2A adoção tardia no Brasil: desafios e perspectivas para o cuidado com crianças e adolescentesA banalização da mentira como uma das perversões da sociedade contemporânea e sua internalização como destrutividade psíquica: o esfacelamento do processo de individuação na adolescência author indexsubject indexsearch form
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An. 1 Simp. Internacional do Adolescente May. 2005

 

Compreendendo o significado da privação de liberdade para adolescentes institucionalizados

 

 

Fabiana Rodrigues Souza Campos; Maria Paula Panúncio-Pinto

Universidade de Uberaba – UNIUBE

 

 

I. Introdução

O número adolescentes envolvidos com a prática de atos infracionais têm crescido de forma assustadora e chamado cada vez mais atenção. Os chamados "adolescentes em conflito com a lei", no contexto do tráfico e consumo de drogas, assassinatos, roubos, entre outros delitos têm invadido a mídia e gerado muitas controvérsias em relação a legislação vigente. Alguns setores da sociedade defendem a redução da idade para imputabilidade penal como uma das formas de resolver o problema, já que o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (1990), no art. 104 garante que, "são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos".

A questão da inimputabilidade penal tem sido cada vez mais discutida. Há quem diga que responsabilizando-os por seus atos a partir dos dezesseis anos, a criminalidade diminuirá. Porém, sabe-se que isto não resolveria o problema, uma vez que a sociedade brasileira não consegue reabilitar e reinserir ( o sistema carcerário brasileiro não está apto a receber e atender)nem mesmo os maiores de dezoito anos, tanto menos os adolescentes (sujeitos em condição peculiar de " pessoa em desenvolvimento".

Barreira (1989) apud Chaves (1997) reforça isto, quando diz que os menores1 infratores não têm sido protegidos pela inimputabilidade, porque a falta de recursos materiais e humanos para o correto atendimento a esta problemática, conforme costumeiras alegações das autoridades governamentais, leva ao cumprimento de verdadeiras penas privativas de liberdade em presídios juvenis, a que se reduzem quase todas as FEBEMs, quando não chegam mesmo a ser encarcerados em penitenciárias de adultos.

Chaves (1997), ressalta ainda que o ECA não banalizou a impunidade, pelo contrário, estipulou critérios rígidos para os adolescentes e determinou medidas judiciais interessantes para a recuperação dos infratores.

Quanto às crianças e adolescentes brasileiras, Volpi (2002) relata que representam a parcela mais exposta às violações de direitos pela família, pelo Estado e pela sociedade – exatamente ao contrário do que define a Constituição Federal e suas leis complementares. Os maus tratos, o abuso e a exploração sexual, a exploração do trabalho infantil; as adoções irregulares, o tráfico internacional e os desaparecimentos; a fome; o extermínio, a tortura e as prisões arbitrárias infelizmente ainda compõem o cenário por onde desfilam nossas crianças e adolescentes.

Em se tratando da mudança de Legislação, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) propôs substituir o termo "menor" por "criança e adolescente"; sendo considerado criança a pessoa até 12 anos incompletos, e adolescente, pessoa entre 12 e 18 anos incompletos.

Vale ressaltar que esta legislação garantiu ao adolescente autor de ato infracional a (re) educação, através da aplicação das medidas sócio-educativas. Educação esta que difere da punição, uma vez que educar se baseia em oferecer um lugar propício para a assimilação de conhecimentos e punir constitui apenas o ato de aprisionar, excluir da sociedade. Cabem aqui algumas considerações acerca do novo paradigma trazida pelo ECA no que tange ao Ato Infracional e os adolescentes em conflito com a lei.

O ECA foi sancionado pela Lei nº 8.069, e teve origem no Art. 227 da Constituição Federal de 1988, segundo o qual:

"é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária".

Silva (1997) aponta que o ECA trouxe grandes avanços em relação ao antigo "Código de Menores", porque ele abriga sob sua tutela não mais a criança em situação social de risco, mas toda "pessoa em desenvolvimento", até os 18 anos de idade. Para este autor, em termos de mudança de cultura e de mentalidade, a criação do ECA significou a transferência da tutela da criança e do adolescente para a sociedade civil, através dos Conselhos Tutelares. Subsiste ainda a parcela de poder e de responsabilidade do Poder Judiciário, através da criação dos juízos da infância e da juventude e da subordinação dos conselhos tutelares a eles. Além disso, Panúncio-Pinto (2002) acrescenta que para o paradigma do Código de Menores, o risco encontrava-se na criança e no adolescente, e no Estatuto o risco está no contexto sócio-econômico e cultural.

