3O infans, a creche e a psicanáliseO discurso dos pais na clínica psicanalítica com crianças: significantes transgeracionais em questão author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 85-86736-06-6

An. 3 Col. LEPSI IP/FE-USP 2002

 

Direitos da criança, infância e Psicanálise1

 

Mercedes Minnicelli 2

 

 

Minha intenção neste trabalho é a de apresentar Um material que expõe circuitos de in-significação, legitimados e veiculados pelo sistema jurídico-institucional de proteção à infância, pelo menos no que respeita a Mar del Plata, província de Buenos Aires, Argentina3.

Um nascimento, uma existência humana só se inscreve simbolicamente por meio do ritual funerário.

Philippe Ariès (1978) chamou a atenção sobre uma prática ausente em tempos do Antigo Regime: quando morriam crianças não se realizava um ritual funerário. Até avançado o século XVI, não se acham registros de túmulos e epitáfios que lembrem a morte de crianças nessa época. Considerados como substituíveis e com escassas alternativas de sobrevivência, as crianças nasciam e morriam sem provocar demasiada aflição.

Aquilo que Ariès enunciara e enfatizara como "infanticídio tolerado", localizando sua realização em tempos do Antigo Regime, ganha relevo quando constatamos sua vigência nos dias de hoje, e nos apresenta uma série de interrogantes e hipóteses a seu respeito.

Passemos ao tema dos ritos e rituais (Lévi-Strauss, 1985). Estes termos antropológicos falam-nos de práticas culturais humanas, cujas variações, enquanto à forma e ao conteúdo, variam de uma comunidade à outra -sustentadas, em alguns casos, em relações de correspondência com um mito-, tentando dar significação, dar valor e sentido a um fato, e estabelecer diferenças entre o antes e o depois da passagem pelo ritual em questão (por exemplo, nos ritos de iniciação). O rito institui uma diferença.

Lacan (1999) ocupou-se, em seus seminários, de analisar o lugar que compete aos ritos e rituais humanos, insistindo em vincular o desejo e a marca; o desejo e a insígnia; o desejo e a Lei. Efeito e valor dos ritos por cuja mediação se introduz uma falta simbólica ali onde o luto abre uma fenda.

Uma das funções dos ritos é a de "deixar marca". Ao oficiar como signo, o rito estabelece um corte que assinala o ponto de diferença.

É a marca que estabelece a diferença entre os que pertencem ou não a um determinado grupo ou campo (Bourdieu, 1999); entre o antes e o depois da passagem pelo ritual4, em e peloqual um grupo ou uma comunidade culturalmente organizada oficia como sustentação5.

Entrando na experiência do luto, e a partir da análise de Hamlet, de Shakespeare, Lacan detém-se no ritual funerário. O ritual facilita, de algum modo, o fazer frente ao buraco criado na existência pela morte de um outro significativo.

Seguindo esta perspectiva, o ritual funerário marca, inscreve, registra a morte. Lacan destaca a função do rito no luto, em tanto que sua mediação cria, ali onde se abre uma fenda, ausência no Real, uma falta simbólica. Quando esta é rechaçada, elidida, quando fica livre esse lugar que dá ao morto o ato ritual, os fantasmas e os espectros "dançam", tal e como o assinalam as crenças folclóricas e, por que não, também um certo discurso do sistema de minoridade. O ritual funerário satisfaz a memória do morto ao outorgar-lhe um lugar.

Se algo pode chamar nossa atenção no discurso do aparato administrativo-burocrático interinstitucional do sistema judiciário de proteção à infância é, precisamente, a ausência de marcas, de signos que habilitem operatórias simbólicas.

Por um lado, o sistema jurídico queixa-se: as "causas judiciais" sucedem-se, em uma espécie de metonímia infinita, umas trás outras, e o sistema está abarrotado.

