteiras que separam o presente do passado, buscando nos mínimos traços, as marcas de passagem de seus ancestrais.
Com a foto de seu avô em mãos, o protagonista segue para a Europa oriental; a busca rígida que inicia é, na verdade, uma busca de si, de sua história, da memória coletiva que constrói a sua vida e a de seus familiares. Jonathan distingue-se por certo do "típico adolescente" que ocupa o centro dos debates em diferentes esferas sociais: não utiliza drogas, não se encontra em conflito com a lei, tampouco partilha de sintomas reveladores de expressivo sofrimento, todavia, ao buscar a memória do passado, parece também demandar um laço com o que veio antes, com aquilo que o constituiu e do qual pouco "sabe"2.
Pautado por diálogos carregados de significação, o filme revela, na busca de Jonathan, o ímpeto do humano em buscar um sentido para a existência através do encontro com o passado pela via da rememoração. Essa intuição é, por certo, compartilhada por um sem número de indivíduos que supõe que a memória, o registro, o testemunho constituem ícones para o combate contra o caos social, a errância e a imponderabilidade das ações na passagem dos indivíduos pelo tempo. Além disso, a obsseessividade pelo recolhimento de objetos revela também uma angústia, a ânsia por determinar um sentido e um lugar aos objetos e a si mesmo.
Uma das questões interessantes que Andréas Huyssen (2000) se faz com relação à produção intensa de acervos na atualidade sejam acervos pessoais, como as coleções, sejam acervos coletivos como os museus , refere-se a quais estratégias discursivas seriam possíveis, na atualidade, para lidar com o traumático e com o irrepresentável.
Ora, sabemos que o crescimento da memória armazenada é diretamente proporcional à diminuição da capacidade de rememoração ativa. Assim, parece que as condições sociais da modernidade em diante geraram uma espécie de órgãos compensatórios de rememoração, retirando da memória coletiva e social a responsabilidade pelo dizer e pelo narrar reclamadas por Benjamin.
De algum modo, podemos dizer que a memória moderna é o avesso da memória proposta por Benjamin. Todo desejo intenso de deixar marcas no presente, transformar tudo em memória, se relaciona com uma certa mutação na relação com a noção de tempo, é como se uma nova estrutura de temporalidade estivesse em jogo. A aceleração atual destrói o espaço e apaga a distância temporal. Disso resulta uma percepção diferente de tudo, o real não é mais referência, o presente sucumbe ao poder mágico da simulação e o sujeito pós-moderno se dissolve no mundo imaginário das imagens (Huyssen, 2000, p.75). Segundo Huyssen, será a disseminação da amnésia em nossa época que fará surgir o fascínio pela memória e pelo passado.
A tipologia da experiência: registro e transmissão
Para a Psicanálise, registrar é representar o que se inscreve no corpo, desde a relação com o Outro; é também o que permite que o sujeito saiba quem ele é e qual é o seu nome. Ou seja, o registro é uma outra forma de falar do sujeito e da memória. Jonathan, ao colecionar pedaços de suas vivências e de outros, parece demonstrar a necessidade de construir sentido e significação aos acontecimentos de sua vida. Com efeito, tal tarefa de coleta do passado pelas marcas do presente parece caracterizar o cerne da investigação do filósofo alemão Walter Benjamin acerca da experiência, do tempo, do saber e da tradição.
Desde seus textos juvenis, compilados pelo título de Metafísica de la Juventud (Benjamin, 1993), Benjamin interessou-se pelo tema da experiência e seus desdobramentos. O filósofo da aura, como era chamado, preocupava-se em elaborar um conceito de experiência articulado à construção de novas categorias de temporalidade, relacionadas à valorização do presente e à crítica da concepção de um passado imobilizado. Para ele, a Erfahrung (experiência) era a sabedoria que se acumulava historicamente e se prolongava através da transmissão da tradição. Nesse sentido, sua ambição foi construir um outro conceito de experiência que a reconciliasse com o novo, recuperando sua dimensão original de tentativa e de risco, uma experiência passível de questionar o passado como repetição mitológica do mesmo. Não se tratava, obviamente, de negar o laço existente entre a experiência e o tempo – o qual poderia caracterizar o sentido da experiência dos mais velhos, dos adultos – mas antes destacar o caráter original da experiência que não se reduz a um mero acúmulo de vivências.
