6Psicanálise e universidade: a questão da filiação do analistaFrom teaching psychoanalysis to an assessment of transmission author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-08-8

An 6 Col. LEPSI IP/FE-USP 2006

 

Abordagem da oralidade e da escrita na escola a partir da tessitura interdisciplinar entre a psicanálise e a lingüística

 

 

Claudemir Belintane

 

 


RESUMO

O presente artigo apresenta uma reflexão sobre a oralidade e a escrita na escola, consideradas a partir de uma perspectiva teórica que assume alguns conceitos que aproximam a Psicanálise e a Lingüística (inconsciente estruturado como linguagem, rébus, escrita, oralidade, fala e outros). Utilizando alguns textos literários e duas produções textuais de alunos, o autor explora as possibilidades de abordagem da oralidade e da escrita não de forma dicotômica, mas considerando ambas como produtos e processos de uma mesma dinâmica psíquica, cuja compreensão permitirá aos educadores um arranjo curricular e mesmo um manejo didático mais profícuos e mais condizentes com aqueles princípios de autoria a que muitos escritores fazem menção, ou seja, a influência inconsciente dos textos orais originários da infância.


ABSTRACT

This article presents a reflection on orality and writing in a school environment, both of which regarded from a theoretical perspective that assumes common concerns both in Psychoanalyse and Linguistics’ concepts: the unconscious structured as a language, the "rebus", writing, orality, speech etc. Making use of some literary texts and two written compositions produced by two students, the author looks into the possibilities of approaching orality and writing – instead of a dichotomic way – as products and processes inserted in a common psychological dynamics, whose comprehension will enable teachers to produce and manipulate more proficiently curriculum contents and didactic procedures, which finally matches those principles of authorship mentioned by many authors, that is, the unconscious influence of oral texts listened from early infancy.


 

 

Com o advento da nova lei que estende o fundamental para nove anos, as crianças de cinco/seis anos, a partir de 2006, deixam de ser classificadas no Ensino Infantil e já começam a vida escolar no Ensino Fundamental. Levando em conta que as preocupações que justificam a nova lei estão basicamente voltadas para uma certa vontade de garantir os fundamentos da leitura e da escrita um ano mais cedo (a exemplo do que já vem fazendo a maioria dos países desenvolvidos), gostaríamos de levantar algumas antigas preocupações que sempre enredaram o ensino infantil. Entre elas, talvez a mais importante seja a conjunção entre a oralidade originária dos cuidados parentais e a que vai ser escolarizada na propedêutica do ensino escrita.

Neste trabalho pretendemos situar esse novo contexto escolar e enfocar especialmente a linguagem oral, neste eixo temático interdisciplinar que interroga "o que se transmite na escola", levando em conta uma perspectiva construída entre a lingüística e a psicanálise. A intenção é evidenciar alguns possíveis laços - dos quais o ensino infantil possa se valer - que os gêneros textuais oriundos da tradição oral têm o poder de suscitar.

Partindo da hipótese de que os traços que marcam a primeira infância também se estendem à diversidade textual oral que a criança experimenta e que esses textos, em geral, são compartilhados pela família e pela escola infantil, pretendemos refletir sobre o entrecruzamento desses dois tipos de "transmissão", enfatizando a importância dos laços e diferenças que permitem à criança encontrar, nos gêneros orais postos pela escola, as matrizes linguageiras que garantem a base da escrita alfabética.

Nossa perspectiva de análise vê nítidas vantagens em conceber a escrita de uma forma mais ampla, que vá além da idéia de representação secundária e de registro gráfico alfabético. Concordando com Lacan (1998), Safouan (1987) e Pommier (1993), assumimos que antes do grafismo seja na filo ou na ontogênese, uma certa escrita já faz seus laços e se oferece à leitura. Sejam o rastro de caça, o galho quebrado, os pêlos do animal perseguido e outros indícios que o caçador lê para tomar suas decisões, sejam os jogos de leitura que estão presentes desde o berço da criança e que enredam as figuras parentais e o "infans", todos esses traços constituem uma genética discursiva que como nos diz Lacan, já traz em si uma pré-invenção de uma escrita com suporte fora do corpo. Em outras palavras, se há um inconsciente com uma escrita e, como diz Safouan, com "seu escriba" (op cit), há toda a possibilidade para a invenção de ideografias e alfabetismos em extensões pra fora do corpo (suporte gráfico, suporte eletrônico).