Por outro lado, as intervenções de diferentes profissionais e serviços (sociais, psicológicos, médicos etc.) em torno a uma mesma "causa judicial" sofrem o mesmo deslocamento.

Se lermos um dossiê judicial pertencente a uma criança sob tutela judicial, encontraremos que "esta causa judicial" se iniciou duas ou três gerações anteriores ao nascimento. Uma linha de continuidade sem diferenças -seja entre as gerações, seja entre os protagonistas da "causa mesma"- promete, por sua vez, se renovar e se repetir como se fosse uma mesma história sem fim, seguindo-se geração após geração, presente e futura, como se fosse um destino inefável pertencer à linhagem da minoridade.

Os circuitos discursivos (incluo aqui o administrativo, já que se trata de letra escrita) legitimam a in-significância6. Como já antecipara, vou me deter na descrição e análise de um caso. Particularmente, gostaria de por a ênfase nos efeitos produzidos por um ato que, interceptando o discurso sustentado pela tradição, pôs em evidência o que ela mesma tem se empenhado em ocultar, isto é, a in-diferença entre os vivos e os mortos.

Trata-se de um ato sem inclusão prévia no "campo da minoridade", por efeito do qual se produziu uma ruptura, uma quebra; enfim e de maneira abrupta, produziu-se uma fenda ali onde se apresentara um circuito fechado no Imaginário, sem interdição Simbólica.

Uma menina, a quem chamaremos Malena, tem 13 anos. Ingressa, por decisão judicial, a um lar de trânsito, no qual permanece vários meses. Está grávida, produto de um estupro que, supõe-se, realizou o atual parceiro da mãe da menina.

Malena não estabelece explicitamente uma relação de causalidade entre sua gravidez e o estupro.

O bebê nasce e, aos poucos, Malena começa, mediante uma pressão social médico-higienista, a se ocupar da criança, a dar-lhe alguns cuidados. Embora Malena siga as instruções que o pessoal lhe dá quanto à amamentação, as preceptoras dizem que é necessário "lembrá-la" de que deve fazê-lo porque "ela esquece". O choro da criança não é interpretado por Malena como uma demanda da parte dela.

Uma manhã, uma colega de quarto escuta o bebê chorar -ele tem aproximadamente 30 dias de idade- e acorda Malena para avisá-la. Malena começa a amamentá-lo e fica dormida com a criança nos braços.

A preceptora tinha passado pelo quarto enquanto Malena estava acordada amamentando a criança. Em poucos minutos, a mesma colega de quarto adverte que a criança "está azul". Chama imediatamente a preceptora e esta, face ao estado cianótico da criança, começa a realizar os primeiros socorros próprios do caso, e solicita de imediato o serviço de emergência. A criança morre, apesar das tentativas de reanimá-la a caminho do hospital.

Frente a qualquer circunstância destas características, a léi estabelece a obrigatoriedade de realizar a autópsia, a fim de determinar as causas da morte. No entanto, nesta ocasião, foram necessárias múltiplas gestões para que a mesma fosse efetuada. Os médicos forenses do hospital "não a consideravam necessária" e, em conseqüência, também não o considerou o Juizado de menores que interveio no caso.

A investidura outorgada pelo cargo de "Diretora da Secretaria da Infância" permitiu-me apelar em relação ao caráter de necessidade de "deslindar responsabilidade institucional por parte do pessoal e autoridades da instituição e da área". A referida apelação, curiosamente, retornava com frases que se repetiam por boca de diversos atores representantes das múltiplas instâncias intervenientes (tais como a polícia e o médico forense, o juizado de menores, a diretora da instituição, os chefes de departamento etc.). "A senhora pensa que o bebê foi envenenado?" "se ele já morreu..." "E se foi envenenado? Por que não deixar as coisas do jeito que estão?" É bom esclarecer que estes intercâmbios foram se dando por telefone. Nada foi expressado por escrito.

