5Trabalho docente: dispersão e moral do discurso pedagógicoOs entraves da inclusão escolar: reflexões a partir da psicanálise author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

O conceito de Saber para a psicanálise lacaniana e suas contribuições para a escolarização das psicoses

 

 

Andréa Assali

Psicanalista, membro do Grupo Ponte da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida da USP

 

 

O acompanhamento escolar1 de crianças psicóticas na Pré escola Terapêutico Lugar de Vida nos permite pensar invariavelmente sobre as atribulações desses trajetos, do início às passagens que possam garantir a inclusão escolar desses sujeitos. Passagens marcadas pela contradição entre uma disponibilidade escolar integradora e uma inclusiva. A partir desses pontos podemos constatar como o conceito do Saber, assim como propõe a psicanálise lacaniana, pode definir a forma como uma escola vai tratar as questões que essas crianças lhes apresentam, o quanto isso poderá definir os rumos dessas inclusões e como os acompanhantes desses processos podem manejar isso. Escolhemos dois casos que acompanhamos para ilustrar nossas reflexões.

 

Caso Pedro: quando as certezas conferem enigmas e dificuldades a um acompanhamento.

Pedro é um aluno matriculado na primeira série do ensino fundamental, em uma escola da rede pública municipal. Esse início na escola já é o bastante para destacar o quanto a entrada em uma instituição de ensino faz a diferença e marca um novo momento para esse sujeito, para família em tratamento, para a escola em questão e, tanto quanto para o Lugar de Vida.

Vale ressaltar que um diferencial no caso dessa criança, referia-se a uma certa vantagem no início e no percurso de seu tratamento _ a de ter um espaço de circulação social, garantido nas brincadeiras de rua. Contudo, a escola, que é sabidamente um espaço extremamente importante para toda criança, faltava à sua rotina.

Após um ano de tratamento, dava início o processo de escolarização de Pedro. A possibilidade de permanecer já no primeiro dia, o tempo todo na escola, causou surpresa e confirmou o quanto este espaço era desejado por ele.

Pedro não parecia ser o tipo de criança que causasse grandes tumultos a uma escola. Conseguia permanecer a maior parte do tempo em sala e não promovia grandes confusões na hora do recreio. Apesar de ter dificuldades com as regras, não chegava a gerar conflitos ou angústias nos professores e na direção.

 

Do lugar da certeza ...

A problematização da inclusão dessa criança tem início aqui. Pedro praticamente não fala; usa gestos e sons para chamar a atenção das pessoas, conseguindo comunicar-se a seu modo. Apesar de não causar desconfortos para a escola é uma criança que ainda apresenta questões com a aprendizagem.

A forma como Pedro, às vezes, aparece nos discursos das crianças e da escola marca o lugar que ele ocupa nessa instituição – o de um garoto engraçado, que não "traz problemas" e que parece um bebezinho. Reconhecido e tratado assim, isso abre exceções e dava espaço para que pudesse infringir algumas regras que eram essenciais no convívio escolar.

Pôde-se notar a quase ausência de dúvidas a respeito da escolarização desse menino. Esta instituição colocava-se em um lugar onde não existiam questões a serem levantadas sobre o processo de inclusão deste caso. O fato de Pedro ser uma criança que não gerava angústia para a escola pode ter ajudado na ausência de perguntas.

Supunha-se que com o passar dos meses, a escola poderia começar a se perguntar sobre esta inclusão. Mas isto não acontecia. Ao pensar a inclusão como um processo de construção da escola não apenas de um professor, podemos pensar que algo ainda não aconteceu. É importante ter o professor e a escola implicados com seu aluno. O que foi ficando claro no fala institucional é que um saber sobre a inclusão – saber ilusório e que não permite dúvidas – acabou cobrindo qualquer possibilidade de perguntas ou mesmo de angústia sobre esse processo.

O saber aqui, no caso dessa escola, aparece como aquele descrito pela cultura (como por exemplo, pela psicologia, pela medicina e pela pedagogia). É um saber que abafa qualquer possibilidade de dúvidas, de falta de respostas, de não saber. É um saber totalizador, universal. Como aponta Lacan no seminário O avesso da psicanálise2, não se trata aqui de um saber, mas de conhecimento. E é esse conhecimento que acaba favorecendo respostas, designando formas de crenças e impondo obstáculos a uma outra categoria de saber. Essa escola não percebe ainda seu equivocar-se: ter o papel de transmitir um saber não lhe concede ter o saber, ainda mais quando se trata de uma criança diferente.

Uma maneira dessa escola se manter nesse lugar é querer saber o mínimo possível, ou não querer saber sobre as questões que essa criança lhe coloca. É ignorar.