Se desde cedo os olhos e ouvidos estão abertos para o mundo e entrecruzam suas captações com as de interpretantes adultos, temos aí a possibilidade não de uma dicotomia entre o escrito e o oral, mas de uma passagem moëbiana (Borges 2002, Belintane, 2005) que põe, por exemplo, como bem viu Freud1 (1998), o rébus como elemento de transição entre as duas dimensões (oral e escrita). Se por um lado o rébus é uma imagem, por outro, também se dá a ler como som. Na figura abaixo, exemplificamos o fenômeno do rébus com duas mensagens enigmáticas que obrigam o leitor a reprimir as imagens e fazer valer o som para se obter uma terceira palavra cujo sentido nada tem a ver com as que estavam na codificação.

 

 

Este jogo ambíguo presente no rébus é também a forma associativa de funcionamento do aparelho psíquico, que por isso é também um aparelho de linguagem. Se olhando para o mundo, nossos olhos se defrontam com uma casa e a partir de sua imagem-som podemos evocar um velho dito popular, que até já foi título de uma peça de teatro de Arthur Azevedo, Quem casa quer casa, é exatamente por que o efeito de rébus do psiquismo explora essa dubiedade. E se ouvimos o significante Azevedo, em sua pureza de nome próprio, podemos a ele associar a palavra limão com todas as suas cítricas sinestesias, subvertendo assim o nome próprio que aí foi posto.

Esse funcionamento dos ouvidos e dos olhos sustentados por uma memória que não cessa de interferir, de entrecortar, de inscrever suas letras por sobre o texto atual, também pode ser visto como um jogo de leitura. Seria essa temerária abordagem uma forma de excluir o essencial do processo da leitura, que é a correlação grafema-fonema em sua pureza ou então deixar de lado as habilidades semióticas que associam a visão aos sentidos pré-existentes? Pretendemos mostrar que essa nossa concepção, ao não aceitar dicotomização entre som e letra ou mesmo entre sentido e letra alfabética, amplia a compreensão da leitura para além de uma lógica cognitiva em que um sujeito centralizado dá conta de seus manejos e descobrimentos.

Do mesmo modo que a imagem e a palavra se dão a ler de forma ambígua, a oralidade a que a criança está submetida também é cindida por dois eixos discursivos que se interpenetram. De um lado a fala prosaica, cotidiana, com a qual a família enreda a criança nos esquemas mais úteis da vida, a sobrevivência, como no diálogo abaixo:

- O neném qué papá?!
(...)
- Vem dandá com a mamãe, vem!?
(...)
- Não, filhinho, aí não, não põe a mãozinha aí, faz dodói!

Todas essas falas contêm suas instruções pragmáticas, instrui os fazeres e cuidados cotidianos – o que não quer dizer que elas não venham recheadas de musicalidade, de entonações especiais, diminutivos ou até mesmo com personificações alegorias e outros recursos estilísticos. Nomearemos, ainda que injustamente, essa fala de FALA ÚTIL.

De um outro lado há a fala DESÚTIL, a que contempla intencionalmente a função poética: textos completos (com começo, meio e fim) que foram selecionados pela peneira estética da tradição especialmente para esses momentos em que a criança é inserida em uma linguagem que, como diria Manoel de Barros (2004 p. 11), teriam aquela "desutilidade poética".

Se de um lado há fala útil e de outro a desútil, nossa metáfora seria a da moeda ou a da folha de papel, como a de Saussure? Não! Podemos aqui pressupor os dois lados apenas no momento analítico, quando paramos o processo para estudar. No funcionamento cotidiano, no calor da vida, há possibilidades de passagem entre as bordas. Nossa metáfora é, portanto, a da faixa de Moëbius – na versão artística de Escher , abaixo, teríamos, a formiga útil e a desútil mudando de lado sem perceber onde estaria a suposta borda ou o ponto de giro.

 

 

As pesquisas sobre a aquisição de linguagem em geral assumem apenas a oralidade útil, a fala afinada com as ações no mundo, e atribuem pouca atenção às "desúteis" armações linguageiras com que a tradição familiar insiste em enredar o "infans". É como se, para os pesquisadores, a língua a que a criança está submetida não se sustentasse por uma diversidade textual, ou seja, seria fundada num uso que apenas realça o diálogo, a prosa cotidiana e o monólogo.