Quanto aos adolescentes autores de atos infracionais em cumprimento de medida de internação (período nunca maior que três anos nos casos mais graves) , devem ser socializados, reconhecendo-se seu direito não só à educação, como à profissionalização (Chaves,1997).

O ECA, este define "Ato Infracional" como a conduta prevista em lei como contravenção ou crime, sendo que a responsabilidade pela conduta começa aos 12 anos (Volpi, 1999).

Dentre as diretrizes garantidas pelo ECA aos adolescentes autores de atos infracionais, estão:

a apuração do ato;

a aplicação das medidas sócio-educativas:

a) Advertência;

b) Obrigação de reparar o dano;

c) Prestação de serviços à comunidade;

d) Liberdade assistida;

e) Semiliberdade;

f) Internação.

Diante dessa realidade e pensando que a institucionalização de um adolescente que cometeu um ato infracional não altera sua história de vida passada e nem garante a resolução dos conflitos que existem no ambiente fora da instituição, no contexto para onde o adolescente vai retornar, após o cumprimento da medida de privação de liberdade ou internação, é impossível não pensarmos na reincidência de delitos, praticados por adolescentes que já cumpriram alguma medida sócio-educativa, seja ela em regime aberto ou fechado, como um sintoma da ineficácia das instituições destinadas à aplicação das medidas sócio-educativas cabíveis aos adolescentes em conflito com a lei.

Ao contrário do que o ECA prevê, são várias as instituições brasileiras destinadas à reeducação do adolescente autor de ato infracional, que abrigam adolescentes em ambientes inadequados e insalubres. Geralmente esta população é internada em locais semelhantes aos destinados aos adultos que cometeram crimes: instituições super lotadas, celas apertadas, sem aplicação das medidas sócio-educativas previstas pelo ECA.

Sobre a questão dos direitos previstos em lei para os adolescentes autores de ato infracional, vale ressaltar a opinião de Foucault (1993), que refere que a prisão não pode deixar de fabricar delinqüentes. Fabrica-os pelo tipo de existência que faz os detentos levarem: que fiquem isolados nas celas, ou que lhes seja imposto um trabalho inútil, para o qual não encontrarão utilidade. Segundo ele, a prisão fabrica também delinqüentes impondo aos detentos limitações violentas; ela se destina a aplicar as leis, e a ensinar o respeito por elas; ora, todo o seu funcionamento se desenrola no sentido de abuso de poder.

Diante de tal realidade, como seria possível pensar uma intervenção para adolescentes institucionalizados, que conseguisse ser eficiente, buscando soluções para minimizar os problemas causados pela privação de liberdade?

Levando em consideração o problema das instituições fechadas, popusemo-nos a pensar uma intervenção Terapêutica Ocupacional para adolescentes infratores institucionalizados que possa minimizar os efeitos negativos da privação de liberdade em instituição de reeducação.

Um estudo prévio realizado em 20032, abordou 20 adolescentes institucionalizados no município de Uberaba, na instituição CARESAMI, através de um estudo documental que permitiu ampliar a compreensão sobre possíveis causas da situação de risco definida como "Conflito com a Lei". O estudo dos prontuários a partir da análise dos eventos de vida permitiu a identificação de situações comuns nas histórias dos internos e mostrou que grande parte das infrações cometidas pelos adolescentes institucionalizados está relacionada à pobreza, à violência, a problemas no relacionamento familiar, ou seja: é possível estabelecer uma relação entre os eventos de vida, a história de vida desses adolescentes em conflito com a lei e sua "opção" pela marginalidade.

