5A infância e a educação numa perspectiva histórica: o olhar de Monteiro LobatoProjeto Companheiros de Linguagem: trilhas na direção de uma educação psicanaliticamente orientada author indexsubject indexsearch form
Home Pagealphabetic event listing  




On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

As instituições de acolhimento, as crianças "abandonadas" e a psicanálise: uma "ciranda de pedra?"

 

 

Ana Beatriz Werner

Mestranda em Psicologia Aplicada pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia, IPUFU/MG

 

 

Para conversarmos sobre o tema "A Psicanálise, as instituições e a infância", tema que nos reuniu em torno desse V Colóquio do LEPSI, gostaria de chamar os leitores para me acompanharem na constituição do que chamo de "ciranda", ou a constituição de uma trajetória de vida para um público determinado de bebês e crianças chamadas de "abandonadas", ou como atualmente se usa dizer, crianças "em situação de risco social".

"Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar, vamos dar a meia volta, volta e meia vamos dar...".

Foram essas e outras cantilenas de vozes infantis que me convidaram a entrar numa ciranda, enquanto eu caminhava por uma trajetória de imersão em cotidianos de instituições para Abrigos, na cidade de Uberlândia, no ano de 2003. As crianças me davam as mãos e me puxavam para a roda. Elas me impulsionavam a girar. E com essa ciranda fui rodopiando, até um instante em que meus intentos de escrever sobre o que acontece entre as crianças e os adultos se constituiram como projeto de mestrado para o Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia, IPUFU, em 2004.

Girar com as crianças, embalada nas canções de suas trajetórias de vida me expunha a "riscos". Era convidada a estar dentro da roda, mas nada entendia do por quê do destino daquelas crianças. Às vezes, queria cair fora da zoeira, da cegueira, da tonteira, da lentidão. Mas, resolvi ficar...

E, sentia a ciranda da criançada pela turbulência de seus movimentos na roda. De tão intensos, várias vezes, sentia seus giros quase no ritmo de um redemoinho! Muitas demandas de atenção, de palavras, de gestos no cirandar. Em algumas ocasiões, pelo compasso da roda, eu acabava arriscando muito e, querendo saber, apressadamente, sobre a origem do que fazia sua roda-viva. Outrora, a ciranda acabava por tomar lentas movimentações, e quase não me sentia sair do lugar. Pensava numa imagem de vídeo em câmera lenta, como se algumas delas esperassem apenas a vida passar.

"Se essa rua, se essa rua fosse minha... Eu mandava, eu mandava ladrilhar...Com pedrinhas com pedrinhas de brilhante... Para o meu, para o meu amor passar...".

Enquanto circulava por tais Abrigos, as imagens urbanas me provocavam outros sentidos que, pela rotina, acabavam por se banalizar. As linhas de ônibus que eu tomava para chegar aos Abrigos me apresentavam os vários movimentos que configuram a cidade em casas, becos, praças, caras, falas, corpos: dizeres.

Em uma tarde de domingo, a cidade desvendava quatro crianças na esquina de um cruzamento de avenidas. Avenidas batizadas por sobrenomes de homens importantes de Uberlândia. Uma encruzilhada. Não se sabia distingüir se aquelas crianças eram meninos ou meninas. Três delas estavam com seus corpos envergados para o centro, envoltos numa roda reluzente. Da origem do brilho de fogo, eles inspiravam uma fumaça que nascia daqueles rastros metálicos de luminosidade. Mais adiante, estava outra criança menor que os outros, envolvida por um fino cobertor, em posição de encolhimento, parecia tremendo, exposta ao vento, e aos olhos dos transeuntes daquelas avenidas.

No centro da roda, havia latas de alumínio. Latas descartáveis que pareciam ter guardado outrora um produto como leite-em-pó, se juntam às crianças na roda. Latas descartadas, elas agora serviam para fazer o fogareiro. Chamas no fogareiro, um brilho de metal próximo à face, a fumaça. A cortina de fumaça. As latas-de-leite que estavam vazias, agora estão quentes, o que proporciona às crianças a fumaça.

E de um lado da cidade a outro, surgem imagens de crianças girando em torno de certas cirandas. Aquelas institucionalizadas conformam-se a uma imagem dentro de um determinado roteiro esperado para a Infância: crianças brincam, crianças cantam, crianças giram... Aquelas outras rodopiam em torno de uma ciranda de pedrinhas de brilhante, que as embalam em uma ciranda-de-pedra-de-craque.

"Nessa rua, nessa rua tem um bosque... Que se chama, que se chama solidão...

Dentro dele dentro dele mora um anjo... Que roubou que roubou meu coração".