Muitos escritores confessam que encontram paralelos interessantes entre o desejo de escrever e alguns inexplicáveis momentos de infância em que os ludismos infantis da linguagem vinham arrebatá-los. Destacamos aqui o depoimento do poeta Manoel Bandeira em seu Itinerário de Pasárgada.

Verifiquei ainda que o conteúdo emocional daquelas reminiscências da primeira meninice era o mesmo de certos raros momentos em minha vida de adulto: num e noutro caso alguma coisa que resiste à análise da inteligência e da memória consciente, e que me enche de sobressalto ou me força a uma atitude de apaixonada escuta. (1996 p. 33)

Jorge de Lima (1978 p. 9) também parece ter encontrado muito cedo a tal desutilidade poética desde os seus sete anos (costumo dizer em minhas aulas que aqui já temos uma interessante visão de letramento)

Eu queria saber versos
como o meu amigo Lau
Nunca vi versos mais belos
Como ele sabe lá.

Trocava até meu carneiro
Meu velocípede sim
Sem saber os seus versos
Meu pai que será de mim?

Meu pai me bote na escola
De meu velho amigo Lau
Quero aprender com ele
Versos e não be-a-bá

A partir dos dois meses de idade, o bebê já sorri como resposta ao sorriso do outro. O pareamento com o outro constitui a dimensão imaginária, especular, que aos poucos também vai sendo atravessada pela intermitência do simbólico, pelas diferenças que as figuras parentais vão ocasionando ao longo de seus aparecimentos e reaparecimentos. Na linguagem com a qual a mãe conversa com o bebê, o chamado mamanhês (ou manhês), já é possível perceber que o outro materno se põe ali de forma bem diferenciada, com uma entonação especial para chamar a atenção da criança, que em geral responde com júbilo, com balbucios, sorrisos e movimentos. Jerusalinsky (2004), em Prosódia e enunciação na clinica com bebês mostra que boa parte das mães, após emitir suas perguntinhas entonadas, deixa um tempo estratégico para que o bebê entre no canal e dê sinal de que está na linguagem - o bebê responde no seu turno. Do mesmo modo, queremos enfatizar que, quando é hora de dormir, de comer ou mesmo de brincar, em geral, o bebê não fica sem um momento de desutilidade poética.

A mesma voz que o solicita por meio do mamanhês muda o registro e atualiza um outro tipo de texto. A mãe retoma de sua memória uma cantiga, dando vazão aos ecos arcaicos de seu próprio tempo de berço – um saber esquecido é aqui retomado.

Assim que o corpo da criança ganha um pouco mais de firmeza, a família põe em jogo os brincos – gênero especial de parlenda em que o adulto com a criança sobre os joelhos ou mesmo segurando-a no cadeirão, para juntos, num embalo de corpo e voz, associarem versinhos com movimentos corporais – vejamos um exemplo bem conhecido:

Serra serra serradô
Serra o papo do vovô
Quantas tábuas já serrô
Já serrou vinte e quatro
Uma, duas, três quatro.

(Dadas as mãos, os corpos do adulto e da criança mimetizam o movimento da serra, cadenciados pelo ritmo do poema que às vezes é declamado só pelo adulto ou ainda pelos dois – não raro, a voz da criança que ainda não aprendeu a falar, acompanha com um murmúrio mais ou menos rítmico, quase sempre entrecortado por boas gargalhadas)

Há muitas outras parlendas de "colo", simples, feitas para esses momentos em que a criança, ao mesmo tempo em que domina alguns movimentos, começa a descobrir uma língua em versos, com métrica, ritmo e rima e, com tudo isso começa a entrever um outro folgazão que, com suas idas e vindas, vai ajudando a armar as possibilidades de um sujeito não muito pragmático, mais propenso ao desútil do que ao útil. Entre uma e outra reaparição da mãe ou do pai, a criança vai aprendendo a:

"Palminha de São Tomé",
Para quando o papai vier"
(aqui podemos observar que a busca da rima subverte o rigor da escrita, produzindo a apócope do r, transformando "vier" em "vié")

"janela",
janelinha,
porta,
campainha
(apontando para os olhos, para a boca e por fim acionando o nariz como se ele fosse a campainha)

"Minguinho,
seu vizinho,
pai de todos,
fura bolo
e mata-piolho"
(levantando os respectivos dedos)

Esses tipos de textos desempenham funções que vão muito além do mimo, do agrado, do acalanto - são desúteis, como dissemos, mas apenas no sentido de que não estão filiadas a um intenção comunicativa ou mesmo educativa muito explícita, aliás é essa gostosa despreocupação que põe as figuras parentais no jogo de verdade. O ritmo, associado ao jogo corporal escande as palavras, identifica unidades melódicas, equipara e dá relevo a fragmentos por meio da rima e da repetição.

