5Linguagem-criança e instituições author indexsubject indexsearch form
Home Pagealphabetic event listing  




On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

Criando o novo com as mesmas velhas palavras

 

 

Claudia Rosa Riolfi

Psicanalista, Doutora em Lingüística pela Unicamp, Professora da Faculdade de Educação da USP

 

 


RESUMO

Neste trabalho, através da análise de fragmentos de diálogos de crianças com adultos, procuro examinar a trajetória pela linguagem que a criança faz ao longo da infância. Viso a elucidar a seguinte questão que permanece como pano de fundo para vários de meus trabalhos: se, quando cada um nasce, as palavras são sempre as mesmas, como pode vir a acontecer o milagre de que algo de novo se produza no mundo? Para respondê-la, pontuo momentos nos quais, de maneira pungente, a operação de alienação às mesmas velhas palavras foi levada a seu termo e abriu para as crianças cuja fala foi tomada como objeto de análise, a possibilidade de separação do campo do Outro que é condição para a sustentação das próprias palavras. O trabalho mostra que as palavras "são velhas" apenas na medida em que nós, os falantes adultos, supomos que o signo lingüístico funciona de modo indecomponível e, portanto, temos dificuldade em nos fazer permeáveis aos seus efeitos.


ABSTRACT

In the present article, in which I analyze fragments of dialogues between children and adults, I search to describe the child´s walking trhough the language along its childhood. Its objetctive is to lighten one question that still continues to interest me: if, when everybody is born, the words that he has to learn are the same ones, how is it possible that the miracle of creation happens in the human world? To answer this question, I focus those moments in which two children were able to separate themselves from their culture´s impositions and, therefore, could invent different meanings to the same words. The article concludes that the words are "old" only to the adult beings that think that the linguistc sign functions in a immutable way, and, therefore, experience a great difficulty to make themselves opened to the language´s effects.


 

 

Para Laura e Domenico, pela vida que me emprestam.

Talvez aquele que me convidou de última hora para fazer parte desta mesa-redonda1 tenha ficado surpreso com a prontidão com a qual eu atendi ao seu chamado, pois o fiz de maneira tão intempestiva que, provavelmente, dei a impressão de que o fazia com tamanha rapidez para impedi-lo de mudar de idéia. Independente deste efeito de sentido ter se produzido ou não, escolho iniciar esta intervenção declarando sua verdade em público.

Desejei muito participar da mesa desde que vi o programa do evento, uma vez que me senti profundamente tocada pelo seu título geral: A infância, suas instituições e a linguagem. Sua influência sobre mim deve-se a me remeter a uma questão que, para falar bem a verdade, é a única que sempre, de novo, me interessa por detrás das tantas máscaras que tem podido assumir em minha trajetória como pesquisadora.

Em cada projeto de investigação que inicio, me ocorre, algum tempo depois, perceber que, mesmo em sua nova formulação, consiste na repetição de uma mesma e única pergunta: se, quando cada um nasce, as palavras são sempre as mesmas, como pode vir a acontecer o milagre de que algo de novo se produza no mundo? No meu modo de pensar, esta questão é bastante relevante quando se trata de iluminar a relação ética que um adulto possa vir a ter com sua própria palavra, honrando, através dela, seu estatuto de adulto.

 

A trajetória pela linguagem que a criança faz ao longo da infância

Ao examinar a trajetória pela linguagem que a criança faz ao longo da infância, muito se ganha em relação à compreensão das possibilidades de construção do novo que um adulto pode vir a experimentar através de seus esforços sistemáticos. Em especial, observando a subversão da linguagem que as crianças fazem no frescor de sua enunciação2 — que se produz de acordo com a lógica daquele para quem o sistema lingüístico não está ainda plenamente constituído — podemos compreender que as palavras são velhas apenas na medida em que nós, os falantes adultos, supomos que o signo lingüístico3 funciona de modo indecomponível.