Pensando nas considerações feitas sobre a institucionalização, definimos como principal objetivo deste trabalho a compreensão do significado da privação de liberdade para adolescentes institucionalizados e partindo dessa compreensão pensar possibilidades de intervir nessa realidade. Ou seja: pensar como a privação de liberdade pode afetar a resposta dos adolescentes às intervenções dentro da instituição para, a partir dessa compreensão, pensar estratégias para minimizar esses efeitos e otimizar as possibilidades de intervenções bem sucedidas da Terapia Ocupacional nesse contexto.

Para tanto, colhemos depoimento de dois adolescentes institucionalizados no Centro de Atendimento e Reeducação do Menor Infrator-CARESAMI, no município de Uberaba, objetivando coletar os dados condizentes com esta pesquisa, e a partir dos resultados obtidos, buscar referenciais que possam basear a discussão do tema em questão, e finalmente propor intervenção terapêutica ocupacional com adolescentes em conflito com a lei institucionalizados.

 

II. Desenvolvimento

2.1 Questões teóricas relevantes

Terapia Ocupacional

Podemos definir a terapia ocupacional (TO) como profissão da área da saúde, que diante da ampliação do conceito de saúde tem estendido sua atuação para a educação e outras práticas sociais, que se utiliza de atividades, sejam elas de lazer, trabalho, lúdicas, de vida diária e vida prática, para promoção da saúde e reabilitação de indivíduos ou grupos que necessitem de cuidados especiais, seja no âmbito físico, psicológico ou social, buscando uma (re) inserção social de forma integral e independente.

Assim como diversas outras da área da saúde, esta profissão divide-se em diferentes áreas de atuação, de acordo com demandas existentes. Desta forma, a área de atuação da população em questão, crianças e adolescentes em situação de risco e suas famílias, são alvo da Terapia Ocupacional Social, lembrando-se sempre que não existe uma divisão, isto é apenas uma questão didática, já que esta profissão tem como característica fundamental tratar o indivíduo como ser integral.

A população alvo da Terapia Ocupacional Social, é definida por Escorel (1999) apud Galheigo (2003) como aquelas pessoas ou grupos cujas maiores necessidades configuram-se com base em sua condição de excluída ao acesso aos bens sociais e cuja problemática se manifesta pelo agravamento das condições de vida a que está submetida. Tal problemática pode ser identificada com a noção de pobreza ou também entendida como uma situação de vulnerabilidade, de "apartação", na medida em que o acesso aos direitos de cidadania, mesmo que constitucionais, é diferenciadamente atribuído, traduzindo-se numa experiência de não cidadania, de não pertencimento.

Adversidade e desenvolvimento

Pensando no desenvolvimento humano, este é caracterizado por Panúncio-Pinto (2003), a partir de Baltes (1983, 1987) como sendo um processo multidirecional que ocorre durante todo o curso de vida, contextualizado por fatores biológicos, psicológicos, sócio-culturais e históricos, que determinam as transformações, num processo de equilibração constante entre ganhos e perdas.

Quanto ao desenvolvimento humano, pesquisas afirmam que este está diretamente associado às vivências individuais de determinados contextos. O ambiente em que a criança se desenvolve é interiorizado, e se espelha na sua personalidade. Eventos estressantes vividos na infância acabam se refletindo na adolescência e fase adulta, gerando vários tipos de desordens como problemas emocionais, psicológicos, distúrbios de conduta, entre outros fatores.

Sawrey e Telford (1974) nos dizem que certos comportamentos considerados de natureza agressiva e hostil pelo público em geral podem, na realidade, ser o resultado de aprendizagem social e não necessariamente dotados de carga emocional. O comportamento agressivo que excede os limites socialmente aprovados pode ser a manifestação de padrões de respostas adquiridas numa família, comunidade ou subcultura que encoraja e recompensa tal comportamento.

Além disso, devemos lembrar também, que em certos contextos, a violência e distúrbios de conduta são banalizados, fazendo introjetar na criança tais comportamentos, que serão por elas considerados normais, e por vezes necessários para serem aceitos ou como meio de se conseguir algo, fazendo valer o ditado: "os fins justificam os meios".

Quanto a isso, Sawrey e Telford (1974), nos dizem que desde que a agressividade se desenvolva de acordo com as "regras do jogo", é socialmente aprovada. Grande parte do comportamento agressivo é o resultado de práticas sociais que reforçam tal atividade; esse comportamento não é hostil em sua motivação nem defensivo em seu resultado final.