Na fala útil ocorre o contrário, a intenção comunicativa acaba prevalecendo sobre os significantes tornando-os menos salientes, menos visíveis. Quando a criança, no diálogo com o adulto, aprende a pedir, a exigir com voz alguma coisa, a intenção que sustenta o gesto acaba descentrando a materialidade significante. Já no jogo lúdico não, é a própria camada significante que está em causa, o sentido até comparece, mas sempre repete o jogo em si. Os recursos estéticos (métrica, ritmo, rima, paralelismo) favorecem a memorização e possibilitam a formação de uma rede de textos, de expressões e trechos que se vinculam de forma expressiva, quase sempre favorecendo a equivocação (aqui nos dois sentidos, tanto do equívoco como erro, como da possibilidade criativa da evocação de um fragmento que venha ocupar o lugar de um outro). Já em relação à passagem moëbiana entre o útil e o desútil, podemos citar aqui o escritor Graciliano Ramos (1973), em seu livro Infância, tentando coser os dois lados já no início dessa sua magnífica obra:

Não se distinguia nenhum ruído fora a cantiga do sapo do açude da Penha – vozes agudas, graves, lentas, apressadas, e no meio delas o berro do sapo-boi, bicho terrível que morde como cachorro e, se pega um cristão, só o larga quando o sino toca. Foi Rosenda lavadeira quem me explicou isto. Admirável o sino. Como seria o sapo-boi? Pelas informações, possuía natureza igual à natureza humana. Esquisito. Se eu pudesse correr, sair de casa, molhar-me, enlamear-me, deitar barquinhos no enxurro e fabricar edifícios de areia, com o Sabiá novo, certamente não pensaria nessas coisas. Seria a criatura viva, alegre. Só, encolhido, o jeito que tinha era ocupar-me com os sapo-boi, quase gente, sensível aos sinos. Nunca os sinos me haviam impressionado

Sapo cururu
Da beira do rio.
Não me bote na água,
Maninha,
Cururu tem frio.

Cantiga para embalar crianças. Os cururus do açude choravam com frio, de muitos modos, gritando, soluçando, exigentes ou resignados. Eu também tinha frio e gostava de ouvir os sapos (pp. 74-75)

Impressiona como o narrador entrecruza textos, mapeia as impressões vividas, evoca a cantiga do "Sapo cururu" e ainda enreda a crendice do sapo que morde. Vozes e cantigas vindas da memória vibram ao mesmo tempo diante das sensações sonoras que chegam do açude da Penha. Há, nesse momento, uma dissolução egóica que até permite uma identificação do narrador com o cururu que tinha frio. Mas o que chamamos a atenção é para os elos entre seus devaneios sobre sapos, extraído das conversas cotidianas, e a cantiga de ninar ouvida na infância.

Há um imenso agrupamento de gêneros na tradição oral dos quais tanto as famílias como os educadores podem dispor. Alguns armados em formato de verso, com suas quadras e rimas: (cantigas de ninar, cantigas de roda, brincos, mnemonias, nonsenses, quadra-advinhas etc);.outros na forma de narrativas ou mesmo em formatos mistos, combinando verso e prosa (como, por exemplo, o belíssimo conto acumulativo "A história da coca"). É importante notar que esses textos se tramam com a fala útil, constituem uma verdadeira tessitura polifônica e é essa riqueza que amplia a leitura e o ler.

Na transmissão escolar tais gêneros compõem o currículo de ensino da língua portuguesa desde as séries iniciais. Comumente, os textos que vêm da área do desútil acabam sendo alinhados como úteis, pragmáticos, bons para ensinar isso ou aquilo. Na propedêutica escolar há também sempre a idéia de que esse contínuo de texto obedece a um esquema desenvolvimentista, ou seja, as formas mais simples devem ser alcançadas e superadas para dar lugar a uma mais complexa, num processo crescente de engorda e espichamento da subjetividade.