A observação nos mostra que, ao contrário do que acontece conosco, as crianças pequenas mantêm uma relação bastante diferenciada com os signos, pois, geralmente desmontam-nos para criar outros significantes. Ou seja: no que se refere à criação do novo, não se trata do fato que sejamos vítimas da impossibilidade de sermos nós mesmos a origem e a fonte de um novo léxico, mas sim, de sermos prisioneiros dos significados que, para cada um de nós, se cristalizaram ao longo de nossa história.4

O jogo de compor e decompor os signos lingüísticos costuma gerar muito prazer àquelas crianças cujas idades estão compreendidas mais ou menos entre 03 e 10 anos, fato este que se torna visível, observando, por exemplo, as adivinhas que versam sobre a materialidade das palavras com as quais costumam se divertir entre si. Dentre um enorme conjunto deste tipo de brincadeira que circula entre elas, destaco uma que, por envolver uma complexa operação baseada na decomposição de um significante isolado de seu significado mais habitual, me parece paradigmática em relação ao mecanismo de criação que aqui me interessa:

Qual é o contrário de oitenta?
É tchau, desiste!

A facilidade que os pequenos têm para memorizar e fazer circular este tipo especial de enigma aponta para o fato de que, confrontadas com os signos, as crianças têm condições de perceber que, ao se tratar de linguagem, há muito mais do que os conteúdos por ela veiculados. Como, para elas, os sentidos compartilhados numa dada comunidade lingüística ainda não são cristalizados, têm maior facilidade para depreender aquilo que Foucault (1989) chama de "o gramatical puro", podendo, portanto, deixar com que as palavras atravessem-nas de forma diferenciada. Esta permeabilidade dos pequenos à mobilidade da linguagem é o que faz com que, em sua boca, palavras gastas possam comparecer de modo, no mínimo, bastante arejado. Por este motivo, de velhos conteúdos, produzem o novo.

Em outras palavras, a criança tem maior abertura para escutar a primazia do significante, que, no dizer de Lacan 1972-73 "é besta", isto é, não porta qualquer mensagem, e, conseqüentemente, é mais freqüentemente protagonista do estilhaçamento da aparente consistência do signo lingüístico.5

Assim sendo, decidi organizar este trabalho, que tematiza o advento da criação como pano de fundo, em torno de 04 episódios de fala de crianças, circunscritos ao período de 03 anos e 05 meses a 9 anos e 06 meses. Ao longo do trabalho, foram nomeados do seguinte modo: Dissecando o sistema lingüístico; Tirando proveito da própria ignorância; Superando a ingenuidade do adulto; e Fazendo pacto com o adulto através do riso.

Tratam-se todos de instantes que tive o privilégio de compartilhar (ou pessoalmente ou por relato da criança) na vida de uma menina e de seu irmão, ambos bastante interessados pelas palavras e por seus efeitos. Foram protagonizados por crianças distintas, de sexos e idades diferentes, mas têm em comum o fato de remeterem para cenas nas quais houve uma sensível mudança de posição subjetiva dos adultos presentes, mudança esta expressa pela perplexidade, gargalhada, raiva e, finalmente, o riso cúmplice e fraterno.

Ou seja: selecionei aqui quatro cenas nas quais, através de uma certa reviravolta dos signos que é bastante próxima, com relação aos seus efeitos, aos da criação literária, a palavra da criança tocou de modo diferenciado o corpo dos adultos e, deste modo, abriu caminho para a construção de novas realidades.

 

As geniais palavras dos novos

Os exemplos que se seguem procuram exemplificar momentos nos quais uma criança pode ultrapassar os parâmetros de compreensão oferecidos por sua família e, de algum modo, sustentar uma questão própria. Diferentes entre si, têm em comum o fato de que, em seu exercício, ora de modo acidental, ora de modo deliberado, a criança pôde se lançar para além da situação imediata de sua relação com a instituição.

CENA 1: Dissecando o sistema lingüístico

Deixar-se atravessar pelos dispositivos da linguagem, condição necessária para o advento da criação, está bastante relacionado com a possibilidade de demonstrar interesse pelas propriedades do sistema em si.

Por este motivo, vou iniciar esta exploração sobre as palavras dos novos narrando uma historieta, ocorrida quando sua protagonista tinha três anos e cinco meses, cuja principal característica é o fato de que a criança, embora bastante jovem, demonstrou maior facilidade de tomar a linguagem como objeto de análise específico do que sua mãe pôde supor em um primeiro momento.

