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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

A criança falada e a cena de quem a fala1

 

 

Valdir Heitor Barzotto

Faculdade de Educação da USP

 

 


RESUMO

Examinando textos acadêmicos que versam sobre o ensino de Língua Portuguesa, verificamos a existência de uma imagem de criança para representar a criança inserida no contexto escolar que vai sendo delineada em sua escrita. Paralelamente, deparamos- nos com a montagem de uma cena, na qual os autores oferecem imagens de si que, em alguns aspectos, são equivalentes, àquela da criança. A partir desta percepção, assumimos a tarefa de analisar especificamente os procedimentos de escrita presentes nos referidos textos, prestando atenção nas relações estabelecidas entre o autor e as palavras dos autores que ele cita. Baseando-nos no modo como os autores aqui estudados se comportam frente às palavras de terceiros, acreditamos poder compreender melhor o que move os autores para apresentar tais imagens de crianças bem como compreender melhor os procedimentos de escrita na universidade.


ABSTRACT

Having examined the academic production that foccus Portuguese learning and teaching, we have verified a child´s image to represent the real child that is in scholl context is, litle a litle, being drawn in the academic texts. Meanwhile, as the analysis of that production progressed, we have noticed that a construction of one scene pops up in the texts. In that scene, the academic authors offer images of themselves that, is some aspects, are equivalent to those childrens´ images that have being previously constructed. After that perception, we have decided to fulfill the task of analysing the writing proceedures that have being utilized in the already mentioned production, especially taking the relation that have being stablished by its authors and the authors cited by them into consideration. Taking the authors´ behavior in relation to the words that have been written by different people as a point of depparture, we believe that it will be possible to better understand the author´s reasons to present those imagens of children that they have presented, and, besides, to better understand the writting proceedures inside the university.


 

 

1 - Apresentação

Visando tematizar diversos pontos relacionados à educação, os trabalhos acadêmicos sobre o ensino freqüentemente mobilizam, de forma explícita ou implícita, um saber pretensamente universalizável sobre crianças, delineando, deste modo, uma "imagem de criança" aos olhos do leitor. Isso ocorre porque, ao longo de sua argumentação, estes textos incidem, ao menos tangencialmente, sobre o que elas falam, as leituras que fazem, enfim, sua "cultura", construída de modo a parecer homogênea.

A presente intervenção, portanto, justifica-se pelas contribuições que estudar alguns dos mecanismos lingüístico-discursivos mobilizados para dar consistência a um imaginário poderia trazer para ultrapassar a compreensão do que seja uma criança a partir do que propõe o autor do texto, em detrimento do que sua própria experiência teria permitido construir. Uma investigação deste tipo constitui um convite para os empreendimentos que vêm sendo feitos pelas pesquisas em Análise do Discurso, Psicanálise e História Cultural, para que o estudo da leitura e de seu ensino possa, cada vez mais, produzir efeitos.

Com tal pressuposto, tomamos para análise textos acadêmicos que versam sobre o ensino de Língua Portuguesa, parte de nossas leituras cotidianas, e procuramos verificar qual é a imagem de criança que vai sendo delineada em seu interior.

Ao iniciarmos uma análise mais demorada destes textos, entretanto, verificamos um mesmo percurso de escrita que parece ser seguido em vários dos textos acadêmicos, que procuraremos explicitar neste trabalho. Examinando tal percurso mais detidamente, nos deparamos com a montagem de uma cena na qual, paralelamente à imagem da própria criança sobre a qual se fala, o autor oferece uma imagem de si mesmo que, parece-nos, está vinculada à primeira.

Ou seja, parece-nos ser possível afirmar que, na parcela de ficcionalização que todo texto acadêmico comporta, é possível encontrar um personagem encenado pelo próprio pesquisador. Esta afirmação amplia para os textos acadêmicos um outra, feita sobre textos literários, por Rassial (1997:98): "...uma das dimensões da escrita (...) é de propor personagens, narrativas sobre as quais o leitor poderá, ao mesmo tempo, projetar-se e sustentar suas identificações."