Tal diferenciação se expressa através da notação conceitual de Walter Benjamin pela oposição, por ele definida, entre experiência e vivência, entre a Erfahrung – a experiência em seu sentido forte, genuína, original – e a Erlebnis, a vivência – ou seja, a experiência própria do sujeito moderno que, atropelado pelo choque das multidões e pelo ritmo industrial, torna-se refratário e mesmo incapaz de viver experiências mais densas. Essa tipologia da experiência associa-se, em Benjamin, a um julgamento de valor moral e histórico. A referência de Benjamin a uma autêntica experiência remete, em sentido estrito, a algo que se dá necessariamente no e pelo coletivo, passível de ser comunicado, transmitido, continuado. A experiência genuína resultaria, assim, de um processo gradativo de amadurecimento do indivíduo humano, na aceitação e no acolhimento de ritos, gestos e ações que configurariam as formas de expressão individual em uma rede de significantes coletivos. De outro lado, a vivência (Erlebnis), própria da era moderna, é uma espécie inferior de experiência, infértil no campo da ação humana. Para Benjamin, significado algum pode de uma vivência ser depreendido, pois ela finda sua ação em seu próprio aparecimento (Pereira, 2005).
A experiência benjaminiana não refere meramente uma faculdade cognitiva, ela se situa, por certo, para além do empírico, não sendo por isso apenas um lugar em que as coisas chegam ao indivíduo. A experiência de Benjamin, a Erfahrung é fundamentalmente origem, potência, um sempre começo: a dimensão por intermédio da qual se faz possível a criação, a escolha, o atravessamento, a deliberação. A palavra Experiência (Erfahrung) remete, com efeito, em alemão, à viagem (fahr) – a qual induz a uma categoria de ordem espacial. É também, sob um outro ponto de vista – o da tradição – uma "visão de fundo", (do tempo) que se perfaz como sabedoria (Pereira, 2005).
O interessante é que, para Benjamin, ao se modificar a estrutura da experiência, modifica-se também o modo como o sujeito se relaciona com o tempo e com o espaço. Parece-nos que tais intuições do autor acerca da experiência, da vivência, do tempo e da modernidade encontram-se por certo enleadas à discussão erigida pelos pensadores vinculados ao Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt mais conhecido como a Escola de Frankfurt, na medida em que estes viam nos homens do progresso os destruidores da tradição, os autores da nova barbárie. O Pós-Guerra na visão de Benjamin produzira gerações sem histórias para contar, presas de uma intensa sensação de desamparo. Sujeitos silentes incapazes de narrar a horrível experiência. Para ele, morrera junto com os cadáveres a já declinante capacidade comunicativa da experiência.
Entendemos que os questionamentos propostos pelo filósofo alemão aproximam-se do discurso da Psicanálise, pois, em seus fundamentos encontram-se a subversão do sujeito da razão. Se, para a Psicanálise, trata-se sempre de buscar o sentido cifrado no sintoma apresentado pelo sujeito, apontando com isso o caminho do inconsciente como produtor dos atos, a leitura de Benjamin também ambiciona a busca do sujeito da experiência, aquele que se deixa levar pelo tempo orgânico e não pelo tempo da máquina. Aquele que, como o flâneur de Baudelaire, deixava que as marcas de seu Desejo pontuassem o trajeto por onde passava (Gurski, 2008).