Trata-se do seguinte episódio :

Surpreendida pela falta da babá e precisando fechar notas de fim de bimestre, a mãe de L. a instala em um "cadeirão" na mesa da sala de jantar. Enquanto a mãe trabalha, a filha desenha com giz de cera em uma grande folha de papel craft. Estão ambas em silêncio. De repente, a filha inicia o seguinte diálogo:

Mãe, o que é "o"?
— Como assim "o", filha? Você está falando do "o" que aparece em "o sorvete", "o menino"?
— Não, não é desse tipo de "o".
— (!) Então não sei.
(...minutos em silêncio....)
— E "pariu" o que é?
— "Pariu" é "teve filhotinho". A gente diz, por exemplo, que a cadela pariu, quando ela teve filhotinhos. Entendeu?
— Entendi.
(...outros minutos em silêncio....)
— E "puta" o que é?
(com tom mais baixo para pronunciar "puta").
Isso é uma palavra para xingar. Tem gente que xinga o outro de bobo, de idiota... Tem gente que xinga de "puta". (Meio brava) Mas isso não é palavra para você falar.
— Tudo bem, mãe, eu não falo, mas é esse o "o" que eu quero saber ...
— Esse "o"? Que "o"? Não entendi nada
. (Perplexa) Conta já e direito onde foi que você ouviu isso!
— Hoje, na hora que o papai me buscou na escola. Ele passou na frente de um homem. Daí o homem botou a cabeça pra fora do carro e gritou pra ele assim, bem altão mesmo: "Puta que o pariu"! É esse "o" que eu nunca ouvi. O que é esse "o"?

(...outros minutos em silêncio, para refletir como explicar isso....)

Esse "o" quer dizer você. Para o homem não berrar "puta que pariu você", ele gritou "o". É para o xingamento não ficar muito comprido. Mais alguma dúvida?

(...novo silêncio....)

— Sim. Se por acaso tivesse sido você que tivesse me buscado na escola hoje e se fosse você quem fizesse coisa besteira com o carro, o homem ia ter gritado com você também, não ia?
— Acho que sim....
— Então, se ele tivesse gritado com você e não com o papai, ele tinha berrado a mesma coisa ou tinha berrado "puta que a pariu"?
— Ele teria que ter berrado "a pariu", mas acho que quem grita assim na rua não sabe disso. Entendeu?
— Entendi.

Para quem não está habituado a prestar atenção na fineza de raciocínio que as crianças podem ter, é no mínimo surpreendente que, confrontada com a expressão "puta que o pariu!", o interesse de L. não recaiu sobre seu significado, mas sim, sobre a linguagem propriamente dita. No caso, a menina sustentou um longo diálogo para descobrir como se faz o feminino do pronome pessoal do caso oblíquo no sistema lingüístico que rege a Língua Portuguesa.

A menina teve de fazer um longo caminho para contextualizar o sintagma no qual ouviu o "o" (objeto de seu interesse), coisa que só foi possível por ela ter insistido em uma série de tentativas visando superar a perplexidade, preconceitos e ignorância de sua mãe. É, portanto, para além da compreensão imediata de sua genitora, que L. pôde sustentar uma interrogação sobre o que significa falar, que, por sua vez, abre as portas para a ordem desejante (Lacan, 1960-61).

Coube à mãe apenas confiar em sua filha e continuar respondendo como pôde. Neste sentido, pode-se mostrar que a mãe proporciona à criança aproximar-se da via do desejo não por suas respostas em si, mas, em primeiro lugar, por supor na criança, mesmo em tenra idade, um sujeito capaz de saber.

CENA 2: Tirando proveito da própria ignorância

Sempre que falamos, estamos em pleno terreno do equívoco generalizado, embora nem sempre notemos isso. Normalmente, quando isso acontece, causa vergonha ou embaraço, pois, não gostamos de dar a ver a instabilidade no campo dos sentidos, em especial, quando é causada por nossa ignorância lingüística ou "enciclopédica". Naqueles momentos nos quais poderíamos tirar proveito para aprender, nós adultos nos calamos.

Como se pode ver no exemplo que se segue, protagonizado por D. aos 4 anos e 4 meses, as crianças, ao contrário, se beneficiam do fato de ignorar que não têm condições de participar da conversa em pé de igualdade com os mais velhos, em especial, quando, como no caso abaixo, a mãe o tem em altíssima conta, e, conseqüentemente, demora a reconhecer um elemento dissonante na conversa.