Se aqui estamos também sob a influência da psicanálise não podemos admitir tal desenvolvimentismo. Sabemos por meio de Freud que a memória é inconsciente e que os traços aparentemente mais elaborados não são os sucedâneos aperfeiçoados dos traços primitivos. Tomando essa referência, postulamos - e nisso também contamos com o apoio dos escritores aqui citados – que os textos da infância permanecem fazendo seus jogos textuais sobre os outros que vão sendo lidos ou ouvidos ao longo da vida. Alguns, em razão de serem prototípicos e terem sido abusivamente repetidos, retornam em fragmentos maiores e às vezes até com sua fabulação integral (como os contos de fadas e algumas fábulas que, por exemplo, um Millor Fernandes vai ressignificar em suas Fábulas fabulosas), outros subsidiam clandestinamente a nossa fala e a nossa escrita (por exemplo, os provérbios e ditos populares comuns na família: "diz-me com quem andas que direi que és"). Claro, podemos afirmar que o romance Infância de Graciliano é uma elaboração bem mais complexa do que os textos que o pegaram nos seus primeiros anos, no entanto não é tão difícil provar que a complexidade dessa sua obra está somente em comportar elementos fundamentais vividos pelo escritor. Não se trata portanto de uma subjetividade que veio engordando, mas sim de uma trama complexa em que uma possível cronologia dos fragmentos textuais só pode ser vista quando o produto está acabado e não no momento vivo em que a escrita faz seu jogo intertextual.

Para continuar essa discussão, propusemos a leitura de dois textos elaborados por alunos do ensino fundamental – o primeiro, de uma 5ª série (12 anos), o segundo de uma quarta-série (10 anos)3. Estamos pressupondo que o primeiro texto responde a um apelo utilitarista e o segundo desejosamente busca os desvãos do inútil e com isso consegue tramar-se como texto de autoria. Vejamos o primeiro

 

 

Buscando as diversas vozes que insuflam o texto do aluno, podemos localizar algumas na escrita e outras pressupostas na enunciação. Para uma criança da periferia de São Paulo que gosta de empinar pipas, ter de enfrentar uma demanda de uma empresa de luz, a Eletropaulo, que promove concursos de redação com o objetivo de convencer as crianças a não empinarem pipa nas proximidades das redes elétricas, no mínimo, esse improvisado escriba terá que buscar uma fraseologia emprestada aos adultos: "Esse negócio de...."; "Por favor, não...", "Confia em...."; "Antes alguém fazia, agora não faz mais...". "Hoje sou feliz". Dá para perceber que o sujeito aqui endurece seu texto com expressões que em nada refletem o seu confessado desejo: empinar pipa perto ou longe dos fios elétricos. Na enunciação, pressupomos um alinhamento de alteridade que vai do lugar do(a) professor(a) a um suposto leitor da Eletropaulo que se afina discursivamente com a condenação das pipas perto da rede elétrica. Sendo obrigado a escrever alguma coisa, o aluno põe em jogo uma subjetividade simuladora, que aceita a cisão de seu eu criança por uma cunha de linguagem que além de dividir, obstrui as possibilidades de manifestação de seu desejo, sufocando as contradições possíveis. O resultado é um texto em que a submissão dá o tom, em que o manejo subjetivo só é entrevisto nas passagens dos fragmentos prontos que recebe de um outro pleno, que não se deixa furar.

Aqui, se o educador tivesse alguma noção sobre os lugares discursivos que essas demandas põem em jogo, talvez pudesse esvaziar um pouco o pólo desse outro exigente que parece impingir à criança a uma fórmula discursiva sobre a qual não se tem escolha. Talvez se pudesse tratar a demanda de forma menos útil, mais aberta a subjetividades mais galhofeiras, que, ao tomar o tema, tivesse também o cuidado de apostar mais no desejo e menos na demanda do outro. Por exemplo, poderia, com um debate, pôr a criança diante das seguintes frases: "eu quero empinar pipa, que se danem os fios da Eletropaulo!", "Ora que ela tire os fios da rua, que deixe as ruas e os céus livres para as pipas e os meninos!" "Nós preferimos a diversão com as pipas à eletricidade da Eletropaulo!"

