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 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO - COMUNICAÇÕES LIVRES

 

Avaliação Psicanalítica aos 3 anos: desdobramentos e novas contribuições

 

 

Angela Flexa Di PaoloI; Rogerio LernerII; Maria Cristina Machado KupferIII

IAluna de mestrado do Programa de Pós-graduação em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano
IIProf. Dr. do Programa de Pós-graduação em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano (Orientador)
IIIProfa. Dra. do Programa de Pós-graduação em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano e coordenadora da Pesquisa Multicêntrica

 

 


RESUMO

Para a realização da "Pesquisa multicêntrica de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil", foi desenvolvido um instrumento – o IRDI – para a detecção de riscos para transtornos psíquicos do desenvolvimento infantil. No estudo, utilizou-se de corte transversal seguido por estudo longitudinal com amostra de crianças nas faixas de 0 a 3, 4 a 7, 8 a 11 e 12 a 18 meses, randomicamente selecionadas entre as que procuraram serviços de saúde públicos de 9 capitais brasileiras. Após aplicação dos IRDI, as crianças submeteram-se a Avaliação Psicanalítica (AP3) ao completarem 3 anos. O roteiro da AP3 foi elaborado com base em eixos teóricos extraídos da teoria psicanalítica (Lacan e Winnicott, especialmente) utilizados na definição dos IRDI: suposição do sujeito; alternância presença/ausência; estabelecimento da demanda; função paterna. Instituiu quatro novas categorias nas quais são descritos sintomas clínicos: brincar e fantasia; corpo e sua imagem; manifestação diante de normas e posição frente à lei; fala e posição na linguagem. Considera-se que a AP3 não serve apenas à aplicação aos 3 anos, possuindo grande potencial diagnóstico e capacidade de apontar riscos para a constituição subjetiva e problemas de desenvolvimento infantil. Como um dos possíveis desdobramentos da pesquisa multicêntrica, este trabalho discute algumas conseqüências de sua aplicação em crianças diagnosticadas como portadoras de Transtornos Globais do Desenvolvimento, discutindo sua efetividade e possíveis adaptações para tal fim.

Palavras-chave: Transtornos Globais do Desenvolvimento, psicanálise, avaliação.


 

 

1 Situando a pesquisa multicêntrica

A pesquisa "Leitura da constituição e da psicopatologia do laço social por meio de indicadores clínicos: uma abordagem multidisciplinar atravessada pela psicanálise" (temático FAPESP no. 2003 /09687-7) foi organizada em torno de dois sub-projetos.

O primeiro sub-projeto estabeleceu, a partir da teoria psicanalítica, indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil (IRDIs) observáveis nos primeiros 18 meses de vida da criança. Esses indicadores clínicos (IRDIs) podem ser aplicados por pediatras e por outros profissionais de saúde da atenção básica em consultas nas unidades básicas e/ou centros de saúde, no intuito de detectar precocemente transtornos psíquicos do desenvolvimento infantil. O estudo utilizou um desenho de corte transversal seguido por estudo longitudinal numa amostra de 674 crianças atendidas na clínica pediátrica nas unidades e/ou centros de saúde em nove cidades brasileiras (totalizando 11 centros). Após três anos de seguimento, as crianças foram avaliadas para identificação de transtornos psicológicos ou psiquiátricos e verificadas as associações com os IRDIs.

O segundo sub-projeto buscou verificar os efeitos do tratamento psicanalítico institucional sobre o aumento da circulação social de crianças psicóticas, criando para isso eixos teóricos capazes de ordenar o seguimento do tratamento e a partir dos quais alguns indicadores seriam criados. O tratamento proposto incluiu dispositivos de promoção de circulação social, tais como a inclusão e o acompanhamento escolar, o atendimento de pais, o acompanhamento terapêutico e as atividades de cozinha, além dos dispositivos tradicionais de tratamento já existentes que visam ao estabelecimento do laço social. Foram acompanhadas todas as crianças com DGD atendidas na Pré-escola terapêutica Lugar de Vida, durante quatro anos.

