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 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

Os equívocos da infância medicalizada

 

 

Margareth Diniz

Mestre e Doutora em Educação. FAE-UFMG. Professora Adjunta de Psicologia da Universidade Federal de Ouro Preto

 

 


RESUMO

O presente texto recoloca em cena as questões das crianças e dos adolescentes em tempos pós-modernos, destacando a questão da medicalização da infância, situando a discussão na interface das pesquisas no campo Psicanálise e Educação.

Palavras chave: Infância, medicalização, sintoma.


 

 

Todos nós que nos ocupamos da clínica também estamos habituados com solicitações de tratamento de crianças a partir de uma exigência da escola em relação à sua inadaptação, ou inadequação à regras mais elementares de seu aprendizado e de sua socialização. Normalmente são os pais, mais especificamente as mães que nos formulam este pedido. O que torna estes pedidos curiosos é que invariavelmente, trazem consigo um enunciado pedagógico nos seguintes termos: "A escola chegou à conclusão que esta criança necessita de um acompanhamento". Isto nos remete a fazer uma breve reflexão sobre a concepção de criança e o papel da educação na civilização, buscando compreender as implicações impostas por esta relação adulto-criança-instituição, tentando extrair daí as conseqüências que nos interessam.

Inevitável nos perguntar acerca do mal-estar inerente ao processo civilizatório. A chegada de uma criança ao mundo coloca questões para o adulto gerando um sentimento no mínimo ambíguo, pois ao mesmo tempo em que há um movimento de reconhecimento de um novo ser, há também certo embaraço devido à necessidade de apresentar aos recém-chegados um mundo que os antecede e que continuará após sua morte, e no qual transcorrerá sua vida.

Desde os primórdios, qualquer que tenha sido o momento em que a civilização teve início, é a educação em seu sentido mais amplo, o termo que usamos para definir o processo pelo qual vai ocupar um lugar na sociedade, bem como o preço a pagar por dela fazer parte.

Este estatuto social traz à tona a discussão sobre as instituições que foram criadas para amparar, proteger, educar, enfim civilizar as crianças. Com base na autoridade da ciência, articula-se um discurso em defesa da interferência no social em nome do bem público e da proteção ao indivíduo.

Supõe-se que os pais têm a responsabilidade de introduzir as crianças no mundo para possibilitar o vir-a-ser-adulto, a partir de um desenvolvimento orgânico e psíquico, bem como protegê-las dos perigos públicos do mundo, para os quais se pressupõe que elas não estejam preparadas. Nisto consistiria a educação familiar: dar às crianças condições de acesso à cultura, preservando sua integridade física e psíquica. A criança e o adolescente esperam do outro que lhe responda algo acerca do enigma de sua existência, e os outros esperam das crianças que se conduzam na vida de modo a responder aos seus ideais.

A fim de salvar os pais de tamanha angústia diante do não-saber, surgem as tentativas de tornar científicas as respostas a estas questões na busca de aplacar o mal-estar. A ciência começa a forjar um saber que não pertence nem ao pai, nem a mãe. Estes são levados a interferirem cada vez menos na educação dos filhos. Entra em cena a figura dos especialistas, autorizados principalmente pele discurso da mãe, que demonstra um verdadeiro fascínio pela promessa de um saber total, sem furos.

 

O discurso científico

A trajetória histórica da constituição das bases discursivas de cada um dos setores sociais encarregados de produzir um saber sobre a infância, mostram de maneira inequívoca, que o discurso da ciência, principalmente aquele representado pela medicina, é que forneceu a munição necessária para que estruturassem sua lógica disciplinar com base em parâmetros de normalidade irrefutavelmente científicos.