"O que é a ignorância? É uma noção certamente dialética, porque é somente na perspectiva da verdade que ela se constitui como tal. Se o sujeito não se coloca em referência com a verdade, não há ignorância. Se o sujeito não começa a se colocar a questão de saber, o que é e o que não é, não há razão para que haja um verdadeiro e um falso, nem mesmo, para além, a realidade e a aparência". (LACAN, 1983)3

O ignorar dessa escola, conforme propõe Lacan, é o da ordem de um saber que não quer saber. Exerce uma função de mantê-la em um saber mínimo sobre esse aluno, agindo quase como um mecanismo de não querer aprofundar-se, como na inibição neurótica.

Na verdade, se é que podemos, assim dizer, o que nos cabe agora, nesse trabalho de acompanhamento é evidenciar qual é o desejo dessa escola: manter-se nessa posição de ignorar ou abrir-se à possibilidade de deslocamento, reconstruindo, talvez, outros saberes.

 

Caso Ulisses: quando as dúvidas criam possibilidades de construções.

Ulisses atualmente freqüenta uma classe regular de primeira série do ensino fundamental, em uma escola municipal do interior paulista.

Ao ingressar na primeira série do fundamental começaram os problemas. Não conseguiu terminar o primeiro ano, sendo encaminhado para uma classe especial e, posteriormente convidado a se retirar: tratava-se de um garoto muito agitado e agressivo, o que chegava a colocar em risco à integridade das demais crianças. Ulisses perdia conseqüentemente a circulação social por outros espaços infantis, tais como a rua e a vizinhança.

Nesse contexto chegou encaminhado ao Lugar de Vida. De fato a mãe de Ulisses pensava que seu caso relacionava-se a questões de aprendizagem.

Em pouco tempo de tratamento veio o pedido da referência para encaminhar o processo de (re)inclusão escolar.

Em sua primeira entrevista com o profissional do Ponte, Ulisses veio uniformizado. Uniforme surrado, onde se podia ler mais que o nome apagado de uma escola, a própria evidência de um desejo de voltar a ela. Da mãe ele toma a palavra para falar disso.

Solicitada a incluir, a escola não se constrange ao assumir que nunca havia trabalhado sob o viés inclusivo, que isso lhe causava uma certa angústia e que, portanto poderia precisar de ajuda. Ainda assim a direção o matricula na primeira série, sem deixar, no entanto, de assinalar que no primeiro mês de aulas ele seria avaliado para que pudessem determinar mais serenamente as suas possibilidades de aprendizagem.

 

Do lugar da dúvida...

O primeiro dia de aula já expressava seu desejo de pertencer a esse lugar, pois sem dificuldade, permaneceu em sala, sem causar dificuldades, inclusive às relacionados à agitação e agressividade que outrora foram motivos de sua exclusão do processo escolar.

Passado esse período de adaptação Ulisses é reclassificado para uma sala de segunda série, considerando-se suas condições de leitor e escritor.

A equipe escolar fez uma aposta que permitiu à criança escapar do título de débil e de não entrar em uma instituição balizada pelo carimbo dessa desvantagem. É importante grifar que foi esse olhar positivo, antecipador de um aprendiz, arrojado, o que impediu uma deliberação escolar com conseqüências danosas, como aconteceu antes na história de Ulisses. Também podemos notar que foi um olhar de não saber sobre esse garoto, de poder suportar desconhecer como trabalhar com um aluno como ele; e, que por isso caracterizou-se como um olhar que se abriu às possibilidades de criação de saberes sobre essa criança.

E como afirma Lacan, "Desconhecimento não é ignorância. O desconhecimento representa uma certa organização de afirmações e de negações, a que o sujeito está ligado. Não se conceberia, pois, sem um conhecimento correlativo. Se o sujeito pode desconhecer alguma coisa, é preciso que saiba em torno de que operou essa função. É preciso que haja atrás de seu desconhecimento um certo conhecimento do que há a desconhecer."(LACAN, 1989, p. 194)

Cada vez mais fica evidente a conquista do lugar de aluno, talvez até mais, do lugar de aprendiz. Percurso, sim, marcado por algumas atribulações, mas há nenhuma delas foi atribuída a impossibilidade de resolução, de não criação de formas de superação. Diante dos impasses colocados na educação de uma criança diferente, essa escola se abre a perguntas, a dúvidas, antes mesmo de solicitar ajuda à equipe do Grupo Ponte. Escola que também se destaca pela posição que insiste em ocupar em relação a essa criança diferente, lugar de não saber, antecipadamente, o que fazer com ele.

 

Da certeza para a incerteza – um caminho de questionamentos.

Segundo MEIRA (2001), a educação inclusiva vive um processo diferenciado em cada país de acordo com sua cultura e tem em seu eixo de trabalho a integração de crianças portadoras de necessidades educativas especiais em escolas regulares, concomitantemente com um processo de estruturação das escolas inclusivas. Ressalta o contexto social e as diferenças que existem em cada país, de acordo com as políticas de ensino e os seus pressupostos teóricos.

Em nosso relato, considerando parte da realidade escolar brasileira, o que está em jogo neste processo é a entrada de crianças psicóticas em escolas regulares, o que muitas vezes balançam os padrões estabelecidos pela educação, caminhando na contra-mão do que os professores imaginam que uma criança deva realizar.

