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On-line ISBN 85-86736-12-0

An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Oct. 2002

 

Fluir ou disfluir: eis a questão! Uma discussão sobre a gagueira e a psicanálise

 

 

Roberta Ecleide de Oliveira Gomes-Kelly

Psicanalista. Mestre e Doutora em Psicologia Clínica. Docente do curso de Fonoaudiologia/PUC-SP

 

 


RESUMO

Este trabalho busca discutir a gagueira a partir da Psicanálise. São enfocados o histórico da Psicanálise em relação à gagueira, o papel da família no estabelecimento deste sintoma e a proposta de uma especificidade – a gagueira como uma manifestação fóbica.

Palavras-chave: Gagueira, Psicanálise, Fobia.


ABSTRACT

This article aims to discuss the stuttering with the Psychoanalysis focus. The article discusses about the Psychoanalysis history in relation to the stuttering, the family’s role on this symptom and the proposal of stuttering as a phobic manifestation.

Key-words: stutter,psychoanalysis,phobia


 

 

Falar de gagueira implica sempre na retomada das inúmeras discussões acerca de sua definição, da etiologia, das possibilidades terapêuticas. Inevitavelmente, fala-se, também, sobre a pertinência profissional - quem deve atender o gago? O psicólogo, o fonoaudiólogo, o psicanalista?

Nesta querela, o gago – ou o portador de gagueira – acaba mal-tratado, mal entendido, mal atendido. Neste mau entendimento, o sentido do próprio sujeito que gagueja se perde. Sua fala entrecortada, bloqueada ou repetida se torna o personagem de um enredo, sendo difícil ver-se o cenário, os bastidores e, principalmente, quem gagueja.

Este trabalho fala de quem gagueja: o sujeito gago.

As circunstâncias sábias do cotidiano me levaram ao encontro dos gagos com muita freqüência. A cada sujeito gago, impressiona-me esta forma tão peculiar e dolorosa de se fazer ouvir.

 

1. Um pouco sobre a gagueira:

A gagueira é discutida há muito tempo. Van Riper (1971) nos lembra que não há uma só gagueira, mas um espectro tão variado que nenhuma teoria sozinha poderia dar conta do fenômeno. De maneira geral, pode ser definida como um distúrbio da prosódia; o ritmo da fala está alterado, com bloqueios, hesitações ou prolongamentos – podendo ocorrer movimentos corporais associados (torcer as mãos, balançar a cabeça, etc.).

Hipócrates definia-a como um distúrbio de fala juntamente com todas as alterações da comunicação falada. Demóstenes colocava pedrinhas na boca, ao preparar seus discursos. Aristóteles referia-se a ela como resultado de uma língua fraca. Da mesma forma, Galeno mencionava que os gagos tinham línguas curtas. A preocupação com a etiologia "lingual" – chegando-se a fazer incisões para extração de partes da língua – segue até o século XVII. No século XVIII, vemos a gagueira como resultado da aprendizagem, das emoções e dos processos mentais. No século XIX, a solução para o problema estaria em técnicas de sugestão, relaxamento e distração – outra versão das pedrinhas na boca (Bloodstein, 1993).

A gagueira suscita nas pessoas o desejo de soluções, sejam as do senso comum (simpatias do peixe vivo na boca, da batida de uma colher de pau na cabeça do gago), sejam as bem-intencionadas (Fale devagar! Respire fundo!) ou mesmo as iradas (Pára de gaguejar, menino!)... Sejam as de ordem comportamental (gagueira como comportamento aprendido por condicionamento operante ou clássico), as abordagens discursivas da Análise de Discurso de linha francesa (Azevedo, 2000; Pisaneschi, 2001) ou advindas da Psicanálise.

Os séculos XX e XXI são palco da emergência de outras possibilidades. Uma delas, a do conhecimento genético. Todavia, determinar que há uma causalidade genética na gagueira não leve a muitas mudanças terapêuticas, pois ainda não conseguimos mexer no intrincado relacionamento biopsicosocial. A herança genética na gagueira daria a predisposição, mas o disparador estaria no ambiente ou na forma como o gago sente a gagueira (Kidd, 1984; Andrade, 2000).