O tom aqui parece se avizinhar de uma subversão sem tamanho por parte do professor, mas é só assim que a gente consegue abrir algum buraco nesses espessos tecidos que caracterizam o discurso dito politicamente correto, que atualmente cerceiam a subjetividade escolar. O aluno, ao ser incitado a transgredir, começa a pensar em uma contenda entre seu desejo de empinar pipa e os fios da empresa de luz. Luz ou Pipa? Como seria um mundo sem luz, sem energia elétrica, mas com liberdade para empinar pipa? Esse mundo poderia existir na fantasia? A fantasia poderia se tornar realidade ou mesmo se transformar em projetos que pudessem prever redes elétricas subterrâneas? A fantasia talvez pudesse levar o sujeito a desafiar a empresa com proposta de criação de parques próprios para empinar pipa, com ventos e eventos especiais, com cursos e concursos não de redação, mas de pipas mesmo – um lugar onde haveria liberdade para as pipas e para os escribas.

Quando o professor, ao ocupar o lugar de mestre, faz questão de não assumir de forma tão desbragada essa demanda de outro, mas sim dar-se ao exercício de franquear, de abrir o campo do "desútil" de tal forma a permitir mobilidade linguageira aos alunos, com certeza a criativade virá à tona. É o que veremos no próximo texto.

 

 

 

 

Notem que este é um texto escrito sobre um outro que já estava na memória. Do mesmo modo que o psiquismo, durante o sonho, utiliza os restos diurnos como material para a inscrição do desejo inconsciente, é possível perceber como o pequeno escritor puxou o texto da memória para, sobre ele, escrever o seu próprio texto. Podemos dizer que ele aproveitou a boa abertura fornecida por sua professora, que nada mais era do que uma proposta de desconstrução dos contos de fadas lidos nas séries iniciais.

Analisando a polifonia do texto, podemos notar que o sujeito se posta meio enviesado em relação ao texto clássico e aproveita as aberturas que vê na retomada da fabulação do conto para introjetar a sua ferina ironia. Contrapondo as personagens às figuras de seu tempo, o pequeno contista reelabora suas características para obter figuras condensadas e caricaturais: uma bizarra Chapeuzinho Vermelho, menina revoltada, que gosta de preto e Linkin Park; um lobo atualizado, motoqueiro e bem armado. A avó, que normalmente é uma figura respeitada pelas crianças – aqui sofre um desmonte, não passa de uma inútil velha hipertensa, epilética e diabética - talvez apenas um resto, uma sobra de suas elaborações pessoais sobre as figuras parentais - e que é, inclusive, jogada no esgoto.

A posição subjetiva é de confronto e total desrespeito aos códigos comportados dos contos de fadas, mostrando que o autor está pronto para galgar novas posições diante das ficções e das produções textuais. Podemos ver aí um autêntico fim de ciclo escolar, mas não no sentido desenvolvimentista. O que movimenta o confronto é o substrato primitivo que, em vez de estabilizar-se no moralismo do conto escolar, aceita o estilhaçamento do imaginário infantil tradicional por expressões e imagens advindas do mundo adulto contemporâneo. Desse confronto emerge um sujeito afeito ao risível.

Poderíamos até indagar se desconstruções deste tipo não favoreceriam um discurso meio perverso, acima dos códigos morais, mais propenso à formação do aluno mau caráter, cínico e insensível. Minha resposta é não! O que temos aí é a emergência de uma subjetividade que, com sua ironia, penetra nas lacunas de uma ficção para imprimir sobre ela elementos de suas elaborações mais singulares.

Não vamos exaurir os textos com análises e nem estender as comparações entre os dois tipos de texto, o que apenas queremos é utilizar duas produções textuais de finais de ciclo com o objetivo de exemplificar o que julgamos essencial nas escolhas de textos para criança e, a partir destas contraposições, defender um certo manejo didático dessa tríade, professor, aluno, texto. Enredando tudo o que dissemos até agora, vamos alinhar em seguida algumas subordinadas condicionais para, logo após, tentarmos um arremate coeso:

- se localizarmos, na vida da criança, desde o berço, dois usos da fala, a fala útil e a desútil...
- se afirmamos que a tradição dispõe para as famílias e educadores um largo escopo de gêneros textuais e que os textos lúdico-poéticos da infância promovem laços intertextuais com a fala cotidiana, com a fala útil e vice-versa, num jogo moebiano...
- se buscamos na literatura a possibilidade de um fazer textual que se diz comprometido com essa base infantil...
- se comparamos dois textos, um bastante submetido ao discurso utilitário, fechado em suas possibilidades e um outro em que podemos ver o aproveitamento das brechas abertas por uma relação educativa capaz de manejar bem as demandas externas que se põem sobre a educação...
- se em nossa perspectiva a escrita e o oral não são modalidades dicotômicas, mas dinâmicas moëbianas de um mesmo psiquismo, como o rébus nos mostra, tanto nos usos de hoje como na história da escrita...