 

2 Objetivo central do projeto temático

Buscar a validação da leitura de riscos na constituição e da psicopatologia do laço social por meio de indicadores clínicos que podem ser empregados por pediatras e por outros profissionais de saúde da atenção básica em consultas regulares, além de serem úteis por indicar a possibilidade de ocorrência ulterior de transtornos psíquicos do desenvolvimento infantil.

 

3 Alguns resultados obtidos

3.1 Resultados obtidos no sub-projeto 1:

A aplicação do IRDI foi concluída em 2006. Uma sub-amostra de 267 crianças foi constituída; ao completar três anos de idade essas crianças foram submetidas a um diagnóstico psiquiátrico e psicanalítico, por meio de dois protocolos criados para esse fim: o roteiro para a Avaliação Psicanalítica (AP3), e o roteiro para a Avaliação Psiquiátrica. Essas avaliações foram finalizadas em janeiro de 2007. A partir dos resultados da avaliação psicanalítica foi montada uma tabela de sintomas clínicos. Definiu-se em seguida o desfecho clínico da pesquisa: a) presença ou ausência de problemas de desenvolvimento para a criança, ou b) presença ou ausência de risco para a constituição do sujeito. A análise estatística preliminar apontou que o IRDI possui uma capacidade maior de predizer problemas de desenvolvimento do que a capacidade de predizer o risco psíquico.

3.2 Resultados obtidos no sub-projeto 2:

O objetivo de criar eixos para o acompanhamento do tratamento de crianças e adolescentes psicóticos e autistas foi alcançado. Essa construção foi o resultado de uma articulação entre: a) os quatro eixos que orientaram a construção dos indicadores clínicos de risco, previstos para acompanhar as crianças de zero a dezoito meses, no sub-projeto 1 (suposição de sujeito, alternância presença ausência, estabelecimento da demanda, função paterna); b) eixos para orientar as avaliações psicanalíticas de crianças de três anos (O brincar, Imagem do corpo, As formas da lei, Posição na linguagem); c) eixos anteriormente construídos para o subprojeto dois. A partir dessas três elaborações, construiu-se aquela para crianças psicóticas e autistas: presença de respostas de um sujeito e de demanda dirigida ao outro, construção da imagem corporal, presença de função paterna.

 

4 Avaliação Psicanalítica aos 3 anos: pressupostos teóricos e novas contribuições

Indo de encontro a postulações que indicam uma única causa para o autismo – seja ela organogênica ou psicogênica –, o trabalho em questão centra-se numa perspectiva de multifatorialidade, isto é, que atribui não apenas um, mas diversos fatores para uma possível ocorrência de transtornos psíquicos do desenvolvimento infantil, entre eles o autismo e a psicose.

Admitir uma multifatorialidade pressupõe o reconhecimento dos alcances e limites de certas postulações teóricas. É uma forma de dialogar com diferentes campos de saber: Psicanálise, Educação, Medicina, Psiquiatria etc. E, nesse encontro, levar à conclusão de que há uma prevenção ou minimização de danos possível.

Partimos da Psicanálise para dialogar com outros campos, em especial aqueles em que atuam os médicos e os profissionais da área da saúde.

Laznik (2004) já desenvolvera com os médicos do serviço público francês uma forma possível de detecção precoce.

Em uma de suas apresentações em congresso, a autora ouviu de seus interlocutores médicos:

É muito novo o que você está dizendo. Há vinte anos, ensinaram-nos que o autismo era somente psicogênico e que era necessário procurar suas causas nos desejos mortíferos dos pais. Ora, conhecemos muitos desses pais, nós os vimos funcionar em completa adequação com os filhos mais velhos. Não podíamos considerá-los culpados. Então, calamo-nos. Dez anos depois, ensinaram-nos que o autismo era uma doença orgânica e que nada havia a se fazer senão reeducar posteriormente estas crianças. Pensamos, então, que o melhor era deixar um momento ainda de esperança para os pais e continuamos a nos calar. Você nos diz que existe uma terceira via possível, a de uma dinâmica de prevenção, e isto nos interessa. (LAZNIK, 2004, p. 157).