Para dar conta da gagueira, em si mesma, predominam as técnicas comportamentais (Syder, 1997; Cordes & Ingham, 1998; Fortier-Blanc & Beauchemin, 2000). No Brasil, temos nomes importantes para a terapêutica da gagueira, seguindo diversas orientações, como: Jakubovicz (1997), Cunha (1997), Friedman (2001), Meira (2000).

 

2. Gagueira e Psicanálise

O século XIX é o do surgimento da Psicanálise e Freud (1888) acompanhou um caso de gagueira: Frau Emmy von N. (Baronesa Fanny Moser): viúva, meia-idade, uma gama variada de sintomas. Dentre eles, uma gagueira associada a tiques e estalidos, interpretada por Freud (1888) como o resultado de dois desejos conflitantes: calar e falar.

A idéia de associar a gagueira ao conflito calar x falar perdura, com versões levemente alteradas, dando ênfase às pulsões, aos embates ego x id x superego ou mesmo enfatizando os conteúdos das representações pulsionais (Coriat, 1943; Anzieu, 1997).

Tais articulações dão conta da causa, mas nem sempre dão indícios terapêuticos. Alguns autores como Putnam (1910) e Scripture (1923) – ambos citados por Bloom (1978) –, Barbara (1960) e Fried (1972) buscaram combinar técnicas comportamentais e a análise dos conteúdos/conflitos inconscientes subjacentes à gagueira, para solucionar a gagueira rapidamente, coisa que uma análise clássica não faria.

Na criança, tal preocupação com a cura tem efeitos importantes na dinâmica familiar. A maior parte das crianças tem um período de "gaguejamento", entre 2 e 4 anos de idade – período de aquisição da fala. Destas crianças, pelo menos 98% terão remissão total. Dos 2% restantes, 1% continuará gago enquanto adulto (Porfert & Rosenfield, 1978; Ardilla, 1994).

Este período de gaguejamento pode ser chamado de gagueira ou de "disfluência normal", já que é uma época em que a criança está adquirindo a língua, construindo seus saberes lingüísticos. Scarpa (1995) aponta que a fluência surge em momentos de frases e colocações congeladas, ou seja, aquelas que a criança importa "em bloco" da fala do adulto. A disfluência aparece nos momentos de construção, de elaboração e de instabilidade lingüística.

Johnson (1941) dizia que a gagueira não está na boca da criança, mas no ouvido dos pais. É a eles que se deve dirigir a atenção, orientando e ouvindo suas dificuldades. Imaginemos, pois, uma criança disfluente. E imaginemos os pais respondendo a isto com aflição, com silêncio ou levando a criança a um especialista. Em geral, este especialista fará primeiro uma intervenção parental, explicando o que a criança está vivendo ou orientando a não exercer pressão comunicativa, que aumenta a tensão e faz gaguejar. Então, na criança, a gagueira tem cura. Ora, como os gagos adultos, em sua maioria, trazem isto desde a infância – apenas uns poucos aparecem gagos na adolescência e na fase adulta isto só ocorre por lesão – temos aí a chave do sucesso!

Se isto for verdade, vamos encher os gagos e seus pais (bocas e ouvidos) de técnicas, bem intencionadíssimas, que tudo ficará fluente. Ledo engano... Alguns terão remissão, sim (2%), com orientações ou mesmo intervenção direta com a criança. Outros não. Diriam os genético-defensores: é a predisposição! E as crianças disfluentes nesta época, que mesmo com pais que aporrinham, que pressionam e estressam, que não se tornaram gagas? Eles não tinham predisposição...

Digo eu: por que, nesta fase de tantas descobertas – de 2 aos 4 anos – da língua materna, do mundo, do corpo, do Édipo, esta criança escolheu ser gaga e não enurética ou padecer de prisão de ventre? Cadê o sujeito criança que, na volta de seu desejo, se fez gago? Não basta orientar os pais. Na escuta à criança, devemos escutar os pais e sustentar o desejo que se apresenta em consonância ou em choque com o desejo da criança. Por que para os gagos seria diferente?

Porque escutar o gago é algo diferente, incomoda e dá vontade de completar a frase, dá vontade de consertar o tropeço, de encurtar a vogal que se alonga, dá a impressão de insegurança, de baixa auto-estima... mil coisas que poderíamos dizer para justificar nossa boa intenção de livrar a criança desta coisa! Se o sintoma faz exercer um desejo, e se a palavra é seu veículo por excelência, não haveria, aí, algo peculiar? Fazer sintoma no veículo mesmo do desejo não é algo singular? A meu ver sim.