Mapa turístico da Bacia de Angra nas mãos, D. recorda a recém acabada semana de férias de verão com sua família. Todos tentam assinalar onde foi possível observar cada coisa durante mergulho livre. Várias ilhas foram mencionadas até que a irmã mais velha interroga, com a mão no mapa:

Por que não fomos nesta ilha? Seu pai informa:

Não pode entrar, é a Ilha de Caras, referindo-se a um local mantido por uma revista periódica para fotografar celebridades durante o verão.

Trata-se de uma revista que não faz parte do acervo de leituras da família e, conseqüentemente, nenhuma das crianças tem condições de recuperar prontamente a que o pai se refere. Ignorante de sua própria ignorância, D. afirma, rindo muito:

Ainda bem que não fomos! O que eu e meu pai iríamos ficar fazendo lá?!.

Perplexa com aquilo que interpretou como sendo uma crítica pertinente à banalidade do local, sua mãe interroga o garoto sobre os motivos que o levam a não querer conhecer aquela ilha, sendo brindada com a seguinte declaração amorosa:

Uma ilha só de caras! Que coisa mais chata! O que meu pai e eu iríamos ficar fazendo lá, sem as nossas meninas!

Por não estar de posse da informação de que "Caras" é o nome próprio de uma publicação, D. interpreta este significante como conotando um "humano do sexo masculino". Por fazê-lo, acaba criando uma imagem cômica, senão ridícula: a existência de uma ilha na qual se concentram os homens que, ao menos durante sua estadia ali, escolheram pelo exercício de uma posição homossexual, não podendo admitir a presença do sexo oposto.

Ao imaginá-la, num só golpe o menino se diverte a ponto de rir, expressa sua identificação ao pai e, de quebra, afirma seu gosto pela companhia das mulheres da família, para ele, presença essencial para que a diversão tenha graça. Mesmo que de maneira involuntária, portanto, na quebra do signo "Ilha de Caras", D. usa as mesmas palavras para dizer outra coisa, e, o que é mais importante, ele que, sempre que tem oportunidade comenta seu desejo de crescer e se tornar "um pai", as usa para reafirmar sua posição sexuada no meio familiar.

Ou seja: é certo que D. só pôde iniciar sua intervenção por ignorar sua ignorância, mas, ao invés de fazê-la calar, o menino transforma sua interpretação equivocada numa reafirmação de seu desejo.

CENA 3: Superando a ingenuidade do adulto

Mais velhas, as crianças tem condições para, deliberada e calculadamente, fazer uso da operação de reviravolta do campo dos sentidos para incidir sobre a instituição, como se vê na cena abaixo recolhida quando L. tinha acabado de completar 08 anos.

L. vinha se queixando diariamente do nível de ruído produzido pelos professores e colegas da segunda série da escola básica. De diversos modos, assim que chegava em casa, ela expressava seu incômodo com o alto índice de ocorrência de gritos, coisa que, pela primeira vez, ela estava tendo a "oportunidade" de escutar. Boa aluna, ela não se conformava de ter de "ficar com os ouvidos doendo" sem que, em sua própria avaliação, tivesse dado motivos para isto e, por esta razão, constantemente, interrogava sua família sobre o motivo de alguns de seus novos professores agirem de modo tão mais agressivo do que os da escola precedente. Um dia, quando, segundo ela, a professora gritou mais alto do que o costume, L. tomou coragem e disse:

— Professora, meu ouvido está doendo...
Ao ser interpelada, a professora respondeu:
— L., olha para os seus colegas, o que você acha que eu devia fazer?
— É para
responder mesmo, professora?
— (mais alto) O que você acha que eu devia fazer?
— Eu acho que a senhora devia desistir do magistério, pois já demonstrou que não tem nem vocação nem competência para esta carreira....

Nesta cena, percebemos que o adulto, por assim dizer, cavou sua própria cova. Ao escolher a forma de sua pergunta, o que você acha que eu devia fazer, acabou se aproximando de uma forma comumente utilizada pelos adultos para pedir conselhos. Por sua longa trajetória de curiosidade em relação à linguagem, a menina tem condições de perceber que se trata de uma pergunta retórica, que, na discursividade que vinha sendo construída na instituição pelos adultos equivalia a uma demanda de legitimação de suas atitudes: após observar seus colegas, confirme comigo que esta é a única atitude possível a ser tomada.