Frente a estas observações, nossa tarefa tornou-se, então, verificar a imagem da criança de modo indireto, ou seja, observando a imagem que o pesquisador apresenta de si mesmo. Acreditamos que podemos nos aproximar de uma percepção desta imagem analisando os procedimentos de escrita presentes em alguns textos acadêmicos que versam sobre o ensino de Língua Portuguesa, prestando atenção principalmente nas relações estabelecidas entre o autor e as palavras dos autores que ele cita. Dessa forma, nos depararemos com a imagem de criança não só pelo que se diz sobre ela, mas também pelo modo como o autor do texto acadêmico em análise se comporta frente às palavras de terceiros.

 

2 - Alguns procedimentos comuns nos textos analisados

No que se segue, o leitor encontrará referências aos procedimentos de incorporação da bibliografia e à postura do pesquisador sobre o local e as condições em que encontra a criança.

2.1 - sobre os autores lidos

Talvez com as considerações que fazemos nesta sessão, ao invés de apresentarmos algo novo, estejamos também apenas traduzindo um sentimento de insatisfação que parece estar crescendo de modo compartilhado entre os docentes que participam de bancas examinadoras de trabalhos de Pós-graduação. A mesma insatisfação, por vezes, sentimos sobre nossos próprios trabalhos, principalmente se fomos alunos de pós-graduação nas últimas décadas e continuamos investindo na pesquisa.

Em alguns trabalhos acadêmicos, talvez mais especificamente em dissertações de mestrado, temos verificado que, mais notadamente no capítulo de resenha teórica e, ademais, no restante do trabalho, os autores arrolados são mais úteis para confirmar o que o candidato a mestre está querendo sustentar do que para estabelecer uma discussão a fim de chegar a uma perspectiva que melhor auxilie na análise do objeto pesquisado.

Devido a este procedimento, que poderemos chamar de "listagem", temos uma crescente ausência de discussão ou confronto entre perspectivas teóricas diferentes, o que tem causado cada vez mais preocupações com os rumos da produção do conhecimento na Universidade. Embora isso tenha sido justificado freqüentemente pela falta de tempo para o amadurecimento da compreensão do que foi lido em função da diminuição do tempo para a integralização dos cursos de pós-graduação, preferimos, para não incorrermos em unilateralidade, pensar em outras causas para a ausência de uma maior criticidade em relação à bibliografia lida.

Mesmo que se argumente que a crítica aos posicionamentos dos autores não citados em uma dissertação de mestrado se dê justamente pelo seu silenciamento, pelo fato de sequer terem merecido citação, o efeito de recortar trechos "alinhados" ou "de acordo" com o que se está procurando afirmar ou demonstrar, pode construir uma idéia de homogeneidade entre os autores, e mesmo de verdade, ou ainda, de direção única a ser seguida.

Essa constatação aponta para a importância de se formar um leitor do texto acadêmico mais ativo e mais produtivo, em especial na graduação para que não se submeta a panoramas com tendência a monossemização, tal como são apresentados em alguns trabalhos acadêmicos.

Para exemplificar o que estamos dizendo, apresentaremos alguns apontamentos sobre um excerto de 06 parágrafos de um texto acadêmico, os quais permitem indiciar o tipo de procedimento que estamos colocando em discussão. Algumas de suas palavras foram alteradas para preservar seus autores empíricos, mas, embora não sejam localizáveis tal como aparecem aqui, são representativos de dados que podem ser facilmente encontrados na produção que circula hoje entre nós, podendo ser considerada uma tendência na produção contemporânea.

Digamos que, após apresentar seus posicionamentos sobre o que ocorre no ensino de Língua Portuguesa, se procure reforçar o que foi afirmado previamente no texto com uma asserção semelhante à que segue: As afirmações que fizemos acima estão de acordo com aquelas feitas por pesquisadores estrangeiros e brasileiros.

A continuidade do texto, neste caso, é praticamente óbvia, qual seja: a citação de três autores estrangeiros a título de exemplo e, em seguida, de dois brasileiros. Desnecessário dizer que os dois autores estrangeiros citados na seqüência prestam-se apenas para reforço do que foi afirmado antes.