A prevenção, eis o que une os diferentes profissionais desta pesquisa em torno de um diálogo possível com a área da saúde, implicando uma aposta no sujeito que está por vir. Como afirmam Dutra e Bernardino (2008), a prevenção está assentada na noção do tempo, da antecipação e da evitação de algo. "Esse é o norte da clínica com bebês ou crianças bem pequenas: seu pressuposto é a intervenção e a detecção precoce de transtornos psíquicos. [...] Seu [da criança] lugar é, portanto, passível de deslocamento, antes que se sedimente com a fixação do fantasma da criança" (DUTRA; BERNARDINO, 2008, p. 152-153).

O que as autoras nos trazem é a importância de se atentar para alguns sinais que podem vir a indicar a ocorrência ulterior de autismo. Considerando que as relações primordiais que o bebê estabelece são fundamentais para o seu desenvolvimento, pode-se falar que o autismo é uma patologia que surge em decorrência de problemas no laço que se estabelece com o outro – qualquer que seja o modelo que se adote, seja ele psicanalítico, cognitivo ou biológico, é inegável admitir tal posição.

O eixo da pesquisa "Leitura da constituição e da psicopatologia do laço social por meio de indicadores clínicos: uma abordagem multidisciplinar atravessada pela psicanálise" centra-se na noção psicanalítica de sujeito do inconsciente. Parte-se da postulação de que a subjetividade é um aspecto central e organizador do desenvolvimento em todas as suas vertentes. Considera-se que a constituição do sujeito, sua inscrição na cultura, ocorre via alguns eixos fundamentais. São eles: o brincar e a fantasia; o corpo e sua imagem; a manifestação diante das normas e a posição frente à lei; a fala e a posição na linguagem. Procura-se identificar de que forma eles se manifestam na Avaliação Psicanalítica aos 3 anos (AP3)i, em cada caso, de tal modo que o parecer e as conclusões sobre o processo de constituição do psiquismo da criança é realizado com base no estudo dos eixos em questão.

Na tentativa de buscar subsídios que permitam antecipar a ocorrência de problemas de desenvolvimento infantil antes que eles se cronifiquem, esta pesquisa corrobora o que já postulava Laznik (2004): que é possível provocar alterações em uma patologia que está em curso. Alterações estas que constituem extravios em direção ao laço com o Outroii, à ligação erótica, à tentativa de trazer de volta – ou de inscrever/ convocar – o eros que se desarticulou do auto–erotismo. Logo, o autismo se refere a uma falha num momento fundamental da constituição psíquica: a alienação, necessária ao infante que posteriormente irá se separar do laço com o Outro para tornar-se, ele próprio, um sujeito. Freud, em 1915, já situava o auto-erotismo como condição necessária na constituição do indivíduo. Mas não se trata apenas de identificar uma possível ocorrência de autismo, há outras patologias, como a psicose infantil, apontada por alguns autores como um excesso de investimento afetivo, o que acarretaria uma dificuldade em sair do momento alienante, em separar-se do outro, reconhecendo os limites existentes entre eu-outro (Cf. LAZNIK, 2004; BERNARDINO, 2006).

Para identificar alguns sinais desses extravios, se faz necessário atentar para uma história que está em construção. História que ganha contornos ao ser investida (ou não) libidinalmente, com afeto, tessituras, jogos, brincadeiras, falas, regras e normas. Por isso, alguns eixos teóricos foram construídos a fim de apresentar uma avaliação clínica aproximativa da posição subjetiva da criança. Aproximativa porque, a rigor, só poderíamos ter esse dado em transferência no contexto de uma análise. Considerando que uma criança de três anos é um sujeito ainda em construção, e na medida em que essa construção depende em larga medida daqueles que estão ao seu redor, é necessário que a avaliação não se restrinja a um parecer sobre a criança, mas se acrescente o lugar que a criança ocupa no discurso familiar.