Quando uma criança torna-se um aluno, supõe-se que exista o desejo em estar na escola. É o que aparece tanto na história de Pedro como na de Ulisses. Querendo ou não há uma separação, pois os pais ficam do lado de fora do muro e as exigências do social são mais evidentes. Pensando nessas, como crianças com uma "posição fragilizada em sua constituição psíquica" (MEIRA, 2001, p.44), a entrada na escola muitas vezes pode gerar desconforto para a instituição e até inviabilizar a inclusão. "Estas crianças, inúmeras vezes, não permanecem na rede escolar regular, por não encontrarem ali um lugar que leve em conta sua subjetividade para além de seu sintoma" (MEIRA, 2001, p.44). É neste contexto que a posição da escola e do professor com relação a estes alunos pode fazer toda a diferença, garantindo um lugar para elas. Digamos que o tratamento proposto pelo Lugar de Vida, incluindo-se aqui o acompanhamento do Grupo Ponte procura garantir que isso não ocorra.

Muitas escolas perdem a condição de supor um sujeito além do diagnóstico dessas crianças e, acabam encaminhando-as para salas especiais onde supostamente teria um profissional especializado para atender as questões desta clientela. Foi o que aconteceu inicialmente com Ulisses e que acabaria ocorrendo com Pedro. Pensamos que enquanto as escolas se apegarem aos manuais pedagógicos e psicológicos visando alcançar a ilusão de uma educação homogênea, sem diferenças, o processo de inclusão pode ficar comprometido. O saber para estas ciências tenta tamponar qualquer falta e garantir a ausência de angústias. Porém, estas crianças trazem à tona que um saber universal não afiançam a sua escolarização e pode inviabilizar o aprendizado. É precisamente aqui que nos encontramos no trabalho de acompanhamento de Pedro. A questão é poder pensar além e não se segurar a pressupostos teóricos de antemão. O que vem fazendo a escola de Ulisses, mas o que ainda não pode fazer a de Pedro. É essa mudança que autorizaria a essa equipe escolar gerar estilos de tirá-lo dessa situação de não produzir, de não aprender. O que causaria, ou não, os rumos de seu processo de inclusão escolar.

A psicanálise lacaniana nos ensina que o saber é sempre inacabado, muito diferente do que é para a pedagogia, medicina e psicologia. O conhecimento pode tentar causar o efeito de completude, mas também se desvenda que é sempre parcial. A grande contribuição de Freud e de Lacan é poder peregrinar pelo saber sem ter que dar conta de tudo, sem ter que ser concluído. Acreditamos que este é o grande desafio da escola, quem sabe da Educação, poder não dar conta de tudo, poder ser inacabada.

Um professor e uma escola que podem sustentar um olhar singularizado, deixando de lado a idéia de salas homogêneas, supondo que as diferenças existam, perdendo o estatuto de que deva solucionar todos os problemas (o que é da ordem do impossível), poderá viver esse caminho com seus alunos de um outro modo.

"Se uma criança for vista pelo professor, primordialmente, como sendo alguém que é portadora de desejos, de uma história, os caminhos para a aprendizagem estarão incluindo o que é fundante no ser humano: a palavra".(MEIRA, 2001 p.49)

O Grupo Ponte acredita que uma educação para se tornar inclusiva supõe, entre outros aspectos, um giro no discurso do professor. Só assim, ele se recoloca, adotando um lugar que consente observar, na sua sala de aula, as singularidades. Assim, ele terá condições de seguir esses alunos na passagem do aprender. Os caminhos serão muitos, mas ele, numa posição de sustento, poderá ampará-los, distinguindo, destacando e apreciando os estilos de aprender de cada um.

 

Referências bibliográficas:

MEIRA, Ana Maria MEIRA (2001), Contribuições da Psicanálise para a Educação Inclusiva, in Escritos da Criança – Centro Lydia Coriat – Porto Alegre, 2001, p.44-49.

LACAN, Jacques. (1992) Seminário 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.Editor, 1992.

LACAN, Jacques, Seminário I – Os escritos Técnicos de Freud – Rio de Janeiro, Jorge Zahar editor, 1983, p 193.

 

 

1 O Grupo Ponte é formado por psicanalistas, psicólogos, pedagogos, médicos e estagiários dos cursos ministrados pela Pré escola Terapêutico Lugar de Vida do IPUSP. Seu trabalho caracteriza-se pela parceria proposta entre instituição de tratamento e escolar, a fim de estabelecer um espaço de interlocução entre essas duas instâncias para viabilizar a inclusão escolar de crianças psicóticas.
2 Jacques Lacan em Seminário XVII – O avesso da psicanálise – Rio de Janeiro, Jorge Zahar editor, 1992.
3 Jacques Lacan em Seminário I – Os escritos Técnicos de Freud – Rio de Janeiro, Jorge Zahar editor, 1983, p 193.