Sob a condição que vivem as crianças na rua, configura-se outro roteiro para a Infância. Às avessas, esta Infância é mirada pela própria cidade como um negativo da fotografia do álbum de uma Grande Família. A deliqüência, a drogadicção, a marginalização são estampas do desamparo e do abandono nas faces anônimas das crianças que perambulam pela trivialidade cotidiana dos centros urbanos.

Dessas cirandas contemporâneas que embalam um determinado público de crianças, emerge a história de uma outra ciranda de roda: a Roda dos Expostos.

Europa do século XVII. A Roda foi um dispositivo arquitetônico constituído por uma caixa giratória, acoplada em uma parede ou muro, tanto de uma igreja, como de um hospital. Em forma de um cilindro de metal, oco, como uma lata, fixado por um eixo, tal que lhe imprimia um movimento rotatório. A Roda continha duas portas, uma se abrindo para o exterior, o lado de fora do muro institucional, e a outra, que se abria para dentro de um pátio (Donzelot, 1988; Merisse, 1997; Hrdy, 2001).

Através de uma abertura para o exterior da Roda, os adultos colocavam no interior do cilindro de metal seu bebê. Então, o bebê era cirandado em uma meia-volta, até que não mais se visse seu corpo exposto. O adulto tocava uma sineta, que era ouvida no interior desse pátio. A sineta indicava que o lugar oco do cilindro-lata agora estava cheio. Lata cheia.

Como eram (a)colhidas as crianças pelos adultos receptores?

Pela prática que se instituiu nestas instituições que dispunham da Roda, era comum que dessem logo um primeiro nome para criança, e depois, um sobrenome genérico: na Itália denominava-se Esposito (o exposto), e na França, Trouvé (o perdido, e que também pode ser o achado). Em outros locais da Itália, poder-se-ia encontrar crianças que receberam o sobrenome de Colombo, por causa dos pombos que pousavam no telhado dos hospícios e que adornavam seu emblema (Hrdy, 2001).

Para manter o sigilo da identidade do adulto que enjeitava a criança, nessa trajetória da ciranda da Roda dos Expostos, os olhos dos envolvidos não podiam se mirar. Não se entreolhavam quem deixava e quem recebia o corpo enjeitado. Anonimato. Muito menos poderiam trocar palavras.

No momento da exposição, alguns bilhetes podia ter sido deixados junto ao bebê. Além do sobrenome, a entrada da criança nas instituições asilares também era marcada pela aniquilação da curta história de vida que o bebê já carregava pelos bilhetes, roupinhas, objetos – objetos que já indicavam um investimento libidinoso dos pais para com a criança. Os bilhetes eram rasgados ou, quando por pena, eram guardados, escondidos bem secretamente. As mantinhas que os enrolavam eram jogadas no lixo porque se acreditava carregar os germes que contaminavam cada vez mais os pátios e os interiores dessas instituições. Hrdy nos conta que o poeta francês Lamartine louvava a Roda com a seguinte frase: "engenhosa invenção da caridade cristã, que tem mãos para receber mas não tem olhos para ver nem boca para contar" (2001, p.326).

Como tais adultos receptores puderam viver com essas crianças, se seus cuidados traziam a presença de um olhar que não podiam refletir nenhuma imagem que as ancorassem numa linhagem filiatória? Como educar uma criança, se a boca do adulto era vedada para que não se bordejasse com palavras o corpo do bebê, ou para que não escorresse as marcas históricas de um momento anterior ao ato de ser enjeitado à Roda?

O bebê da espécie homo sapiens sapiens só pode se tornar humano a partir de uma vivência com o Outro, a que Jerusalinsky (2001) denomina de Transmissão Simbólica. Isto quer dizer, não se trata desse Outro ensinar ao bebê como comer ou como fazer isso ou aquilo, mas de transmitir, ou seja, operar a apropriação no semelhante de algo que já está aí, circulando no mundo humano. Por este Outro já se encontar imerso e transeunte da Cultura e da Linguagem e portanto, já humano, é o que se torna capaz de operar algo da ordem de um mundo simbólico. Essa operação simbólica vem a ser desencadeada para a criança a partir da função materna, que bem pode ser a mãe da criança ou alguém que venha engendrar um elo entre a criança e o mundo que a envolve.

A ruptura temprana de laços libidinosos entre a criança e o outro materno, se não deixa espaço para as palavras, desampara a constituição dos enlaces do corpo, das fantasias, e Linguagem. Uma espécie de ruptura seria o próprio abandono. Dolto nos comunica: "o abandono pela mãe ou pela primeira ama maternal durante os cinco primeiros meses de vida fere o bebê, que é atingido por uma enfermidade psicoafetiva mais ou menos importante, que pode ir desde o estado de choque, o qual, ainda que recuperável por um substituto materno bem escolhido, deixará traços indeléveis nas profundezas do caráter, até a debilidade profunda e a idiotia. Em nenhum momento da vida a frase 'Um só ser lhe falta e o mundo todo está despovoado' é mais tragicamente verdadeira" (1988, pp. 108-109).