Seja como for, é interessante perceber como na critica que Benjamin faz às novas condições sociais está implícita uma reflexão sobre o tempo e os entraves ao acolhimento de suas marcas na Modernidade. A pobreza da experiência e a pressa desmedida denunciadas por Benjamin constituíam, para ele, a nova barbárie: estar desprovido do passado significa não só constatar a pobreza do presente, mas, também e, sobretudo, sinalizar para a urgência de inventar, de construir o novo. O novo, para Benjamin, pode ser tomado como a produção do sujeito, o que decanta como marca daquele que se autoriza enquanto autor/produtor de uma experiência.
Entre o passado e o futuro: a adolescência contemporânea e a feitura do novo
Como fazer para que o passado não se transforme em uma lembrança nostálgica hermeticamente fechada em um acervo chamado memória? Como operar para que não tenhamos passado morto, somente histórias vivas a ponto de se deixarem reescrever pelas letras do presente?
O jovem talvez possa ser tomado como o paradigma social daquele que testemunha uma herança, tanto em termos pessoais quanto geracionais. Tal posição o impele a desconstruir o que recebeu. É preciso fazer uma nova montagem, encontrar um lugar próprio de enunciação.
Nesse sentido, Arendt (2001, p. 28) é pontual ao, no prefácio do livro Entre o Passado e o Futuro, recolher o aforismo do poeta e escritor francês René Char, Notre héritage n’est précéde d’aucun testament: aí ela aponta para uma ruptura no legado do passado cujo sentido é o de impossibilitar que um futuro advenha. Isso porque, em sua visão, "cada nova geração, e na verdade cada novo ser humano, inserindo-se entre um passado e um futuro infinitos, deve descobri-los e, laboriosamente, pavimentá-lo de novo". Porém, parece que as práticas sociais desta época, associadas à dificuldade cada vez maior de os adultos se colocarem como sujeitos desejantes, impossibilitam que o passado seja sorvido pelo jovem no diapasão proposto por Arendt (2001, p. 243):
Nossa esperança está pendente sempre do novo que cada geração aporta; precisamente por basearmos nossa esperança apenas nisso, porém, é que tudo destruímos se tentarmos controlar os novos de tal modo que nós, os velhos, possamos ditar sua aparência futura [...] a educação precisa ser conservadora; ela deve preservar essa novidade e introduzi-la como algo novo em um mundo velho, que, por mais revolucionário que possa ser em suas ações, é sempre, do ponto de vista da geração seguinte, obsoleto e rente à destruição.
Ou seja, Arendt fala da importância de uma dose de conservadorismo na educação, ou seja, a condição para que se produza o novo é que aquele que chega se encontre com o velho. Se concordamos com a visão da filósofa acerca da perda da tradição e a conseqüente ausência de referenciais que "indiquem onde se encontram os tesouros e qual o seu valor" (Arendt, 2001, p. 31), no que se refere aos jovens da atualidade, também compartilhamos da reflexão crítica de Ana Costa (2001, p. 66) acerca dessas premissas. Para a psicanalista, tomar a perda da tradição como um prenúncio de uma catástrofe na relação com as representações seria uma espécie de idealização imaginária da tradição, enquanto condição suprema de representação. Desta reflexão, Ana Costa retira a noção de que, na atualidade, não há uma autoridade anterior à experiência. Será a experiência que produzirá a autoridade, já que não existem lugares prévios no social que garantam uma representação. Assim, é que os adolescentes tantas vezes são tomados como uma espécie de "passageiros da agonia", buscando, através de atos extremos um lugar de representação nos laços discursivos.
