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On-line ISBN 85-86736-12-0

An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Oct. 2002

 

O que a Psicanálise pode dizer sobre a Adoção de crianças pequenas?

 

Ana Beatriz Werner

anabeatrizwerner@hotmail.com

 

 


RESUMO

A Clínica com Crianças nos faz pensar sobre a filiação de crianças adotivas. Antes mesmo de nascer ou de ser adotada, uma criança é "inventada" no desejo, no lugar de "falta-a-ser" experimentada pelos pais. A partir daí, é através dessa "invenção" que os pais vão lidar com sua criança na realidade.

Palavras-chave: crianças; adoção; psicanálise.


ABSTRACT

The daily clinical with a child and his adotives parents showed us some problems that emerged among them. Before the birth or the adoption, the parents create a child in their imagination. The parents "invente" their imaginary child with the elements from their own desire and own absence. It will be crucial to deal with their real child.

Key-words: children; adoption; psycoanalysis.


 

 

A idéia de se refletir sobre as questões referentes ao ato de adoção de crianças pequenas surgiu, por ocasião da escrita do que se transformaria em uma comunicação livre no IV Colóquio do LEPSI, em outubro de 2002.A partir do trabalho com a Clínica da Infância, orientada pelo referencial da Psicanálise, toma-se, como ponto de partida, a escuta dos impasses gerados entre uma criança de cinco anos, seus pais e irmãos, e todos que se encontravam, de alguma maneira, envolvidos pelo ato da adoção. A história desta criança será apresentada apenas como ilustração, sem os pormenores que demandaria um relato de experiência clínica. Tal experiência apenas ampara o desejo de se poder dizer algo sobre pais, mães e filhos.

Ao escolher este tema, algumas questões vieram à tona para tentar preencher as "folhas em branco": O que levaria um casal à adoção de uma criança? O que representaria essa criança para a família adotiva? Que lugar essa criança poderia vir a ocupar no desejo dos pais adotantes? Como estaria se efetivando, para os pais, a tarefa do educar sua criança adotiva?

O sentido da adoção de uma criança pequena vai de encontro a uma rede articulada de significações pertencentes a uma história de vida que vinha sendo formulada muito antes dos pais encontrarem a criança que desejariam adotar. Sob o emblema de uma determinada justificativa, mais ou menos consciente, um casal decide adotar uma criança. A justificativa de "fazer um bem", por exemplo, ou mesmo de "livrar a criança de seu destino medonho" pode se traduzir, assim, no ato de uma adoção. Mas, a questão logo se impõe: "adota-se em nome de um trabalho filantrópico?".

Ora, sabe-se que é em nome do desejo, é no lugar de uma falta que surge a criança, seja esta adotiva ou de nascimento. Para Mannoni (1985), a relação fantasmática do filho com sua mãe revela-se assim: "para a mãe, real ou adotiva, existe um primeiro estado, semelhante ao sono, em que ela deseja ‘um filho’, esse filho é, a principio, uma espécie de evocação alucinatória de alguma coisa de sua própria infância, que foi perdida (...) ela cria esse filho futuro sobre o traço de uma lembrança (...) na qual estão incluídos todos os ferimentos sofridos, expressos numa linguagem do coração ou do corpo (...) esse filho (...) quando nasce, ou seja, quando a demanda se realiza, cria para a mãe a sua primeira decepção: ei-lo então, esse ser de carne –mas, separado dela; ora a um nível inconsciente, era como uma espécie de fusão que a mãe sonhava (...) esse filho separado dela (...) de carne vai-se sobrepor uma imagem fantasmática, que terá por papel reduzir a decepção fundamental da mãe" (p.42).

O lugar que a criança é convocada a ocupar como filho então, vai encontrar suas coordenadas simbólicas no terreno de um projeto estruturado regido pela falta enigmática que o desejo materno representa. A partir das chagas narcísicas nasce uma criança: do ideal reencontro com a coisa perdida que, no desenrolar da novela, a criança vem cifrar recebendo nome e sobrenome e que, na concretude real de seu organismo, em um dado momento da história do casal parental, recebe todo investimento libidinal reservado em prol de tal vacância. O que está em jogo na adoção de uma criança pequena é o que vamos chamar aqui de "lavrar", denotando o sentido dos verbos "lapidar", "corroer", "cunhar", "inscrever em tabelião" (em grande Outro), "explorar minas", "redigir", "escrever escrituras", ou seja, é no trajeto em que os pais adotantes fazem para (re)significar uma lembrança de algo "que se quebrou" em algum momento da vida, que entra a criança adotiva, e essa lembrança (inconsciente) que oferta as coordenadas fundamentais para inscrição subjetiva da criança.