Por detrás daquele muro da Roda dos expostos, o desprovimento material em que se encontravam, a falta de alimentos adeqüados e de uma mínima higienização levaram à morte muitas crianças, antes de chegarem à idade da fala. Elas assistiam mudas a morte de outras companheiras. Como "chocadeiras" que atrapalhadamente continham os ovos de crianças-pombos, tais instituições chocavam vermes, bacilos, bactérias, todos os tipos de germes. As crianças morriam de fome, de sede, mas também de diarréia, desidratação, vômito. O inominável de uma separação brutal com seus outros de nascimento, bem como a coletividade dos cuidados que levava ao desprovimento do Outro Primordial, legavam muitos dos bebês a caminhar rumo à negação da própria vida, o que pode ter desencadeado a morte simbólica dos bebês uma experiência de extremo desamparo, e conseqüentemente sua morte real.

Pode-se tomar a Roda dos Expostos como o paradigma para se abordar as práticas sociais de institucionalização de crianças que se encontram em situação de abandono. A exposição de crianças nas rodas surgiu no momento em que se acreditou que esta forma de colhimento seria a solução para o surto de abandono de crianças e o infanticídio que assolava os territórios europeus. E sua decadência se deu quando se confirmou a grande estufa, não pouco infanticida, que se tornaram esses hospícios e asilos para crianças (Donzelot, 1988; Hrdy, 2001).

A prática social de acolhimento de crianças em instituições continuou a ser uma questão urbana, enquanto que bebês continuam sendo criados por instituições asilares. Das Rodas à atualidade, passando pelas ciradas às quais fiz o trajeto de observação nos Abrigos, pude verificar que as instituições de atenção à Infância vão sendo construídas calcadas tanto nos ideais do momento histórico das Rodas - controlar e vigiar os corpos enjeitados nos pátios das cidades - bem como em ideais mais contemporâneos, do discurso religioso da filantropia, associada ao discurso judiciário, e ao médico-educativo.

Como poderiam os Abrigos aplacar, transformar ou reconstituir as vidas subjetivas de seus abrigados?

Manonni nos ensina que "quanto mais o silêncio pesa sobre o trauma, mais o sujeito 'paga o preço por isso' em sintomas diversos. É quando as 'palavras para dizer' são finalmente encontradas que pode surgir uma queixa e que, graças a ela, as forças reparadoras podem colocar-se a serviço do prazer, ou, muito simplesmente, de uma autorização de viver" (1995, p.36).

Para que a criança venha a pertencer a um mundo infantil, para que ela faça laços sociais, sua história deve ser reconhecida e recontada pelos outros semelhantes. Dolto (1995) tirou um ensinamento da prática com crianças colocadas em instituições: de que a vida de coletividade não é nociva para a criança pequena, desde que se instaure uma certa dinâmica para que elas se constituam sujeitos. O reconhecimento da história de vida pelo Outro, encarnado pelos semelhantes, é o lugar a partir do qual, na relação linguajeira, se constitui o sujeito, e que o introduz na ordem simbólica.

Assim, o trabalho com crianças denominadas em "situação de risco social" pode encontrar somente possibilidades numa direção, aquela de tentar atravessar o terreno árido de vivências passadas, amparando simbolicamente tais crianças, em cirandas onde a palavra possa circular, por meio das falas e dos fazeres sociais.

 

Referências Bibliográficas

Dolto, F. (1988). Dificuldade de Viver: psicanálise e prevenção das neuroses. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.

Dolto, F. (1995). Destinos de crianças: adoção, famílias de acolhimento, trabalho social. São Paulo, SP: Martins Fontes.

Donzelot, J. (1980). A polícia das famílias. Rio de Janeiro, RJ: Edições Graal.

Mannoni, M. (1995). Amor, ódio, separação. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.

Merisse, A. (1997). Origens das instituições de atendimento à criança pequena : o caso das creches. In: Merisse, A. (org). Lugares da infância: reflexões sobre a história da criança na fábrica, creche e orfanato (pp 25-51). São Paulo, SP: Editora Arte e Ciência.

Hrdy, S. (2001) Mãe Natureza: uma visão feminina da evolução: maternidade, filhos e seleção natural. Rio de Janeiro, RJ: Campus.

Jerusalinsky, A. (2001). Falar uma criança. In: Jerusalinsky, A (et all). Psicanálise e desenvolvimento infantil: um enfoque transdisciplinar. Porto Alegre, RS: Artes e Ofícios.