5A infância, a escola e os adultosAutismo: uma estrutura decidida? Uma contribuição dos estudos sobre bebês para a clínica do autismo author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

A intervenção psicanalítica nas psicoses não decididas na infância

 

 

Leda Mariza Fischer Bernardino

Psicanalista, Professora titular do Instituto de Psicologia da PUC-Paraná

 

 


RESUMO

A infância sedia o tempo de passagem do estado de infans ao estatuto de sujeito desejante. Caminho que nem sempre ocorre sem tropeços, às vezes tão graves ao ponto de restar-lhe tão somente o lugar de objeto. No caso destes tropeços e do diagnóstico de uma psicose não decidida, a intervenção psicanalítica surge como o tratamento privilegiado no qual, na relação transferencial com este Outro que suporta ter faltas, o encaminhamento estrutural pode tornar-se outro.

Palavras-chave: psicoses não-decididas - transferência - tratamento psicanalítico.


ABSTRACT

The childhood is the time of crossing to the infans condition to the desiring subject status. In this passage serious obstacles could appear and in case of the child is placed in an object place, a diagnosis of non decided psychosis can be formulized. The psycho-analytic intervention appear like a kind of treatment in which the transferring relationship with someone that tolerate to lose can change the evolution of the structure.

Key-words: non-decided psychosis - transferring relationship - psycho-analytic treatment.


 

 

A infância sedia o tempo de passagem do estado infans – o filhote humano ainda não falante – ao estatuto de falasser, sujeito falante e desejante.

Os impasses colocados pela condição humana – a qual resulta da articulação entre um organismo biológico próprio e uma organização simbólica social – obrigam cada ser nascente a dar conta de sua existência numa dimensão que lhe é exterior e desconhecida.

Nesse percurso, passará do "ser um corpo" para o "ter um corpo", sendo requisito para tal que um Outro dele cuide e nele faça inscrições desta outra ordem que é linguageira.

O desejo deste Outro – geralmente o agente materno - é fundamental para fazer deste "pedaço de carne" um participante do campo simbólico, na medida em que, ao tomá-lo como objeto de seu desejo, a mãe torna-o parte de si mesma pelo viés da representação, da substituição, ou seja, o filho passa a ser o que Freud nomeou de falo materno, vindo restituir para esta mulher o que ficara em aberto na construção de sua feminilidade. O filhote humano, agora referido ao falo, encontra um primeiro sentido para si, ou seja: fazer-se de objeto para o gozo do Outro. Terá de passar por aí para poder ter acesso a um lugar.

O desvio que possibilita o distanciamento necessário para não ser apenas puro rebento biológico dá-se pela entrada no campo do desejo do Outro que, deste lugar, imprimirá imagem e significantes fundadores deste mais além que são os registros do Imaginário e do Simbólico. Operação especular de montagem da imagem corporal, deixando como herdeiro o eu ideal. Operação de entrada no campo da linguagem, pela via da alienação: ao gozo do Outro, nas pulsões; aos significantes primordiais, no traço unário.

Trata-se de chegar neste lugar para poder abandoná-lo. O desafio é então tornar este desejo próprio, pela via da separação. Novo nascimento, desta vez subjetivo.

Há um tempo primordial de ser objeto para o Outro – tempo do Narcisismo primário, momento especular, sustentado pela ilusão do Outro-todo.

Esta ilusão vai aos poucos sendo quebrada pelas alternâncias do agente deste Outro – esta mãe que se alterna em presenças e ausências e se faz, portanto, faltante. O falo que o bebê se faz para ela já não é suficiente para retê-la. Os fonemas que daí começam a surgir como presenças sonoras substituindo as ausências reais do objeto dão a saída: o pequeno sujeito se arrisca no campo das palavras. O Fort!Da! é disso paradigma: a criança entra no jogo da linguagem porque o Outro falta e o caminho é a substituição do real pelo significante.

Ainda é preciso ir adiante, rumo à subjetividade: como dar significados a esta falta e, mais, como encontrar significado mais além do falo? A Castração do Outro é encontrada na novela edípica: o Pai como nome deve ser encontrado também como real. Da inscrição do Nome-do-Pai surgirá a possibilidade da identidade própria.

Verificamos a evolução que ocorre na relação da criança com o Outro, possibilitada pela evolução que as gradativas aquisições desenvolvimentais permitem. É disso que resulta sua mudança de posição: de objeto para o Outro, ela passará a ser sujeito de sua história. De externa, a estrutura simbólica torna-se o eixo inconsciente a partir do qual ela posicionará sua enunciação.

Elementos essenciais desta trajetória: o falo - chave das significações do campo simbólico - e a castração, que deve incidir primeiramente no Outro, para então atingir o pequeno sujeito. Ao poder se fazer perder pelo Outro (que, por sua vez, aceita se deixar marcar pela falta), procedendo à montagem da fantasia fundamental e da metáfora paterna, a criança surgirá como sujeito dividido, desejante, à espera do ato de confirmação que dará a ver ao Outro social sua estrutura. Ocasião que, na nossa cultura, não se dá antes do final da adolescência.

Os tropeços neste caminho abrem o leque das psicopatologias da infância.