L. não concorda com a interpretação da professora, e, num primeiro movimento, dá uma chance para o adulto para que desista de sua posição enunciativa, quando lhe indaga a respeito da pertinência de responder literalmente o que havia sido perguntado. A ingênua professora, entretanto, não desconfiou de sua manobra argumentativa e repetiu sua pergunta, permitindo que, irreverente, a menina usasse da ironia para responder de acordo com o que estava sendo expresso na literaridade de seu enunciado.

Transformando-nas na única coisa que de fato não eram (um pedido sincero de conselho) a criança pôde reafirmar sua posição frontalmente frente ao adulto e, deste modo, abalar ao menos minimamente a inércia que vinha contaminando o seu ambiente escolar.

CENA 4: Fazendo pacto com o adulto através do riso

O humor consciente é um importante ganho cultural para a criança pois, exercendo-no, pode não só se divertir como, para além disso, renovar seu laço social6 com os adultos. Numa subjetivação do gosto de fazer circular os trocadilhos e as adivinhas inventadas por terceiros, como se vê no que se segue, aos nove anos e seis meses, L. os cria e os partilha com sua mãe, visando unicamente o divertimento de ambas.

Circulando no condomínio onde moram, L. e sua mãe, lêem o seguinte cartaz:

COMPAREÇA À ASSEMBLÉIA ORDINÁRIA

Um pouco perplexa, L., que está a par de um grande conflito em andamento no condomínio, interroga:

Este é mesmo o nome da assembléia ou estão xingando ela? Esclarecida sobre o significado da expressão "Assembléia ordinária" ela emenda, com cara de sapeca:
Ia ficar bem engraçado se a gente pusesse uma vírgula logo depois de "Assembléia", não é mãe?

Mobilizando um complexo conhecimento da sintaxe de sua língua, a menina propõe a transformação de um adjunto adnominal em vocativo através da introdução de uma pontuação antes inexistente. O efeito de humor proposto pela menina constitui-se no deslocamento do qualificador "ordinária", que no cartaz incide sobre "assembléia", para as leitoras do cartaz.

Em sua pilhéria passa a incidir sobre as leitoras um julgamento de ordem moral do qual ela exclui a si a sua mãe. Vale dizer: por compartilhar confidentemente sua brincadeira, um pouco "apimentada" para a faixa etária, à mãe, a menina não só se diverte como se inscreve "no mesmo time" da sua mãe: o das mulheres extraordinárias...

 

Considerações finais

Em diversas culturas, os primeiros anos da vida do humano consistem no momento em que, através do que pensamos ser um uso da linguagem sistemático, deliberado e calculado, estamos tentando fazer com que a criança assuma, como se fossem suas, as mesmas velhas e gastas palavras que um dia nós assumimos. É por meio desta operação que transmitimos o saber inconsciente (Cf. Lacan, 1969-70), aparelho que, ao organizar os modos de satisfação da criança, permite que a vida cumpra seu ciclo.

Pelo menos até alguns anos atrás, a escola e demais aparelhos destinados à educação em sentido amplo (confissões religiosas, clubes de escoteiros, agremiações esportivas, etc.) têm se unido para tentar "domesticar o olhar" daquele que chega ao mundo, transmitindo-lhe uma reverência às palavras de ordem que são importantes naquela comunidade lingüística que, por sua vez, fornece àquele que ali foi incluído um parâmetro de comportamento coerente com uma matriz de sentido que faz o novato ver o mundo do mesmo modo como o via a geração anterior.7

Ao obrigar que uma criança se refira a diversos ideais — coisa que, evidentemente, só pode fazer por meio das palavras — as diversas instituições que se encarregam de apresentar os construtos culturais acumulados através dos tempos à criança obrigam-na, em certa medida, a se colocar como origem de enunciados que a precederam em muitos séculos e, deste modo, tendem a opacificar a possibilidade de que o recém-chegado inicie um novo ciclo de criação.

Lacan (1964) chama este processo de "assujeitamento",8 esclarecendo que se trata de um mecanismo composto por dois tempos: o da alienação (assunção do sentido social de um significante) e o da separação (quebra do signo lingüístico e conseqüente advento do sexual). Neste trabalho, procurei mostrar momentos nos quais, de maneiras diferentes, esta operação foi levada a seu termo por uma criança, desembocando na possibilidade de separação do campo do Outro que é condição para a sustentação das próprias palavras.