O primeiro autor brasileiro foi introduzido por seu sobrenome, seguido do ano em que publicou a obra citada, como mandam as normas de citação. Como seqüência foi acrescentado o verbo alinhar, na forma impessoal, o que dá um texto da seguinte forma: Fulano (ano) alinha-se a Beltrano, que é o terceiro estrangeiro citado.

Por sua vez, o segundo brasileiro trazido para o texto foi tematizado em dois parágrafos. No primeiro, atesta-se o quanto seus postulados corroboram com o que vem sendo dito. No segundo há alguma diferença. Tendo sido iniciado com a expressão Nessa mesma direção, o mesmo foi continuado com uma oração intercalada introduzida por uma conjunção adversativa, e, posteriormente, finalizada com um retorno à linha argumentativa inicial por meio da expressão fulano de tal esclarece que. A frase obtida ficou aproximativamente a seguinte: Nessa mesma direção, embora considere "x", fulano de tal esclarece que temos razão.... Escrito deste modo, o parágrafo comporta uma discordância parcial à qual voltaremos mais adiante.

2.2 - sobre a escola e seus componentes

Chama a atenção o fato de que uma posição constante nestes trabalhos é a desqualificação da escola. Quando se trata de falar da escola, geralmente este alinhamento de autores que apontam na mesma direção colabora para construir uma argumentação desqualificante sobre a escola, o que traz conseqüências para a imagem de criança constituída nos textos que sustentam esta postura, como tentaremos dar a ver até o fim do trabalho.

Mesmo quando o pesquisador apresenta-se engajado, direcionando a pesquisa para investigação e proposições sobre o melhor trabalho a se fazer em benefício da criança, acaba incidindo em uma desqualificação da criança em função da depreciação do meio em que ela está inserida.

É muito comum, por exemplo, ao se tecerem críticas à desigualdade de acesso aos bens culturais, ou à escola, afirmar-se que a criança não tem o que ler, sem que seja apresentada uma pesquisa sólida sobre os possíveis contatos desta criança com o texto escrito. Nos referimos a afirmações que afloram, de repente, no interior de um texto acadêmico, sem nenhuma apresentação de dados de pesquisa sobre o cotidiano da criança, tais como: Os únicos textos a que muitas crianças têm contato são aqueles do livro didático.

Dito isso, agora podemos retomar a discordância parcial feita ao segundo autor brasileiro que deixamos sem análise na seção precedente. A parte que motiva a discordância parcial apontada na seção 2.1 é justamente aquela em que o texto do segundo autor brasileiro citado propunha a consideração de alguma qualidade no trabalho prático do professor de Língua Portuguesa.

2.3 - Explicitando os movimentos constantes

Face ao que foi apresentado nos dois itens anteriores, podemos afirmar que os procedimentos de incorporação da bibliografia e a postura do pesquisador sobre a escola são complementares no que tange à construção de uma imagem de criança adequada, em primeiro lugar, aos preconceitos de quem a constrói. Por um lado, os autores arrolados estabelecem uma concordância com o que está sendo dito, por outro, a criança encontra-se em um ambiente passivo de depreciação.

Quando ocorre a um dos autores citados reestabelecer alguma qualidade para a instituição na qual a criança se encontra, tal postura é refutada. Deste modo, o que se configura como discordância com relação aos postulados dos autores citados e que poderia ser considerado como uma análise crítica, é, na verdade, uma concordância com uma ordem discursiva mais ampla, que dá como estabilizada a condição da escola. Pelo que temos visto, parece haver uma constância em alguns trabalhos, repetindo-se pelo menos os seguintes procedimentos de textualização