A um mesmo tempo, pesavam e pressionavam "fantasmas" e "espectros" em torno do resultado possível da autópsia. As causas da morte atribuíam-se às mudanças operadas nos últimos tempos em relação ao trato e tratamento das crianças albergadas nos lares dependentes do município. Fantasmas atravessados quando a ordem judicial estabeleceu que se realizara a autópsia. Não faltavam recursos para fazê-lo; apesar de ser um dia feriado nacional, contava-se com os serviços de plantão.

O relatório forense obteve-se esse mesmo dia: "morte súbita", também conhecida como "morte branca", isto é, asfixia por deglutição do próprio vômito. Uma das causas "mais comuns" de falecimento precoce... não só, lamentavelmente, nos tempos do Antigo Regime.

Os circuitos não legítimos embora sim legitimados (pelos "costumes"?) continuaram se colocando em evidência através de suas omissões. Não estava contemplada a necessidade de nenhuma autópsia; não estava contemplada como "necessária" a comunicação do acontecido à família da menina (neste caso, pelo menos à mãe dela). Também não estava contemplado que se realizara um sepultamento do corpo da criança.

Em relação ao aviso à mãe de Malena, a decissão de fazê-lo revelou, por sua vez, a proteção que ela dava a seu parceiro, com o qual continuava convivendo -como se nada tivesse acontecido-; apesar de que se suspeitava (com fundamentos abonados por uma investigação judicial parcial, já que não se tinha feito o pedido de investigação de DNA, por exemplo) que o parceiro da mãe tinha estuprado e engravidado Malena. A internação de Malena na instituição transcorria para a mãe como se nada tivesse acontecido.

Começou a escutar-se reiteradas vezes uma nova frase: nunca antes se fez isto. A frase era dita em voz baixa, como se as ações estivessem desafiando os espectros que anunciavam, de maneira ameaçadora: "Deixar tudo do jeito que está... nunca antes se fez isto..." "isto nunca aconteceu", "é a primeira vez que isto acontece", "este é um ato sem precedentes" "façamos de conta que nada acontece" "as mudanças são as causas desta morte..."

Nunca antes tinha morrido uma criança que se encontrasse na instituição, ou, nunca antes tinha se dado à tal criança a possibilidade de contar com o ato da humana sepultura? Estas perguntas recebiam respostas escorregadias.

A decisão sustentada de "fazer todas as gestões necessárias, a fim de oferecer humana sepultura à criança falecida, realizando um ritual funerário" produziu efeitos não calculados. Não só em Malena mas também em cada um dos protagonistas das diversas instâncias institucionais intervenientes, incluindo o anatomopatologista do hospital, que decidiu (além de facilitar os trâmites administrativos) participar do ritual funerário, fazendo-se responsável pelo translado do corpo e acompanhando-o até o cemitério. Novamente a frase "este é um ato sem precedentes..." foi utilizada, esta vez, por ele.

Os chefes de departamento, a diretora da instituição e os preceptores decidiram acompanhar o ritual funerário e colaborar em tudo o que dissesse respeito à sua instrumentação, que teve de ser criada.

Avisou-se à mãe da menina que se realizaria a sepultura e ela decidiu assistir. A presença dela foi mais do que significativa.

Ofereceu-se a Malena a possibilidade de dizer se desejava levar flores; ela acedeu, escolhendo uma planta com flores duradouras.

No local e no momento do enterro, enquanto o anatomopatologista carregava o pequeno caixão, escutou-se a palavra, ali onde, até esse momento, tudo parecia ter sido uma sucessão de ações.

A mãe de Malena disse "eu o seguro, eu o levo".

Um dos presentes comentou, posteriormente, que naquele momento ele se perguntou quem se faz cargo do morto?

De retorno à instituição, um silêncio especial foi o protagonista da cena. Os efeitos do ato começaram a se propagar.

Dias mais tarde, o pessoal que não tinha podido participar do enterro por motivos de serviço solicitou "permissão" (como se isso fosse necessário) para ir ao cemitério visitar o túmulo e se despedir da criança.