Jonathan, ao buscar a Heritage Tours, uma empresa familiar que leva os judeus "ricos" da América a encontrar-se com seu passado, procura a moça da foto, supostamente a responsável pela vinda de seu avô para a América. Os efeitos de sua busca extrapolam os limites de sua vida e produzem efeitos em Alex, um jovem ucraniano preso ao imaginário da fama e do poder da cultura ocidental que acompanha, como guia, Jonathan em sua jornada. Na companhia do avô e de Jonathan, Alex procura de maneira "inconsciente" e, portanto, não deliberada seu passado. É o passado de uma maneira geral que ilumina o presente daqueles que buscam por ele. Como Jonathan, o personagem Alex aciona o passado por intermédio primeiro de uma marca a qual aduz à memória particular e individual, todavia, uma marca construída coletivamente. Com efeito, ambos os personagens foram como que encontrados pela memória do passado; não é o passado que foi aí encontrado pelos personagens por força de um desígnio premeditado, de uma "busca rígida", mas, antes, o passado que se apresentou a esses de maneira mesmo involuntária. Essa ideia encontra-se, por certo, embutida nas categorias dispostas por Benjamin – balizado pela notação conceitual de Marcel Proust – da memória: a memória voluntária e a memória involuntária.
Como Proust, Benjamin entende por memória voluntária toda a sorte de vivências passadas que poderiam ser acessadas arbitrariamente pelo intelecto, sendo assim, a memória voluntária diria respeito mais a uma capacidade de desagregação que propriamente de conservação. Isso explica porque para Benjamin esse tipo de memória é precária, visto que lega à lembrança a função de resgate do passado (Pereira, 2007). Para Benjamin, a memória voluntária é uniforme, limitada, restrita e sujeita "aos apelos da atenção. As informações sobre o passado, por ela transmitidas, não guardam nenhum traço dele" (Benjamin, 1989, p.106). Não obstante, por memória involuntária Benjamin compreende o tipo de memória que reintegra o indivíduo a uma espécie de experiência mais próxima da verdadeira; ela lança o sujeito a uma outra dimensão espaço-temporal, ampla e indeterminada; espaço e tempo onde o passado pode de fato ser contemplado (Pereira, 2007).
A respeito do problema da memória, Maria Rita Kehl (2001) nos fornece uma compreensão que permite redimensionar do ponto de vista psicanalítica as categorias de Walter Benjamin. Para ela, a memória estaria dada em dois registros distintos. Um seria o registro que dá consistência ao sujeito e promove uma ligação duradoura entre o moi e o je, enquanto o outro seria o registro da rememoração e da transmissão: o sujeito que marca a presença no registro daquilo que experienciou. Pode-se tomar o segundo como o registro da ordem do inconsciente, não do conhecimento; ele constitui um saber que decanta, que faz trânsito entre o sujeito e o Outro, é aquilo que faz passagens e cria pontes ao estabelecer trajetos possíveis entre os diferentes tempos.
Dentro desse mesmo diapasão, Ana Costa (2001) associa experiência e testemunho. Segundo a psicanalista, os dois conceitos andam juntos, pois o ato de testemunhar e narrar é sempre endereçado a um outro, mostrando no próprio endereçamento a insuficiência do sujeito e, portanto, do Outro3.
Pensamos que essa dimensão da falta contida na transmissão é a vertente evocada por Benjamin ao chamar de "calor" aquilo que o homem moderno buscava nos romances: o saber que, diferente do conhecimento e da informação, faz laço porque evoca o vivido como narrável e historicizável. A possibilidade de que das vivências decantem experiências, narrativas e testemunhos, parece ser o que "aquece" o laço e a vida do humano; dentro desse entendimento a narrativa parece ser uma das formas p ela qual se produzem inscrições e representações, ela é um modo que possibilita a produção da polissemia, a qual flexibiliza os sentidos e produz enunciações e não só enunciados ecolálicos.
Como já dissemos, o tema da representação na adolescência ganha um vulto intenso. Costa (2001) utiliza a metáfora do exílio para falar da passagem adolescente. É como se, desde o lugar de exilado, o adolescente estivesse autorizado a testar os traços que irão representá-lo, exercitando, assim, as tentativas de inscrever um estilo próprio, criando e inventando um lugar psíquico e social para si.