O bebê, ao nascer, ocupa um lugar na família e na cultura da qual faz parte. Sua subjetividade será delineada nas relações que estabelece nesses âmbitos, com a contribuição das disposições naturais e afetivas que isso implica. Como lembra Bernardino (2006), para que ocorra o surgimento de um sujeito psíquico é necessário o encontro de dois alicerces: o biológico e o relacional.

A formação da subjetividade que embasou a pesquisa se sustenta na articulação de dois aspectos: 1) o biológico (maturacional), que oferece a base material necessária às configurações de funcionamento e aprendizagem que o meio circundante propicia à criança; e 2) o relacional (afetivo), que implica as relações da criança com os pais, a família, a cultura, a linguagem. Uma vez apoiada nos recursos maturativos, a criança é capaz de conquistar habilidades e, também, de atribuir sentidos a elas.

Trata-se, assim, de considerar o sujeito como efeito da articulação desses aspectos. Eis a sua condição de existência como humano. Como afirma Bernardino (2006, p. 33):

As condições orgânicas potenciais do bebê para relacionar-se com o ambiente devem se encontrar com esta estrutura de linguagem sustentada pelas figuras parentais, que retroativamente devolvem palavras e significações para experiências de início concretas e de satisfação de necessidades, que rapidamente (pela repetição) ganham uma inserção psíquica e podem ser antecipadas – criando um funcionamento psíquico particular, uma maneira singular de se situar no mundo e de decodificá-lo.

É no contato com o outro – que traz além da satisfação física um a-mais constituído por gestos, palavras e olhares – que o organismo vai sendo aos poucos simbolizado. [...] Percebemos que, no campo humano, o circuito pulsional rapidamente suplanta e significa o funcionamento biológico.

Este circuito pulsional permitirá ao organismo se tornar um corpo (desejado), ao mesmo tempo em que se esboça um sujeito psíquico (desejante), que aos poucos demarca o seu lugar no mundo.

Buscou-se, em última análise, registrar se essa constituição psíquica está em andamento ou em risco, apresentando sintomas clínicos já instalados. Havendo sintomas clínicos constatados, é possível afirmar que a criança está apresentando dificuldades de desenvolvimento, e poderá atravessar dificuldades de ordem psíquica, de pequena monta ou mesmo mais intensas. Mas a presença de riscos para a constituição subjetiva aponta para problemas mais estruturais, e localiza uma evolução em direção às psicopatologias graves da infância, tais como as psicoses infantis, as psicopatologias que apresentam traços autistas e até mesmo o autismo. Ainda está sendo utilizada a categoria risco porque em crianças de três anos não é possível diagnosticar psicopatologias definitivas – ressalte-se que, em alguns casos, o autismo vem sendo diagnosticado por psiquiatras a partir dos 5 anos de idade.

A avaliação do estabelecimento de um sujeito psíquico requer observar se há uma antecipação para o lugar da criança na família, como isso ocorre, como lhe são feitas demandas e como se recebe as demandas que vêm da criança, enfim, requer atentar para os fatores que propiciam a emergência de um sujeito desejante, que condições estão sendo criadas para a sua inscrição na cultura e, ainda, como lhe é conferido um lugar na família, lugar que não é só um quarto ou um berço, mas uma posição subjetiva. Posição esta que vai se inscrevendo, paulatinamente, na família, na cultura, na linguagem, numa combinatória que construirá a sua história, compondo a sua subjetividade, seu próprio desejo.