As perguntas que antes tinham recebido respostas ambíguas começaram a esclarecer-se ao falar das mortes que, durante tantos anos, tinham estado ocultas e silenciadas.

Obviamente, não tinha sido essa a primeira vez (em mais de vinte anos de existência institucional) que morria uma criança, sobre tudo bebês. No entanto, era sim a primeira vez que se dava existência à morte e se realizava um ritual de enterro face à morte de uma criança.

Ato inaugural para outorgar lugar à palavra.

Outras proibições não escritas puderam se transformar em discurso. Por exemplo, o fato de que não se pudesse levantar em braços, nem abraçar nem, muito menos, nomear os bebês. Começou então um tempo de análise de uma prática nunca antes interrogada. Quando uma criança é abandonada e ingressa na instituição, escreve-se, no espaço destinado ao "nome", "N.N.", a mesma denominação que se utiliza para os mortos não identificados.

Alguns atos ressignificam-se après coup. O que antes era dito nas paredes do local, começava a fazer-se discurso. Meu primeiro grande impacto nesta instituição tinha sido o aspecto de "túmulo" que tinha a sala dos bebês; eles estavam alocados na sala mais escura da casa, sem luz e sem ar, entre paredes cinzentas e malcheirosas, às vezes compartilhando o berço. Sem identificação e sem discriminação entre eles, mais próximos a "N.N." do que a contar com um nome próprio. Sem brinquedos nem objetos de qualquer tipo. O local mais iluminado e arejado da instituição estava reservado a vestiário do pessoal e depósito de coisas velhas.

A primeira intervenção, poucos meses antes, tinha apontado a realocar os bebês, criando um outro lugar para eles, algo assim como uma nursery. Com tal objetivo, foi preciso derrubar uma parede do edifício e abrir uma arcada; posteriormente, se trabalhou na identificação dos bebês, eles receberam nomes e, enfim, deu-se a eles um lugar, um lugar digno, mesmo que transitório. Fez-se um registro escrito e fotográfico da história de cada um deles na instituição que os albergava.

Este ato ritual operou simbolicamente, criando uma fenda, perfurando uma estrutura fantasmática e espectral cuja rigidez mantinha a palavra trancada. Se se me permite a metáfora, derrubando uma outra parede.

 

Bibliografia

Ariès, Ph. (1978). História social da criança e da família. Rio de Janeiro, RJ: Guanabara.

Bourdieu, P. (1999). Meditaciones pascalianas. Barcelona: Anagrama.

Donzelot, J. (1986). A polícia das famílias. Rio de Janeiro, RJ: Graal.

Lacan, J. (1999). O Seminário, livro 5. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.

Lévi-Strauss, C. (1985). Antropologia estrutural. Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro.

Mannoni, O. (1973). Chaves para o imaginário. Petrópolis, RJ: Vozes.

 

 

1 Tradução do espanhol: Viviana Gelado
2 Psicanalista; Pesquisadora da Universidad Nacional de Mar del Plata; Doutoranda na Universidad Nacional de Rosario (Argentina)
3 Dirección de la Niñez, Secretaría de Calidad de Vida, Municipalidad de Gral. Pueyrredón, província de Buenos Aries, Argentina, dezembro de 1997-dezembro de 1999. [Estrutura administrativa equivalente a uma Secretaria Municipal da Infância. (N.T.)]
4 Cumpre citar aqui como exemplo o desenvolvimento de Octave Mannoni (1973) em relação à passagem que opera a desilusão sustentada pela crença na "vinda dos Reis Magos".
5 Não vou me deter aqui nos rituais solitários, tema que mereceria um desenvolvimento em separado, excedendo os propósitos desta apresentação.
6 Seguindo a pesquisa de Jacques Donzelot (1986), a economia em jogo merece ser interrogada e explicitada.