Compas e Phares (1991) citam dados de pesquisas que apontam para a possibilidade de existência de associação entre eventos estressantes e desordens psicológicas Os autores discutem, sintetizando os resultados de alguns anos de pesquisas, que eventos estressantes e mal ajustamento podem ser encontrados nas histórias de vida de vários adolescentes como um ciclo, onde cada qual contribui para a etiologia e manutenção do outro. Eventos estressantes ou potencialmente negativos e geradores de estresse vivenciados durante a infância e adolescência podem acionar um processo no qual estress e problemas emocionais/comportamentais alimentam-se mutuamente, num ciclo.

A ocorrência de comportamento anti-social e de distúrbios de conduta na infância é descrita como preditor de delinqüência, alcoolismo e fracasso escolar (Kazdin,1987; Bank e Patterson,1992), apud Panúncio (1995).

Em estudo prévio em uma instituição que atende crianças e adolescentes infratores institucionalizados no município de Uberaba, Campos (2003), constatou que a maioria dos adolescentes internados tinham algum evento de vida considerado estressante, que estavam presentes em 61,1% dos prontuários pesquisados, dentre eles, destacavam-se: familiares usuários de drogas (55,5%), filhos de pais separados (11,11%), o pai estava desempregado (11,11%), foram abandonados pela mãe ao nascer (5,5%), são filhos de mães super-protetoras (5,5%), e grande parte deles já dormiram na rua por algum motivo (44,5%).

Segundo todos os autores citados, os eventos estressantes podem estar ligados ao aparecimento de distúrbios de conduta, fazendo-nos refletir que este pode, por muitas vezes, ser conseqüência do contexto social, cultural e histórico.

Interessante perceber que os chamados "distúrbios de conduta" podem levar às situações compreendidas como conflito com a lei e culminar na prática de atos infracionais considerados graves, levando à internação.

2.2 Metodologia

Este estudo refere-se ao desafio de se pensar possibilidades de intervenção junto a adolescentes institucionalizados por cumprimento de medida judicial referente à prática de ato infracional. O universo de realização desta pesquisa é o Centro de Atendimento e Reeducação do Menor Infrator (CARESAMI), instituição governamental que executa a política de proteção especial de atendimento em regime fechado, aos adolescentes em conflito com a lei. A instituição recebe adolescentes do sexo masculino, de 12 a 18 anos incompletos, que cumprem medida sócio-educativa de privação de liberdade (internação) por terem cometido infrações graves. Tais infrações podem ser: assalto, furto, latrocínio, homicídio, estupro, descumprimento de medida, reincidência de infrações, envolvimento com tráfico. Possui 20 vagas (podendo abrigar em condições condizentes ao que ao ECA prevê, até 30 adolescentes).Recebe apenas adolescentes da região do Triângulo Mineiro.

Foram abordados (sujeitos) dois adolescentes institucionalizados no CARESAMI. O critério de seleção baseou-se na idade (indivíduos mais velhos) e reincidência, os quais foram indicados pelo próprio diretor da instituição.

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, que pretende ampliar a compreensão sobre determinada situação a partir de uma abordagem limitada do universo pesquisado (atualmente o universo total do CARESAMI é de 22 internos), utilizando-se de instrumentos voltados a interpretação da realidade.

O sujeitos foram abordados por entrevista semi estruturada, a partir de uma sessão gravada, com a participação da pesquisadora. A forma utilizada foi de um "roteiro para guiar o depoimento" dos sujeitos.

Além da entrevista com os adolescentes, foi realizado um estudo documental em seus prontuários na instituição para o levantamento dos dados sociológicos gerais.

2.3 Resultados e Discussão

Inicialmente apresentaremos o resultado do estudo documental dos prontuários dos sujeitos e a respectiva discussão acerca dos mesmos. Em seguida serão discutidos os resultados do procedimento de entrevista. Chamaremos de Sujeito 1 (S1) M.M.C. – 18 anos, cumprindo medida sócio-educativa de privação de liberdade, por descumprimento de medida (foi aplicada a medida de "prestação de serviços à comunidade", devido aos processos por lesão corporal, abuso de drogas, desacato a autoridade), internado há dois meses; e de Sujeito 2 (S2) R.A.C.A. - 17 anos, cumprindo medida sócio educativa de privação de liberdade por homicídio; ambos reincidentes.