Uma abordagem psicanalítica da criança não pode deixar de considerar esses aspectos. Retomando os aspectos neuropsicomotores, é importante ressaltar que eles são fundamentais para avaliar se a criança se localiza bem no espaço, se suas aquisições motoras correspondem ao esperado para sua faixa etária etc. Contudo, estes aspectos, por si só, não são suficientes para avaliar a emergência nem a formação de uma subjetividade. Para que isso se estabeleça, é necessário que esses aspectos façam sentido para a criança,

que ela tenha recursos simbólicos para – à medida de suas conquistas neuropsicomotoras – começar a entender quem ela é, qual seu lugar na família – e depois na comunidade –, que significação tem para ela o mundo. Estes recursos dependem da constituição de um psiquismo, do fato de que esta criança esteja submetida a um processo de inscrição no campo simbólico que lhe permita ser sujeito de sua história, ou seja, falar em nome próprio. (BERNARDINO, 2006, p. 37)

Além disso, como lembra Kupfer (2003, p. 13), "só será possível dizer que um bebê está construindo uma subjetividade a partir de certas manifestações que possam ser identificadas como respostas do sujeito, ou seja, singulares, próprias daquela criança em particular".

Portanto, a proposta que aqui se apresenta versa sobre a importância da perspectiva que vai além dos aspectos neurológicos, pois é preciso mais do que seu bom desenvolvimento para que uma subjetividade se constitua.

A Avaliação Psicanalítica (AP3) foi construída, então, com o intuito de investigar e de tentar compreender os efeitos de sujeito na criança em questão, levando-se em consideração uma pluralidade de discursos envolvidos, o do adulto, o dos cuidadores, além daquele que é tecido pela própria criança. A AP3 erigiu-se, assim, em torno de quatro eixos teóricos, elencados a seguir.

4.1 O brincar e a fantasia

"A fantasia, a apreensão da dimensão da fantasia, ela está na própria origem, no próprio nascimento da psicanálise", assim Jorge (2007, p. 143) concede à fantasia o estatuto fundador da psicanálise, na medida em que ela nasce no momento mesmo em que Freud abandona a teoria da sedução e do trauma, que o acompanhou durante algum tempo.

É no momento em que Freud (1897) se despoja da teoria traumática da etiologia das neuroses, que se abrem as portas para o reconhecimento gradual da sexualidade infantil como um evento "universal" (amplamente trabalhado em seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de 1905) e para o desempenho da fantasia, capaz de "atuar com toda a força das experiências reais" (FREUD, 1897, p. 303).

Garcia-Roza (2000, p. 95) lembra que a Carta 69 é freqüentemente apontada como expressiva de um momento fundamental do pensamento freudiano: "o da passagem para a fantasia, lugar por excelência da cena psicanalítica".

Avançando alguns anos em sua obra, veremos a relação da fantasia com o brincar infantil e com a criação literária.

Em dezembro de 1907, nos salões do editor e livreiro vienense Hugo Heller, Freud apresenta uma conferência diante de uma platéia de noventa pessoas. Nela, esboçava-se a aproximação entre a fantasia e o brincar infantil. O brincar seria um trabalho psíquico onde o conteúdo essencial é a realização imaginária de um desejo, tarefa levada muito a sério pela criança e de fundamental importância para seu desenvolvimento, como lembra Toledo (2003). A fantasia seria a formação de um substituto desse brincar, pois "nunca renunciamos a nada; apenas trocamos uma coisa por outra. [...] a criança em crescimento, quando pára de brincar, só abdica do elo com os objetos reais; em vez de brincar, ela agora fantasia" (FREUD, 1907, p. 136, grifo original).

Em se tratando de um trabalho realizado com crianças, torna-se imprescindível considerar as dimensões do brincar e das fantasias subjacentes a esse processo. Parte-se do pressuposto de que o brincar é uma via de elaboração e, também, pode indicar quando algo não vai bem no desenvolvimento infantil – quando a criança, p. ex., não consegue diferenciar claramente os limites entre faz-de-conta e realidade.