A partir do estabelecimento fisiológico das categorias "normal e patológico", como demonstrado por Canguilhem (1998), a medicina pode ocupar o lugar de decisão última sobre o que deve e o que não deve sofrer medidas de correção. O alcance dessa posição do médico é desmedido quando se observa o nível de homogeneização e generalização que esse discurso propõe anulando todo e qualquer indício de que no paciente se encontra uma história. Uma palavra, mesmo que não seja a última, advinda do médico, o detentor da verdade primeira da ciência, remete o paciente a um emblema identificatório de onde poderá se recolher.

Mas a medicina precisava de uma aliada nesta tarefa civilizatória. Assim, saúde e educação se uniram na construção de um projeto de nação. É aí que as escolas passam a funcionar como a instituição que representa o mundo para a criança, como intermediária entre a família e a cultura. Para isto os/as educadores/as deveriam estar em condições de representarem para as crianças o mundo, assumindo para si a responsabilidade de transmitir um saber que constitui a herança das novas gerações. É nesta posição de representação que o/a educador/a funda sua autoridade.

Atualmente sabemos que em inúmeros casos, a escola passou do papel de intermediária à principal agência de transmissão da cultura de uma geração à outra, única capaz de permitir às jovens gerações que encontrem seu lugar no mundo, mas, em muitos casos, ao contrário disso, esta mudança tem apresentado como efeito, a desresponsabilização da criança com o outro e com o mundo.

De acordo com Jackes Akermam (2000:74) uma série de discursos assessoram a escola na sua função selecionadora:

"Da medicina passando pela pedagogia, pela psicologia, pelo direito até chegar à televisão, todos se ocupam do enquadramento objetivo e subjetivo do que deve ser uma criança e um adolescente. Em uníssono, estes discursos, homogeneizam a todos sob a rubrica geral de "alunos", e postulam que seu lugar é a escola".

O caráter segregador da escola parte de uma ordenação moral que se encontra nas origens da escola moderna e se consolida pela sustentação científica que a medicina e a psicologia lhe oferecem. Trata-se do setor social que dispõe dos parâmetros mais bem estabelecidos para a definição do aspecto da normalidade.

 

Saúde e educação: em busca de um projeto de nação

O intervalo que compreende as três primeiras décadas do século XX, no Brasil, caracteriza-se por uma intensa polêmica em torno de um projeto para a nação. O foco de atenção dos debates centrava-se na constituição física e moral do brasileiro. País recém-saído da economia escravista e inscrito formalmente na ordem republicana, o Brasil se via às voltas com o problema de integrar na cidadania um imenso contingente populacional abandonado pelo estado e sem acesso aos meios produtivos. Despossuídos e desqualificados em termos de capacitação profissional e nível de escolaridade, esse contingente era visto como um entrave para o pleno desenvolvimento do país, pois representavam aos olhos da intelectualidade a identidade da nação.

O debate em torno de um projeto de nação tinha como eixo o aprimoramento da raça e das condições de vida da população brasileira, como elementos capazes de alavancar o progresso. A questão do aprimoramento racial, no entanto, era permeada por posições que iam desde concepções mais retrógradas que defendiam pura e simplesmente a necessidade de constituição de uma nova raça pela crescente incorporação de contingentes brancos, até àquelas mais recentes que argumentavam a favor de uma maior intervenção por parte do Estado no sentido de fornecer à população meios adequados para a obtenção de parâmetros satisfatórios de saúde e educação, de acordo com Marques (2001).

Inscrita no registro da medicina social, a psiquiatria brasileira irá, a partir da segunda metade do século XIX, intensificar seus esforços no sentido de buscar um controle absoluto sobre as instituições asilares, bem como constituir-se como ramo autônomo da medicina, o que se faz via domínio de um território medicalizado.

A incorporação das questões relativas à saúde e à educação da população brasileira irá reforçar as correntes de pensamento mais identificadas com o sanitarismo e a medicina preventiva, adotando novos parâmetros para além dos determinantes biológicos, especialmente os raciais.