Em artigos anteriores (Cunha & Gomes, 1996; Kelly, 1997), indiquei a possibilidade de se pensar a gagueira e as estruturas clínicas, especialmente as neuroses. Por um determinado hábito da fala dos gagos, tanto adultos como crianças, penso em uma neurose, especificamente uma fobia.

Os gagos costumam dizer: "se não fosse ela, eu...", "Porque ela...". É quase como se estivessem se relacionando com uma amante desejada. É fala de neurótico, já que nenhum deles quer abrir mão de seu sintoma tão querido. Mas isto me lembra muito o mecanismo do fóbico, em que tudo estaria bem, se não existisse aquele inseto, elevador, aquela lagartixa, aranha, etc.

O fóbico aloja toda sua angústia em determinado objeto ou situação e este objeto tem a função-fetiche de deixá-lo siderado. Como me dizia uma fóbica de aranhas: "quando vejo uma aranha, fico parada, fascinada!". Fascinada, faz-se-nada, encantada. Para o fóbico, o objeto fóbico é um encanto, um mimo querido exposto a qualquer um, na vitrine da alma que é o nosso comportamento.

Vejo, atualmente, o gago como um sujeito, claro. Mas a gagueira como uma construção fóbica. Quais as diferenças que isto traz a terapêutica? Primeiro, ao ver a gagueira como uma fobia, observo que há um sujeito que tende a substituir a angústia da castração por outra, a do objeto fóbico e goza exatamente aí, através deste objeto que tanto o aterroriza e o faz sofrer. As disfluências apareceriam na mesma época do Complexo de Édipo principalmente pelo seu corolário, a Castração. É uma solução, então, boa como qualquer outra. Como boa solução deve ser encarada e, principalmente, como a solução do sujeito.

O gago, como fóbico, goza localizado. É a palavra, o objeto de investimento, arrastando o ouvinte na mesma ilusão: "a gagueira faz surgir uma cumplicidade no ouvinte, que, como ele, finge que há realmente uma só coisa a impedir a comunicação total. Enganam-se, perversamente, em torno desta possibilidade de harmonia ouvido-boca onde o que falta é varrer a disfluência" (Kelly, 2001, pp. 73-74).

Para finalizar, deixo uma ilustração clínica. Não é uma criança, mas poderia ser: "Luís, 48 anos, chega cheio de formalidades. Aparência meticulosa, detalhista, traz uma carta contando de sua vida, de seus problemas. Faz questão que eu leia. Diz-se alcoólatra, usuário de drogas (cocaína e crack) até seis anos atrás. Está abstêmio do álcool há três meses e pretende permanecer assim. Mas gosta do álcool. Mais até do que das mulheres. E olha que ele as adora. Se pudesse, teria umas tantas namoradas e, sincero que é, contaria para cada uma sobre a outra. Difícil... até então não achou nenhuma que topasse... Depois de ler, peço-lhe que me fale sobre o que li, que me fale dele. Começam os tropeços, as hesitações, os prolongamentos, repetições e tudo o que é o paraíso de uma gaguistóloga! Um gago! Menciono brevemente sua gagueira. E ele: "A-ah! É-é sssou gga-ggo. Mas isso não vem ao caso É m-m-meu ch-charme. O problema é o álcool!"

Decepção... O problema não é a gagueira... Embora clinicando já há algum tempo, é sempre bom termos o tapete puxado, para não padecer de arrogância, para não presumir que se sabe do inconsciente de antemão, como nos lembra Rodrigué (s.d.). O consciente sabe antes e dá com os burros n’água. O inconsciente sabe de coisas que não queremos saber à luz do dia e sabe depois (lembra quando cai a ficha?).

Luís me esfregou na cara o que é o sujeito gago. É alguém dono de seu sintoma, agido por um desejo que o move e transforma. Como ele, sou agida pelo desejo de falar sobre a gagueira. Desculpem-me não ter dado a receita de como atender os gagos. É que eu também não sei...

 

Referências Bibliográficas:

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