a) A escola é invariavelmente vista e apresentada como ruim e, conseqüentemente, é também ruim a criança, a língua que fala e sua "cultura", incluindo aí o que tem ou não tem para ler.
b) Os autores citados são vistos como pertencentes a um lugar melhor, uma espécie de contraponto àquele ocupado pela criança. Eles estariam sempre na posição mais adequada para verificar os problemas da escola.
c) O autor que está iniciando sua produção de textos acadêmicos estaria interessado em (ou fazendo esforços para) galgar este lugar concebido, às vezes por ele mesmo, como superior ao seu, sobrando-lhe o alinhamento como condição para obter acesso a esta comunidade a que pertencem os autores, cujos textos são tomados por base em seu trabalho. É como se este autor iniciante precisasse vivenciar uma espécie de ritual de passagem e tivesse que cumprir certas regras, sendo uma delas a de submissão a um grupo de autores com maior poder. Desta submissão ele retira a ilusão de pertença, a partir da qual cumpre uma segunda regra: criticar a escola.
d) O objeto de estudo e os conhecimentos já produzidos sobre ele são tomados de forma estabilizada e desprovidos de qualquer contradição. Esta atitude parece estar relacionada à condição instável de quem se encontra em um ritual de passagem. Assim, para não perturbar o movimento do pesquisador em formação, seu comportamento de pesquisador demonstra uma certa necessidade de evitar questionamentos. Por isso, a escola tem de ser inquestionavelmente ruim e os postulados dos autores que falaram sobre ela nesta direção, inquestionavelmente acertados.

 

3 - Algumas conseqüências para a produção do conhecimento, a imagem do pesquisador e da criança.

O ritual de passagem vivenciado pelo pesquisador em formação, ao qual nos referimos na seção precedente, implica em um exercício de textualização dos posicionamentos de outros autores que tem sido realizado de modos diversos. Ao nosso ver, cada um desses modos pode ser analisado a partir de conceitos tais como submissão, identificação, reprodução, filiação, etc. A experiência de análise de textos acadêmicos mostra que, em vários momentos, há concorrência destas posições que se alternam ao longo da escrita de um texto, delineando os modos de relação que cada sujeito estabelece com o conhecimento.

Pesquisas futuras podem se propor a perseguir como questão central qual ou quais destas possibilidades de relação com o conhecimento predomina(m) em um texto acadêmico. Para tal fim, pode ser interessante interrogar se algum elemento dos trabalhos acadêmicos não estariam ocupando o lugar de entrave que, segundo Allouch (1994), tanto a cocaína quanto o conhecimento sobre ela ocupavam para Freud, antes que este tivesse podido dar o passo necessário para fazer uma produção que resultaria na criação da psicanálise.

Ressalte-se que, para este autor, é essencial notar... que existe uma solidariedade entre uma apresentação de um rigor universitário incontestável e uma crença cega na ação mágica do objeto assim introduzido (Allouch, op. cit:26), que, paradoxalmente, impede a construção de qualquer rigor, o que pode se agravar se, como às vezes fica evidente, este rigor é apenas suposto.

Pois bem, tenhamos presentes estes elementos que nos constituem enquanto fazemos nossos textos para fazermos uma reflexão sobre uma tese hipotética, cujo sujeito central seja a criança, ou que a tenha embutida em preocupações relacionadas ao ensino de uma disciplina específica. Imaginemos também que o pesquisador, autor desta tese hipotética tenha uma atitude de acolhimento para com a criança.

Para pensar esta criança, tal pesquisador assume, perante um conjunto de autores ou diante de uma linha teórica, uma atitude que pode ser descrita, como já apontamos, com um dos verbos a seguir, por exemplo: submeter-se, filiar-se (exceção talvez a filiar-se), alienar-se, optar, escolher, suportar.

A defesa de uma criança em si leva a desqualificar elementos do seu meio e, com uma atitude que pode ser descrita com um destes verbos, é bem freqüente o pesquisador desqualificar a escola, o professor, etc e, depois, passar, na elaboração de seu texto, a cumprir algumas etapas, aproximativamente, como as seguintes:

a) Encontrar no interior da escola, já desqualificada em seu discurso, um núcleo que precisa ser valorizado, a partir do seu ponto de vista, construído no mesmo texto como sendo aquele que tem o poder de perceber que algo tem valor, mas os que estão próximos não o valorizam. Aqui neste caso é a criança, em outros pode ser o texto, em outros algo genericamente nomeado como "a cultura do aluno" ou "a linguagem do aluno".
b) Encontrar, no interior desta mesma escola, um lugar de valorização a que, segundo "sua" concepção a criança, ou o que quer que seja, tem direito, ou "deve" ocupar.

Se é comum este posicionamento, em trabalhos de 70, 80, 90, como temos verificado, pensamos que já seria tempo de começarmos a desconfiar que está havendo uma ineficácia deste discurso, ficando comprometida a possibilidade de preconização de uma transformação no ensino.