4.2 O corpo e sua imagem

A imagem do corpo é um conceito amplamente elaborado e originalmente discutido por Françoise Dolto, psicanalista francesa de enorme contribuição à Psicanálise com crianças. Para a autora, a imagem do corpo precisa de um suporte lingüístico para se estruturar. Se a simples experiência sensorial (corpo a corpo) constrói um esquema corporal, a imagem do corpo, por sua vez, necessita de mais do que isso. Ela requer uma relação que envolve a fala da mãe (ou de quem faça esta função).

A imagem do corpo é, portanto, em sua própria essência, relacional: apóia-se no outro. É corporalmente ordenada no corpo, no sentir e no dito da mãe. A fala e a proibição da mãe limitam, invalidam e promovem. [...] A fala, portanto, é o organizador que permite o cruzamento do esquema corporal com a imagem do corpo. (LEDOUX, 1991, p. 89).

Estudos sobre a imagem do corpo podem levar à constatações de quando há discrepância nos movimentos, na diferenciação estético-sexual, nas expressões de auto-reconhecimento e no caráter massivo da demanda de reconhecimento por meio da captura incessante do olhar do outro. Refere-se, ainda, a uma coerência existente entre a postura e o movimento da criança, em relação a sua posição na diferenciação sexual.

4.3 Manifestação diante das normas e posição frente à Lei

Observar os limites e restrições que se impõem à criança e às formas com as quais ela os recebe é importante na medida em que aponta indícios do quanto ela sustenta a instaurações de normas e leis. Trata-se não somente de obedecer às regras impostas pelos pais e/ ou terceiros, mas de algo constitutivo: sua tolerância à marcação de tempos e de atividades e a construção de uma instância de interdição que sustenta diversas formas que a lei tem de se manifestar. Uma instância de interdição que também funciona como separação, limites, escolhas, perdas e renúncias também.

4.4 A fala e a posição na linguagem

A formação da subjetividade está, então, nessa articulação que enlaça o sujeito ao discurso. E o sujeito se constitui, em última instância, como efeito de discurso. É Jerusalinsky (2004) quem lembra que o bebê, ao ser inserido numa série significante, torna-se efeito de uma seqüência de sentidos, isto é, a ele é concedido um lugar, lhe são atribuídos sentidos e ao longo de sua história ele é convocado a se posicionar como um sujeito. Essa possibilidade de tecer a(s) narrativa(s) de sua vida lhe é dada no campo da linguagem.

Como afirma Ferreira (2001), a criança precisa reconhecer sua existência no desejo desse Outro. Seu desejo nada mais é do que desejo de reconhecimento.

Trata-se então de considerarmos como o desejo do Outro incide sobre a subjetividade da criança e como as modalidades de resposta podem ser nefastas: doença orgânica, anorexia e várias outras manifestações sintomáticas [...]. O primeiro grande trabalho do humano, ao nascer, é encontrar significantes para encarnar-se na ordem simbólica, na subjetividade [...]. É preciso que haja uma oferta de significantes ao recém-nascido. Dessa oferta, ele tomará um ou outro significante, imprevisivelmente, porém há sempre uma oferta de significantes em uma família. (FERREIRA, 2001, p. 60)

Para a autora, tal oferta de significantes é imprescindível à medida que permite à criança encontrar um lugar simbólico em que possa se reconhecer como singular e como parte de uma coletividade. O peso das palavras e dos significantes marca o sujeito e, nesse sentido, o discurso tem o poder de destinar ao sujeito um lugar na história, ao mesmo tempo em que ele se implica em construí-la. Como bem pontua Bernardino (2006, p. 21), a linguagem é "a estrutura a partir da qual um ser humano pode se tornar um sujeito falante e desejante". Em outros termos, para que o sujeito se constitua como desejante, é imprescindível que se reconheça no registro da linguagem.