 

Referências bibliográficas:

DUCROT, Oswald. O esboço de uma teoria polifônica da enunciação. In: O dizer e o dito. Campinas: Editora da Unicamp; São Paulo: Pontes, 1987. Pp. 161-218.

FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

LACAN, J. (1956). O Seminário sobre "A carta roubada". In : Escritos. São Paulo : Perspectiva, 1978, pp. 17-67.

__________. (1960-61). O Seminário. Livro 8. A Transferência. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1992.

__________. (1964). O Seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1979.

__________. (1969-70). O Seminário. Livro 17. O avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1992.

__________. (1972-73). O Seminário. Livro 20 Mais. Ainda. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1982.

PÊCHEUX, M. (1990). O Discurso. Estrutura ou Acontecimento. Campinas, SP : Pontes, 1990.

RIOLFI, C. R. (2005). Erro de leitura ou equívoco constitutivo (de sujeito)? Apontamentos sobre a singularidade na fala de uma criança. In: LIMA, R.C.C.P. (org). Leitura: múltiplos olhares. (título provisório) Campinas, SP: Mercado de Letras, no prelo.

SAUSSURE, F. (1989) Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix.

 

 

1 Leandro de Lajonquière, a quem agradeço infinitamente pela confiança.
2 Cf. Ducrot (1987) para uma discussão mais extensa sobre a noção de enunciação.
3 Cf. Saussure (1989) para o conceito de signo lingüístico e exposição de seus componentes.
4 Ressalte-se que esta suposição está na base da permanência e circulação de certos mitos cujo efeito é, no mínimo, o de privar o sujeito de ter uma experiência de vida mais leve e intensa, como, por exemplo, o enunciado que, visando desqualificar seu empenho em investir na relação, costumeiramente ladainham as "mui amigas" para a jovem que começa a ter problemas com seu parceiro: homem é tudo igual, só muda de endereço. Fardo pesado a ser carregado por muitas mulheres, a falsa suposição de que um "homem" será sempre idêntico a um outro "homem", ou seja, que um dado significante está colado ao que parece ser um significado unívoco as condena a viver sempre do mesmo velho modo: aquele que, não as satisfazendo em nada, oferece o consolo de não contradizer o que parece estar consolidado no campo da linguagem.
5 Em trabalho precedente (Riolfi, 2005), já tive a oportunidade de expor que, em grande parte, a criação deste tipo de efeito relaciona-se ao que Pêcheux (1990) afirma sobre a linguagem, qual seja, que, nela, o equívoco é um fato estrutural, uma vez que existe um real próprio da língua (aquilo que escapa a toda tentativa de simbolização). Qualquer um que está habituado a conviver com crianças pode testemunhar que para elas, para quem o sistema lingüístico ainda não funciona de modo completamente constituído, o comparecimento do real da língua ocorre sistematicamente, infelizmente, na maioria das vezes passando despercebido em meio de sua eloqüente falação. Observando-nas, podemos notar que a seguinte característica da linguagem humana é bastante mais acentuada em sua fala: "todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro" (Pêcheux, op. cit: 53).
6 No sentido adotado por Lacan nos Seminários dos anos 69-70 e 72-73.
7 Por longo tempo, esta foi a aposta das instituições que cuidam das crianças. Ela se assentava na justificativa segundo a qual, para que cada um consiga viver em sociedade, ao menos alguns dos modos de funcionamento socialmente legitimados deverão ser assumidos em primeira pessoa. Neste raciocínio, a incorporação de velhas e gastas palavras é, de certo modo, o esteio da manutenção da cultura. Atualmente, são vários os trabalhos que procuram denunciar a derrisão do poder da linguagem e suas conseqüências. Só para citar uma: há algum tempo, tive a oportunidade de ver de uma janela (felizmente, sem conseqüências muito graves para ninguém) crianças já grandes, em um condomínio de classe média, fantasiados de super-homem, pulando alegremente de um barranco mais alto do que um homem adulto por cima de uma moita de bambus utilizados como paisagismo em um jardim logo abaixo... Como este assunto em si consistiria em objeto de um longo trabalho, decidi por ater-me ao longo do texto, no exame de fenômenos que ainda aparecem ao menos naquelas ilhas nas quais o amor às palavras continua a ser transmitido através das gerações.
8 Para o conceito de sujeito, definido como sendo um efeito de linguagem por Lacan, confira também Lacan, 1956.