Entendemos as formas mais graves destas patologias – as psicoses – como formas ainda não organizadas como estrutura, nas quais encontramos o chamado "núcleo psicopatológico" formado por um conjunto de sintomas, que constituem, na sua maior parte, defesas em relação ao Outro-todo característico da Psicose. Entretanto, será que poderíamos situar esta sintomatologia como demonstrativa, já na infância, da estrutura psicótica? Sabemos, desde Lacan, que na estrutura psicótica impera a foraclusão do Nome-do-Pai, ou seja, a não inscrição definitiva da falta no Outro. O tempo da infância, caracterizado por um tempo gerúndio, de inserção no campo da linguagem, de inacabamento em relação à identidade, poderia abrigar a idéia de estrutura? Pois, a clínica no-lo demonstra, dificilmente, na infância, estas defesas de aparência psicótica se apresentam sem, paralelamente, encontrarmos uma possibilidade de abertura para o Outro, de apelo ao outro, característicos do Outro da Neurose.

Por que conceber a estrutura como não decidida na infância?

Primeiramente, há razões teóricas. Se pensarmos, como Lacan, que o inconsciente é estruturado como uma linguagem; se considerarmos, como Freud e Lacan, que a estrutura é obra das palavras; e, ainda, que no campo das palavras o acesso à significação se dá no só-depois, não poderemos conceber o tempo da infância como o tempo do ato que dá a ver a estrutura. A infância é o tempo das inscrições e da confirmação destas inscrições, vindas do Outro. Assim, a inscrição fundamental de que se trata – do Nome-do-Pai como instância representativa da falta estrutural do campo simbólico – não se faz de uma vez. São necessários os tempos de inscrição, apagamento e interpretação, responsáveis pela inscrição dos significantes primordiais. Propomos estes tempos articulados aos tempos lógicos do instante de ver/ tempo para compreender e momento de concluir, nos quais as escansões entre um tempo e outro marcam as vacilações do sujeito, enquanto a função da pressa é essencial, na medida em que antecipatória do que ainda virá se confirmar. Todos estes tempos, a criança não os vive sem os outros, pois o Outro é representado por encarnações sucessivas, pessoas das quais a criança espera palavras que tornem possível seu acesso ao sentido próprio. Nos diversos momentos em que se trata de passar de uma operação psíquica para outra – momento especular / FortDa! / Édipo – em que as significações ficam "caducas" e se rompem, a criança fica em suspensão, mas ainda aberta ao que virá do Outro, para só se cristalizar em sintomas defensivos graves quando o vazio da falta de significante no Outro for absoluto, não intermediado por nenhum interlocutor. Em outras palavras, para a foraclusão do Nome-do-Pai se estabelecer como mecanismo básico de posicionamento no campo da linguagem, é necessário que esta função paterna não se apresente enquanto nome no primeiro momento (tempo do especular e da alienação), nem se apresente como real no segundo momento (tempo edipiano), e ainda assim, até a adolescência (o momento de concluir), é possível que uma latência (o tempo para compreender) – mesmo que longa – represente um tempo de espera de uma sustentação possível desta função no Outro, ou seja, de uma significação fálica.

Em segundo lugar, há razões clínicas, que se referem principalmente ao posicionamento do clínico. Sustentar um diagnóstico de psicose na infância pressupõe imprimir à direção do tratamento condições contrárias às necessárias para o surgimento de um sujeito, quais sejam: a antecipação subjetiva, a aposta do analista nas possibilidades desejantes de seu analisante. Sem esta aposta, sem esta colocação em ato do desejo do analista de que ali possa surgir um sujeito, não haverá análise possível.

É neste sentido que a psicanálise aparece como o tratamento privilegiado para as crianças que se apresentam nesta encruzilhada estrutural entre psicose e neurose, entre ocupar diante do Outro a posição de objeto ou de sujeito, respectivamente.

As intervenções propostas pelo campo social e pelo campo médico/psicológico para as psicoses – tais como a modificação de comportamento, a programação psicolingüística, os métodos de treinamento – mantêm a criança na posição de ser objeto para o Outro, Outro este que aparece como completo, detentor do saber, na mesma posição justamente do Outro da Psicose – não barrado, todo, não castrado.

Na psicanálise, o analista como representante do discurso psicanalítico surge como um interlocutor no campo das palavras, para acompanhar a criança nesta travessia em busca dos significantes que lhe sejam próprios. Ao tomar o analisante como sujeito de desejo – mesmo que como antecipação, aposta clínica –, o analista aponta para uma outra escolha estrutural possível para a criança.

Entre a certeza de ser objeto para o Outro – materno ou das várias terapias instrumentalizantes – e a incerteza que marca o lugar desejante, está a chance da criança de se posicionar como sujeito.

Trata-se de um fato de estrutura, como Lacan bem o demonstrou: ao Outro, tesouro dos significantes, falta significante que dê conta do que é o sujeito. Esta falta, fonte de todas as neuroses, é justamente a chance, para cada sujeito, de encontrar-se a partir da construção de um sentido próprio. E o psicanalista, por seu confronto cotidiano com a castração, pode acompanhar uma criança que se desencontrou da falta ou nela se perdeu, na busca por seu lugar de enunciação.