É o que podemos chamar da passagem que o sujeito faz de desejado para desejante. É num ensaio sobre o ato que Birman (1988) situa de modo claro a passagem de uma criança desejada para um sujeito desejante. Parte do enunciado presente no "Evangelho de São João": "no princípio era o verbo" para demarcar a inscrição (primordial) simbólica que antecede e antecipa a constituição do sujeito, funcionando como a sua condição de possibilidade. Nesse momento, o infante não se reconhece como inserido na ordem simbólica, embora seja por ela reconhecido. Para que esta passagem seja feita a fim de que o sujeito se constitua é necessário um outro momento constituinte e fundador: a superação mítica das origens, o reconhecimento do pai morto e a conseqüente assunção de seu próprio desejo. É o que culmina no ato fundador ilustrado ao final de Totem e tabu por meio do enunciado fáustico de Goethe: "no princípio era ação (Tat)". Eis a transgressão/ ato primordial que funda o sujeito e que o possibilita tornar-se sujeito de sua própria história. "No princípio era o verbo" e "no princípio era ação": estes "dois princípios são fundamentais, pois remetem para dois registros da temporalidade que são constituintes do sujeito" (BIRMAN, 1988, p. 25).

Há vários fatores que podem desencadear transtornos de desenvolvimento infantil. Mas estamos no registro propriamente psíquico e é apenas nele que podemos intervir. Deixemos ao médico suas contribuições, façamos aquilo que nos cabe, que nos é possível fazer.

Uma vez apresentados os eixos que compõem a AP3, uma nova proposta se configura na tentativa de aplicá-la a crianças que já foram diagnosticadas como portadoras de Transtornos Globais do Desenvolvimento. A proposta é discutir sua efetividade e possíveis adaptações para tal fim

 

5 Propostas atuais

Uma vez lançados os resultados obtidos até então, é possível lançar propostas novas que se configuram como desdobramentos do Projeto Temático original. Além da realização de estudo longitudinal para acompanhar as crianças de cinco e seis anos que já participaram da pesquisa (estudo que já está sendo realizado por meio do investigação da qualidade de vida, com a aplicação do Questionário de Avaliação de Qualidade de Vida da Criança – AUQEI; e ainda por meio da avaliação sintomática, realizada com a aplicação do Child Behavioral Checklist – CBCL), é possível realizar estudos com a AP3 em crianças que se encontram em instituições de saúde mental infantil, já diagnosticadas com algum Transtorno do Desenvolvimento Infantil. Tal importância fundamenta-se especialmente na capacidade constatada de que os Indicadores Clínicos (IRDIs) possuem uma capacidade maior de predizer problemas do desenvolvimento do que capacidade de predizer o risco psíquico após a análise estatística (KUPFER et al., 2008b).

Inserido numa vertente que pretende consolidar os instrumentos IRDI e AP3 para uso por profissionais em instituições de saúde públicas, este trabalho apresenta a proposta de lançar questões que fundamentem o debate em torno de que eixos podem ser modificados, inseridos ou ainda revistos para o uso da AP3 em instituições de saúde mental infantil.

Entre aqueles que podem ser acrescentados e/ou adaptados ao instrumento, destacam-se:

1. As ações e comportamentos da criança são só referidas por um ou por ambos os progenitores? As ações e comportamentos não são referidas por nenhum dos progenitores? Os pais parecem ter certeza do que a criança quer ou ter certeza de que a criança não tem querer?

2. Os sintomas são motivos de prazer, incômodo ou sugerem um gozo? Os sintomas são vistos como coisas a serem alimentadas, eliminadas ou encaradas como um problema? Há regozijo dos pais? Como estão implicados? Verificar as suposições dos pais quanto à causa do problema e ligação dos mesmos com seu fantasma.

3. Significantes ordenadores do registro patronímico. Verificar se o pai ou a mãe fazem uma identificação sintomática com o filho. Há manifestações sugestivas da ocorrência de foraclusão? Tais significantes são traços ordenadores da função paterna (quando há filiação) ou naturalizam o fracasso dessa função? Ou, ainda, pode não haver filiação.