Quando, de repente, surgem dificuldades para a criança em seu cotidiano familiar, ou na Escola, é a representação de tal investimento que é colocada em cheque. Os pais adotivos, diante do comportamento considerado como "agressivo" de seu filho em relação aos colegas, encontram uma justificativa ao ato de seu filho: é por ser filho dos pais de nascimento que ele se faz assim socialmente ou, é por ser filho de alcoólatra, outra justificativa, que é assim, por ter pais soropositivos que é agitado. Essas afirmações parentais querem dar ao real a causa de toda a problemática referente à criança.

Sobre a patologia de alguns adolescentes adotados na França, Bernard Penot (1996) nos conta do que pôde concluir sobre a função do imaginário parental para a criança adotada: "(...) é como se o imaginário parental viesse fornecer uma representação possível do investimento originário, e daí por diante tomar seu lugar (...) observa-se então (...) que o impacto de certos preconceitos dos pais sobre sua criança adotiva vai deixar uma marca duradoura, na base de sua vivência (...) tudo se passando, então, como se a fantasia inconsciente dos pais adotantes viesse ocupar o lugar desse investimento originário, que marca a criança com a sua impressão, do qual ela deverá necessariamente se apropriar subjetivamente para aí assentar sua própria vida fantasmática" (p. 122). E a situação é tal que é independente do tempo cronológico que a criança permaneceu com os pais de nascimento, ou se estava num abrigo para crianças abandonadas. O que entra em cena é da ordem de uma sobreposição de imagens, na qual o pequeno (ou nem tão pequeno assim!) vai ancorar suas identificações à tradição humana.

A justificativa da ordem do real para os impasses que sua criança se encontra em um dado momento não diz respeito a um desconhecimento do casal parental da sua função educativa, esta aqui entendida como a produção de referenciais filiatórios. O não-reconhecimento de sua implicação quanto ao sofrimento de sua criança estava muito bem suportado na dimensão da negativa de que "aquela é a sua cria". Penot (1996) já nos alertara: "sabe-se que freqüentemente prevalece, no espírito dos pais adotantes em dificuldade, um desmentido violento do valor suposto dos genitores de sua criança; o que tende a instaurar uma espécie de efeito narcísico negativamente - em bumerangue - entre os ‘abandonadores indignos’ e os ‘ladrões de crianças’ (...) como se esses últimos tivessem tanta necessidade de denegrir os hipotéticos genitores (...) que experimentam, eles próprios, uma incapacidade subjetiva de exercerem sua ‘parentalidade’" (p.125). Podemos dizer que, o casal parental estaria tomado pela relação imaginária que acabara mantendo com os pais de nascimento, como se tivessem que destruir esta imagem de origem para se afirmarem como pais "verdadeiros" perante sua criança.

O corpo da criança acabara sendo o depositário desse conflito fantasmagórico em que os pais se encontravam, que sentiam e conjugavam em seu verbo: a agitação motora, o não poder encontrar um lugar para brincar, a fala emperrada de uma boca que parecia mesmo estar penduricada no seio de uma mãe imaginária. Pensando sobre o que diz Dolto (1989) a criança, no ato de sua adoção, é obrigada a recomeçar todo o seu trabalho psíquico, de estruturação simbólica, que faz a criança ter de começar da "estaca zero", produzir uma espécie de "luto" dos pais de nascimento, ou da instituição a qual pertencia. Por sua vez, a criança precisa ter um tempo para compreender essa outra língua, a dos pais adotantes, adaptar-se a ela, e ela própria adotar seus novos pais, de se autorizar a ser filha de seus pais adotantes.

O "mal-estar" no mundo dos adultos, bem como a sintomática enviada pela criança em resposta ao (des)encontro entre mãe-pai-criançaa adotiva poderia, dessa maneira, embaraçar qualquer possibilidade de emergência de um sujeito. Nessa engrenagem, um projeto de trabalho com a criança deveria traçar um caminho, posto desde a alienação da criança ao discurso do desejo materno, operado pela mãe adotante, à separação, operada pela castração simbólica, representada pelo discurso paterno lembrado, por esta criança, através da voz do pai adotivo. Ao atravessar este caminho, a criança pode assumir um lugar de pertença na família adotante, de filiação ao mundo humano.

Uma história de vida só poderá cultivar laços se a verdade puder encontrar seu justo lugar. Se não puder encontrar vias simbólicas de realização, o desejo enlouquece e conduz corpo, afeto e linguagem a ligações perigosas.

 

Bibliografia

Dolto, F. (1989). Dialogando sobre crianças e adolescentes. Campinas, SP: Papirus.

Mannnoni, M. (1985). A criança retardada e a mãe (M. R. G. Duarte, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes.

Penot, B. (1992). Condição narcísica e emergência do sujeito-sobre a patologia adolescente de alguns adotados (M. R. Oliveira, trad.). In: Corrêa A.I.(org.). Mais tarde... é agora! Ensaios sobre a adolescência (pp.119-137). Salvador, BA: Algema, 1996.