Como se sabe, o período de institucionalização da medicina e de organização do Estado no que tange à área da saúde é marcado pela concorrência de várias teorias que procuram explicar a emergência das enfermidades que assolavam a população. A corporação foi capaz de forjar um consenso em torno não só da possibilidade de intervenção da medicina no social, privilegiando o aspecto preventivo, mas também buscando antecipar-se à instalação da doença.

Para Maeques (2001) são as idéias de orientação profilática que irão embasar mais tarde, em 1923, a criação da Liga Brasileira de higiene Mental/LBHM que reunia a elite do pensamento psiquiátrico brasileiro e congregava intelectuais, juristas, cientistas, militares e políticos de grande expressão no cenário nacional.

Apesar de filiada à corrente que afirmava a hereditariedade enquanto elemento primordial para a eclosão e curso das doenças, a psiquiatria via na educação um meio de sanar ou prevenir o aparecimento de tais deficiências.

O discurso médico, especialmente o psiquiátrico assinalava que o exercício continuado de práticas comportamentais consideradas nocivas poderia ser enquadrado como causa e efeito de processos degenerativos que, uma vez instalados, eram transmitidos às gerações futuras pela via da hereditariedade. Nessa linha de raciocínio, o desregramento, a compulsão, os impulsos, as paixões e os vícios eram percebidos como sinais inequívocos de perigo à saúde do indivíduo e de sua descendência sendo, portanto, imprescindível, buscar formas de evitá-los, tendo em vista o bem da espécie e o progresso da nação. Aqui o ato sexual passa a ser um ponto privilegiando de intervenção tanto no aspecto biológico como forma de incentivar a realização de cruzamentos adequados à melhoria da raça, buscando-se em contrapartida evitar as uniões onde eram observados comprometimentos degenerativos, quanto ao que concernia à aquisição de hábitos e comportamentos morais considerados sob esse enfoque como sinônimos de vida sadia, de acordo com Marques (2001).

Característica marcante da inserção dos psiquiatras na elaboração de um projeto para a nação, a introdução da componente eugênica nos objetivos da Liga permitia à psiquiatria ampliar seu raio de ação e sua participação no debate sobre a identidade nacional que mobilizava a intelectualidade do período. Com efeito, para parte dos intelectuais brasileiros afinados com as teorias eugênicas em voga na Europa e nos Estados Unidos, a presença de caracteres degenerados herdados de raças consideradas inferiores tinha forjado um povo indolente, preguiçoso e indisciplinado, constituindo-se, portanto, numa ameaça e num obstáculo ao progresso e à civilização.

A adoção da eugenia pelos psiquiatras corroborava os postulados da teoria da degenerescência e conferia ao conhecimento psiquiátrico um aporte teórico balisado pelos critérios de cientificidade valorizados no momento.

Impulsionada pelas noções de higiêne mental e de eugenia, a psiquiatria abria assim a possibilidade de espalhar seu projeto por todas as camadas do tecido social. O discurso médico brasileiro, de maneira predominante, se pauta na concepção higienista, baseada na idéia de desvio físico e psíquico e centrada nas noções de prevenção e educação. Essa geração de médicos tem como missão o estabelecimento de medidas profiláticas com vistas a corrigir os "defeitos", garantir uma "procriação sadia" e formar uma "boa geração" de brasileiros, capaz de "enobrecer" o futuro da nação. E muitos são os adeptos das teses freudianas que vêem nessa proposição médica, que investe na esfera da vida privada da família, um lugar nobre para a psicanálise, pois para eles ela traz uma contribuição de valor científico, portanto positivo, que pode ser traduzido em um programa preventivo de educação sexual endereçado não só aos pais mas também às crianças e aos educadores, de acordo com Oliveira (2002).