4. Verificar se há negação de dificuldades evidentes da criança.

5. Aparente indiferença da criança.

6. A demanda da criança é considerada como algo que os pais conhecem e se prontificam a satisfazer?

7. Tem alguém com quem a criança insiste em dormir junto?

8. A criança se masturba com freqüência?

9. Questão referente aos traços de identificação sexual em brincadeiras, fabulações, desenhos ou delírios.

10. Interrogar sobre a agressividade ser maior em relação à mãe ou o pai.

11. A criança apresenta maior agressividade com relação a personagens masculinos ou femininos?

12. Quanto à construção da imagem corporal na criança (com os pais e só com a criança): a criança apresenta agitação ou inibição motora? Mexe-se o tempo todo ou fica muito tempo parada?

13. Quanto à função paterna (com os pais e só com a criança): há indícios de delírio e/ou alucinações?

 

Referências

BERNARDINO, L. M. F. A abordagem psicanalítica do desenvolvimento infantil e suas vicissitudes. In: BERNARDINO, L. M. F. (Org.). O que a psicanálise pode ensinar sobre a criança, sujeito em constituição. São Paulo: Escuta, 2006.

BIRMAN, J. A palavra entre atos. Cadernos de Psicanálise – Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro. Nov 1988, v. 7, n. 10, p. 11-26.

DUTRA, F. G.; BERNARDINO, L. M. F. A avaliação psicanalítica na Pesquisa Multicêntrica de Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil. In: LERNER, R.; KUPFER, M. C. M. Psicanálise com crianças: clínica e pesquisa. São Paulo: Escuta, 2008.

FERREIRA, T. Os meninos e a rua – uma interpelação à psicanálise. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

FREUD, S. (1897) Carta 69. Obras Completas, v. I. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.

________. (1907) Escritores criativos e devaneio. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1996

GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

JERUSALINSKY, A. Psicanálise e desenvolvimento infantil: um enfoque transdisciplinar. 3 ed. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2004.

________. Considerações acerca da avaliação psicanalítica de crianças de 03 a 04 anos. In: LERNER, R.; KUPFER, M. C. M. Psicanálise com crianças: clínica e pesquisa. São Paulo: Escuta, 2008.

KUPFER, M. C. M. Projeto Temático FAPESP no. 2003/09687-7 "Leitura da constituição e da psicopatologia do laço social por meio de indicadores clínicos: uma abordagem multidisciplinar atravessada pela psicanálise". São Paulo: USP/ IP, FAPESP, 2003. (Projeto de Pesquisa).

KUPFER, M. C. M.; ROCHA, P. S.; CAVALCANTI, A. E.; ESCOBAR, A. M. U.; FINGERMANN, D. Apresentação e debate em torno da Pesquisa Multicêntrica de Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil. In: LERNER, R.; KUPFER, M. C. M. Psicanálise com crianças: clínica e pesquisa. São Paulo: Escuta, 2008a.

KUPFER, M. C. M.; BERNARDINO, L. M. F.; JERUSALINSKY, A. N.; ROCHA, P. S.; LERNER, R.; PESARO, M. E. A pesquisa IRDI: resultados finais. In: LERNER, R.; KUPFER, M. C. M. Psicanálise com crianças: clínica e pesquisa. São Paulo: Escuta, 2008b.

LAZNIK, M. C. A voz da sereia: o autismo e os impasses na constituição do sujeito. Salvador: Ágalma, 2004.

LEDOUX, M. H. Introdução à obra de Françoise Dolto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.

JORGE, M. A. C. Lacan e a escrita da fantasia. In: COSTA, A.; RINALDI, D. Escrita e psicanálise. Rio de Janeiro: Cia. de Freud: UERJ, Instituto de Psicologia, 2007.

TOLEDO, M. R. A fantasia e suas implicações na clínica psicanalítica. Dissertação (Mestrado) – Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2003, 93p.

 

 

i Sobre a origem e o delineamento da AP3, Cf. Kupfer et al. (2008a) e Jerusalinsky (2008).
ii Conceito que não se refere necessariamente à mãe biológica, mas à pessoa que cumpre esta função para o bebê (Cf. BERNARDINO, 2006).