Um dos problemas que impediriam avanços mais perceptíveis neste campo seria justamente o lugar de onde fala o pesquisador. Ou seja, um lugar movediço ocupado por quem repete para mostrar-se um igual aos destinatários de sua repetição. O que estamos postulando é que dificilmente será ouvido o pesquisador que, para integrar uma comunidade, escolhe uma instituição já historicamente submetida a uma crítica óbvia e desqualificante, repetindo-a. Assim, ele coloca-se na mesma posição que alega ser a da criança. Enquanto esta não tem um lugar de valorização na escola, também o pesquisador não o tem entre as vozes que falam da criança, pois o que ele faz é servir de eco para as vozes de outros pesquisadores.

No procedimento de textualização dos posicionamentos de seus autores preferidos parece ocorrer um processo parecido com o que pode ser ilustrado por uma frase própria da criança "eu não sei, mas meu pai sabe". Isso acontece quando o pesquisador apenas aplica sobre seus dados o conhecimento apreendido dos textos daqueles que considera seus superiores. Esta frase típica da criança às vezes será encadeada a outra, "ó, eu sei fazer igual o papai", quando ele faz suas afirmações e as confirma com postulados de autores já conhecidos, como vimos anteriormente.

Vamos considerar concomitantemente, o emprego freqüente do substantivo valorização e do verbo valorizar, geralmente aplicados à criança. Eles implicam reconhecer a falta de valor de alguém. O pesquisador reconhece no interior da escola, que ele mesmo desqualifica, o que não é valorizado e lhe atribui valor, mas mantém o não valor da escola. Esta escola só passaria a ter valor quando ouvisse a voz iluminada do pesquisador ou se submetesse a todos os "deves" do seu texto, valorizando a criança.

E é assim que pensamos ser possível, como mencionamos na apresentação deste texto, verificar como a imagem da criança vai sendo delineada aos olhos do leitor: estudando-se a cena representada pelo pesquisador.

Eis delineada a imagem da criança como perdida num mar de injustiças, só resgatável por um pesquisador consciente de seu próprio valor. Portanto, a imagem da criança, que embora tenha um valor alegado, é constituída como a de alguém cujo valor precisa ser dado pela escola a partir dos apontamentos feitos pelo pesquisador, o que é a mesma coisa que considerar a criança como sem o devido valor.

O interessante, e aparentemente paradoxal, é que o pesquisador, constituindo esta imagem de criança, faz dela seu espelho, uma vez que, ao submeter-se aos autores que resenha, mostra-se ao leitor também como um sujeito sem direito a voz no seu próprio texto, uma vez que sua voz só se valoriza à medida que pode ser espelhada na fala de outrem, sejam autores que confirmem o que está dizendo, seja o próprio senso comum que repete sobre os problemas da escola.

A criança, neste caso o oprimido da escola, em certa medida coincide com o autor do texto, que a apresenta como tal. Ao mesmo tempo em que este dá a ver uma criança, cuja imagem é a de um sujeito que precisa ser adornado pelo pesquisador para ser percebido como tendo valor, o próprio pesquisador, ao adornar-se com textos de outros autores e, às vezes, com textos das próprias crianças, parece encenar a criança, mostrando-se como alguém que também precisa de voz e de um lugar para ela. Os textos nos quais o pesquisador se apóia constituem uma voz dada a si mesmo, apanhada de outros pelo pesquisador como quem diz eu não sei, mas meu pai sabe ou eu faço igual a meu pai, num exercício de auto-valorização.

 

Referências Bibliográficas:

ALLOUCH, J. Letra a Letra: transcrever, traduzir, transliterar. Rio de Janeiro : Campo Matêmico, 1995.

RASSIAL, J-J. A passagem adolescente: da família ao laço social. Porto Alegre : Arte e Ofício Editora., 1997.

 

 

1 A reflexão desenvolvida neste trabalho vem sendo feita na pesquisa Ensino da Leitura: os limites do texto e de seu suporte. Uma versão preliminar foi apresentada na mesa redonda A infância, suas instituições e a linguagem, V Colóquio do LEPSI.