Incorporados ao projeto eugênico de higiêne mental da sociedade, as contribuições de Freud foram muitas vezes deformadas pela subtração ou distorção de suas noções mais essenciais. Isto porque, imbuídos da tarefa de sanear os indivíduos e a sociedade, os psiquiatras procuravam expurgar aquelas derivações que a seu ver significavam uma ruptura inaceitável em relação à sua linha de trabalho. Nesta perspectiva, o olho clínico ganhava novo fôlego e nova roupagem. Ampliavam-se a partir da Psicanálise e da Psicologia as possibilidades de prevenir as doenças mentais e, mais ainda, as possibilidades de corrigir e modelar o futuro das novas gerações, sendo recomendada sua utilização na pedagogia e em áreas correlatas.

 

A Psicologia e as respostas para o fracasso escolar

A abordagem organicista cunhada pela psicologia a partir da medicina foi a primeira teorização sobre as dificuldades de aprendizagem, surgidas no final do século XIX. Após a introdução do discurso médico no ambiente escolar, passa-se a buscar nas disfunções neurológicas ligadas ao desenvolvimento do sistema nervoso as explicações para o fracasso escolar de boa parte de crianças que passaram a ser nomeadas com novos significantes, que as identificam a portadores de dislexias, disortografias, discalculias, ou dispraxias. A conseqüência desse tipo de nomeação é a produção exacerbada da psicologização e medicalização dos problemas escolares, que não deixa de ocasionar enormes prejuízos à vida escolar dos alunos.

Os/as professores/as, já no início da escolaridade das crianças fazem os seus "diagnósticos", separando as que irão aprender e as que não conseguirão fazê-lo, e, sem se dar conta, anunciam em alto e bom som, o futuro fracasso escolar, atestando assim o déficit do lado do sujeito.

Outro destaque pode ser dado aos testes psicológicos. Durante as três primeiras décadas do século XX, os testes psicológicos assumem um grande peso na decisão dos educadores a respeito do destino escolar de grandes contingentes de crianças que tinham acesso à escola. Nas décadas seguintes, quando as teses psicanalísticas são incorporadas como instrumento de análise dos resultados dos protocolos, os testes passam a ser interrogados e seus resultados passam a indicar também as possíveis interferências da dimensão afetiva e da vida familiar na determinação do comportamento e das dificuldades do aluno com a aprendizagem escolar. Este último aspecto é responsável pela mudança terminológica que se processa no âmbito da psicologia educacional: de "falsa debilidade", a criança com resultados contraditórios ao teste, ou que apresenta problemas de ajustamento ou de aprendizagem escolar, passa a ser designada "criança problema", no dizer de Arthur Ramos apud Marques (2001).

Para elas é difícil desconstruir a falsa idéia de que as crianças e os jovens não aprendem por terem "problemas de saúde", e apresentar ás professoras as conseqüências deste diagnóstico infundado de doença na formação do autoconceito e da auto-estima. Podemos nos perguntar se alguém pode aprender quando o consideramos incapaz de aprender? Depoimentos de professoras e diretoras vão sendo apresentados e as crianças vão recebendo os rótulos: "dificuldade de aprendizagem", "dislexia", "distúrbios", "disfunções neurológicas", "desnutrição", "disfunção cerebral". Os rótulos variam, mas a conseqüência é a mesma – a imputação à vítima da responsabilidade do fracasso escolar. Não se trata também de deslocar a culpa das crianças para as professoras. O que acontece na escola vem de longe e faz parte da luta que se trava em todos os espaços da sociedade. Como poderia ver diferente a professora que foi ensinada a ver as crianças com lentes deformadas da patologização?

 

De fracassados a hiperativos

Caracterizada por quadros de agitação, impulsividade e dificuldade de concentração, a hiperatividade, nos últimos dez anos, ganhou maior atenção de médicos, psicólogos e pedagogos – principalmente porque se passou a creditar ao distúrbio boa parte dos casos de mal desempenho escolar. A hiperatividade infantil costuma aparecer entre os 3 a 5 anos, sendo mais comum em meninos.