Pois será nas terras deste exílio que os jovens irão se deparar com aquilo que pode ser o mais caro às suas construções psíquicas, o encontro com o sexo e a morte, este real que cobra um preço alto de elaboração. Parece que as experiências intensas vividas em meio ao exílio e às margens também revelam o teor do que eles demandam elaborar por conta desse momento lógico da estruturação. Nesse sentido, perguntamo nos sobre a busca de Jonatham na viagem ao passado. Sua busca testemunha a redução da experiência contida na transmissão que recebe daqueles que vieram antes4?
O grande trabalho psíquico da adolescência é operar a partir da transicionalidade entre o campo familiar e o campo da cultura. Assim, na medida em que a passagem do Outro parental para o Outro social acontece, o jovem debate-se, destruindo e reconstruindo referências e conceitos de si e do mundo.
Tal movimento de desconstrução e reconstrução entrevisto no conceito de transmissão, além de dialogar com algumas questões abertas por Benjamin, também pode ser associado à movimentação psíquica própria da adolescência. Entre outras interrogações, tal conceito evoca uma questão importante para a Psicanálise contemporânea, bem como para o adolescer: como lidar com a herança em uma medida que possibilite a emergência do novo?
Podemos dizer que o personagem de Jonathan constitui o paradigma de um herdeiro visto que ao buscar o velho, o passado e a história foi ao encontro do novo. Junto com Benjamin e Arendt acreditamos que para que uma experiência venha a ser uma herança transmissível, é preciso que se constitua um sujeito que banque o encontro com os tesouros do passado sem temer ir às profundezas, para que dali possa emergir o verdadeiramente novo (Gurski, 2012).
Referências
Arendt, H. (2001). Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva.
Benjamin, W. (1989). Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense.
Benjamin, W. (1993). Metafísica de la Juventud. Barcelona: Paidós.
Benjamin, W. (1994). Experiência e Pobreza. In: Benjamin, W. Magia e Técnica, Arte ePolítica (p.114-119). São Paulo: Brasiliense.
Costa, A. (2001). Corpo e Escrita: relações entre memória e transmissão da experiência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.
Gurski, R. (2008). Juventude e Paixão pelo Real: problematizações sobre experiência e transmissão no laço social atual. Porto Alegre: UFRGS, Tese (Doutorado em Educação)
Gurski, R. (2012). Três Ensaios sobre Juventude e Violência. São Paulo: Escuta.
Huyssen, A. (2000) Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos e mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano.
Jerusalinsky, A. (2004). Adolescência e Contemporaneidade. In: Conversando sobre adolescência e contemporaneidade (p. 54-65). Porto Alegre: Conselho Regional de Psicologia.
Kehl, M. (2001). Minha vida daria um romance. In: Psicanálise, literatura e estéticas da subjetivação (p.57-90). Rio de Janeiro: Imago.
Mannoni, M. (1989). Um saber que não se sabe: a experiência analítica. Campinas: Papyrus.
Pereira, M. (2005). No fio da navalha: da experiência: sentidos e possibilidades do educar. Revista da Fundarte, 10, p.08-12.
Pereira, M. (2007). Nos descaminhos da memória: Benjamin leitor de Proust. Graphos. 9, 2, p.189-202.
1. Quando presentes, estes recursos ajudam na cara composição da trama de ficção passível de suportar a representação do sujeito frente ao Outro social.
2.Fazemos referência aqui à expressão "um saber que não se sabe", consagrada por Maud Mannoni (1989), no título de um de seus livros e que alude ao que é próprio do saber inconsciente: aquilo que o sujeito, através da experiência analítica, descobre como um saber do qual "não sabia".
3. É preciso sublinhar que, se o Outro fosse pleno, os sentidos seriam cerrados e não haveria espaços possíveis para a inscrição das marcas do sujeito.
4. A expressão alude ao que Hannah Arendt (2001) discute no texto A Crise da Educação como a responsabilização dos adultos com o mundo ao qual trouxeram as crianças.