...então, talvez tenhamos condições de elencar alguns pontos para reflexão:

Finalmente, estamos certos de que esse nosso texto aponta para uma análise da relação Psicanálise e Educação, sobretudo do subtema do Lepsi de 20065, que vai além de um pareamento direto entre clínica e sala de aula. Aproveitamos aqui alguns elementos da teórica psicanalítica, sobretudo o conceito de psiquismo-linguagem (que não foi explicitamente desenvolvido), para analisar "o que se transmite na escola", ou seja, apresentamos uma idéia para o manejo dos gêneros orais da infância e seus possíveis efeitos na produção textual e na aprendizagem da escrita e da leitura.

Diante de um ensino fundamental que antecipou seu início para a faixa cinco/seis anos como forma de garantir as bases para aprendizagem da escrita antes do início da escolarização da alfabetização e da leitura, nossa perspectiva chama a atenção para uma abordagem que, ao dissolver a dicotomia entre oralidade e escrita adotando a faixa de Moëbius como metáfora em vez da moeda e da folha de papel (dicotomias), permite valorizar as fases orais e as extensões linguageiras que vêm do ambiente parental.

 

Referências bibliográficas.

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BARROS, M. Livro sobre nada. Rio de Janeiro-São Paulo: Record, 2004.

BELINTANE, C. "Matrizes e Matizes do oral". Revista Doxa – Revista Paulista de Psicologia e Educação, Vol 9: Araquara: SP, 2005 (pp.23-45).

_________ Subjetividades Renitentes. In Linguagem e Educação: Implicações técnicas, éticas e estéticas. Rezende, N. Riolfi, C. Semeghini-Siqueira, I. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2006a.

FREUD, S. Obras Completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro: Editora Imago, 1988 (volumes consultados estão especificados nas notas de rodapé).

JERUSALINSKY, J. Prosódia e enunciação na clínica com bebês – quando a entoação diz mais do que se queria dizer. Mimeo. Apresentado no V Encontro Nacional sobre o Bebê, Belo Horizonte, 2004.

LACAN, Jacques. A Instância da Letra no Inconsciente. In Escritos. (Tradução Vera Ribeiro) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1998.

LIMA, J. Antologia Poética (Seleção de Paulo Mendes Campos). Rio de Janeiro, 1978.

MOTA, S. B. V. O quebra-cabeça da escrita: a instância da letra na aquisição da escrita. Tese de Doutorado. PUC, 1995.

POMMIER, G. Naissance et Renaissance de L'Ecriture. Paris: Press Universitaires de France, 1993

RAMOS, G. Infância. Rio de Janeiro: Martins, 1973

SAFOUAN, M. O inconsciente e seu escriba. Campinas : Papirus, 1987

 

 

1. Interpretação de Sonhos.
2. http://www.ncescher.com/
3. Aqui não nos interessam a caracterização das escolas, nossa intenção é a de apenas comparar duas propostas de produção de textos e localizar nelas alguns possíveis movimentos subjetivos dos alunos e dos professores envolvidos nas produções, embora convém ressaltar que o segundo texto é também resultado de uma estratégia pedagógica bem intencionada.
4. Sobre o papel dos textos orais no ensino e na clínica da escrita, os leitores podem consultar: Belintane, C. "Vamos todos cirandar". Revista Mente Cérebro. Coleção "A mente do Bebê", no. 3. São Paulo: Editora Duetto, 2006.
5. O tema desse texto foi exposto oralmente na mesa-redonda "O que se transmite na escola", tema do VI COLÓQUIO DO LEPSI, "PSICANÁLISE, EDUCAÇÃO E TRANSMISSÃO" "realizado na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, nos dias 16,17 e 18 de novembro de 2006".