O tratamento do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade ainda é acentuadamente medicamentoso e as estatísticas mostram que o consumo mais que dobrou nos últimos dois anos. A Ritalina, nome comercial do metilfenidato, foi lançada em 1956. O efeito paradoxal do remédio é que, embora seja um estimulante, em doses muito precisas ele acaba por acalmar seus usuários, ao torná-los mais concentrados – daí seu uso em crianças hiperativas. O mecanismo de ação da Ritalina ainda não foi completamente desvendado. Só neste ano, estima-se que será vendido no Brasil 1 milhão de caixas de Ritalina, fabricado pelo laboratório Novartis. A principal razão desse aumento é o fato de que o diagnóstico do distúrbio se tornou mais comum e indiscriminado. Antes considerado um mal predominantemente infantil, a hiperatividade passou a ser detectada também em muitos adultos. Além disso, há quem use o medicamento simplesmente para se manter desperto durante longas jornadas de trabalho ou estudo. E, como acontece com boa parte dos remédios da família das anfetaminas, a Ritalina entrou na ilegalidade. Jovens em busca de euforia química e meninas ávidas por emagrecer estão usando remédio sem dispor de receita médica.

Os pais acusam as escolas de rotular suas crianças de hiperativas indiscriminadamente, antes mesmo de obter um diagnóstico médico, mas há relatos de que também alguns pais impacientes andam utilizando o diagnóstico de hiperatividade como desculpa para entupir seus filhos de remédio e mantê-los, dessa forma "sossegados", daí que o medicamento tenha sido batizado por "droga da obediência". Isso os desculpabiliza por não estarem dando conta de impor limites aos filhos por exemplo em relação à hora de dormir ou de desligar seus computadores e jogos eletrônicos, o que certamente os deixam hiperexcitados. A criança sintomatiza assim a falta de regulação da vida pós-moderna, pois os adultos, medicalizados eles mesmos não querem saber da perda de sua função.

Utilizado em larga escala nos Estados Unidos, o remédio Ritalina experimenta um aumento de consumo surpreendente no Brasil, conquistando de maneira silenciosa adeptos também nas universidades. Pressionados por provas, exames e trabalhos de faculdade, estudantes estão trocando o tradicional café com cigarro pelo remédio. A Ritalina, nesses casos, teria o objetivo de melhorar a concentração e diminuir o cansaço. Seria uma espécie de anabolizante para o cérebro, que conseguiria assim acumular mais informação em menos tempo.

Há uma diferença que precisa ser levada em conta: medicar pode ser necessário desde que caso a caso. Já a medicalização é o processo pelo qual o modo de vida dos homens é apropriado pela medicina e que interfere na construção de conceitos, regras de higiene, normas de moral e costumes prescritos – sexuais, alimentares, de habitação – e de comportamentos sociais. Este processo está intimamente articulado à idéia de que não se pode separar o saber – produzido científicamente em uma estrututa social – de suas propostas de intervenção na sociedade, de suas proposições políticas implícitas. A medicalização tem, como objetivo, a intervenção política no corpo social. O fenômeno da medicalização social surge e se desenvolve, históricamente, no contexto das sociedades disciplinares, tal como foi analisado por Foucault (1998).

As escolas, por sua vez, alegam que seus professores não estão preparados para identificar a hiperatividade, muitas vezes confundindo o diagnóstico da falta de limites com a hiperatividade.

 

Possíveis considerações finais

O elevado número de fracasso escolar ainda quando se adota sistemas escolares como os ciclados em lugar dos seriados, ressalta que o elemento segregativo manifesto nas práticas educativas se tornaram pouco a pouco permeáveis ao discurso da ciência. Valendo-se de categorias oriundas do campo da medicina e da psicologia, tais práticas estimulam o diagnóstico dos distúrbios de aprendizagem em larga escala, o que se configura como um fator crescente da patologização e da cronificação desses mesmos distúrbios.

O poder de significação conferido pela nomeação do sintoma médico na perspectiva da medicina clínica e o poder de alienação proporcionado pelo signo da anátomo-patologia produzem uma aderência descomunal do sujeito e dos seus responsáveis a essa nomeação de doente, o que muitas vezes sela irremediavelmente um destino. O fruto do limite do discurso médico, que é o encaminhamento para o serviço de saúde mental, muitas vezes tem essa conotação de destino, uma vez que insiste e pretende tamponar esse furo com a nomeação que inscreve no encaminhamento.

Se essa operação discursiva se institui no momento singular de apreensão do código da leitura e escrita, o que pode ocorrer é que uma palavra, mesmo que não seja a última, advinda do médico, o detentor da verdade primeira da ciência, remete o paciente a um emblema identificatório de onde poderá se recolher. Se isto ocorre, uma série de tratamentos serão prescritos à criança. De acordo com a generalização das ofertas terapêuticas a essas respostas diagnosticadas como patologias do fracasso, o que cotidianamente é colocado à disposição das crianças e suas famílias é a resposta que exprime as exigências da ciência: tratamento medicamentoso, reeducação psicopedagógica, terapia psicológica e fonoaudiológica. O inesperado entretanto, é que o propósito da adaptação escolar encontra como resposta seu inverso: a perpetuação da lógica da exclusão, de acordo com Santiago (2005).

As sociedades modernas dos séculos XIX e XX, sociedades industrial e pós industrial, vão criando instituições corretivas, cujo código de funcionamento, suas normas, sua organização, seus fins explícitos, sua arquitetura, são reveladoras não só da realidade que se pretende assistir, senão do sistema de crenças e do sistema de poder da sociedade que as cria e de sua ideologia.

À maneira de Freud trago à tona a existência de três impossíveis: educar, governar e analisar, impossíveis que mais tarde Lacan vai retomar em termos de uma lógica da impossibilidade. Para Freud estes impossíveis têm a ver com a impossibilidade de cumprir com um ideal, com a falha na transmissão dos ideais, com a desilusão sintomática que nunca deixa de produzir-se em qualquer desses campos: educação, governo, psicanálise.

Entre uma instituição tutelar que gera um sujeito passivo, necessitado, dependente e vazio, tentemos permitir a emergência de um sujeito de palavras, que possa enunciar sobre seus projetos, seus desejos, seu destino, e encarregar-se de si mesmo, consentindo com um certo fracasso. Essa invenção só será possível se pensarmos juntos: adultos, crianças, jovens, profissionais e trabalhadores, que de uma forma ou de outra estão envolvidos com as crianças e os adolescentes. Como possibilitar a emergência de um discurso próprio desse sujeito?

 

Bibliografia

AKERMAN, Jacques. De objeto a sujeito: a criança entre o desvio e a diferença. Revista de Psiquiatria e psicanálise com crianças e adolescentes. FHEMIG. Belo Horizonte. Jan/jun. 1995.

CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1998.

COLLARES, Cecília A. L. e MOYSÉS, M. Aparecida A. Preconceitos no cotidiano escolar: Ensino e Medicalização. São Paulo, Cortez, 1996.

FOUCAULT, Michael. Vigiar e punir. Petrópolis. Vozes.1998

FREUD, S. Análise terminável e interminável. (1937). Edição Standart Brasileira das Obras completas de S. Freud. Rio de janeiro, Imago, 1977.

MARQUES, Vera Regina Beltão. Medicalização da raça: Médicos, Educadores e Discurso Eugênico. UNICAMP, Campinas. 2001.

OLIVEIRA, C. Lucia Montechi Valladares de. Os primeiros tempos da psicanálise no Brasil e as teses pansexualistas na educação. Scielo. Estudos em Teoria Psicanalítica. Ágora (Rio J.) vol.5. Rio de Janeiro. 2002.

SANTIAGO, Ana Lydia Bezerra. A inibição intelectual na Psicanálise. Rio de janeiro. Jorge Zahar editor. 2005.