Informações Gerais de Acordo com Estudo Documental – Prontuários

Sujeito 1:

Nas informações obtidas do prontuário, vale ressaltar que o adolescente vivia conflito familiar grave(já foi "preso" por agredir fisicamente o pai) e fazia uso de substâncias psicoativas: maconha, álcool, crack e mesclado (cocaína e maconha).

Sujeito 2:

Dos dados obtidos a respeito deste adolescente, é importante discutir que o mesmo parou de estudar na oitava série do ensino fundamental, e exercia a atividade de comerciante (trabalhando em lanchonete própria com a mãe) na época da internação. De acordo com dados do prontuário, o relacionamento familiar é tranqüilo, e não é usuário de drogas.

Quanto à história pregressa deste adolescente, o pai morreu em acidente por afogamento, e o adolescente assistiu. Mãe faz mais papel de amiga que figura de autoridade; na escola o adolescente apresentava dificuldade de relacionamento com professores e colegas.

Percebendo certa discrepância no discurso de S2 (que relata ser uma pessoa calma e nervosa ao mesmo tempo), nos remetemos à literatura para buscar dados que nos ajudassem a compreender melhor essa contradição, com suas experiências vividas durante a infância.

Desta forma, encontramos um distúrbio interessante na literatura, que é definido por Levisky (1997) como Transtorno de Estresse Pós-Traumático – TEPT (em crianças e adolescentes). O TEPT se caracteriza por distúrbio do sono, irritabilidade, acessos de cólera, momentos de manifestações impulsivas violentas e imprevisíveis, hipervigilância com sobressaltos, dificuldades de atenção-concentração e de memorização, palpitação e suores. Trata-se de um conjunto sintomático que se desenvolve com uma latência variável após um evento fora do comum, ultrapassando o domínio das experiências vitais habituais, geralmente vividas com um sentimento intenso de terror. Ele salienta ainda a questão da vulnerabilidade pessoal frente ao(s) evento(s) traumático(s) que favorece(m) o estabelecimento do quadro: "A síndrome do estresse pós traumático se mostra mais freqüente e grave naquelas crianças cuja vida esteve mais intensamente em perigo, exposta diretamente e de maneira prolongada ao traumatismo".

Para o autor as causas desencadeadoras podem ser as mais diversas: acidentes, atos de violência física, raptos, testemunhos de suicídios ou de assassinatos, vítimas de ataques sexuais ou de guerras.

Pensando na perda do pai, considerando as circunstâncias em que ocorreram os fatos, podemos considerar tal evento como adverso e potencialmente desencadeador de conseqüências negativas ao desenvolvimento de S2. Analisando as informações do prontuário deste jovem, é possível perceber que existe algo em sua história que merece ser investigado com maior cautela, contudo, devemos deixar claro que o diagnóstico deve ser feito por um profissional capacitado.

Depoimentos

Pelas entrevistas, o que foi possível notar, é que as percepções dos adolescentes com relação à privação de liberdade não diferem muito, a despeito das diferenças quanto à gravidade dos delitos que os levaram à institucionalização e das diferenças em suas histórias de vida e posturas diante da instituição. Para S 1, a privação de liberdade é o maior incômodo vivido por ele na instituição. Refere várias vezes que é válida, que ele deve aproveitar a oportunidade de se recuperar, porém a perda do contato com o mundo extra muros o incomoda e dificulta sua integração á rotina institucional. Apesar de suas ressalvas e evidente desconforto pela perda do direito de "ir e vir", S1 apresenta-se relativamente aberto à intervenções, interessa-se pelas atividades oferecidas na instituição, refere ser necessária a participação do indivíduo e sua vontade de mudança, e pelas respostas dele (S1), pensamos, sem grandes dificuldades, uma intervenção terapêutica que minimize os efeitos negativos dessa institucionalização.

S2, mostra-se igualmente incomodado com a privação de liberdade. Mas sua postura durante o depoimento, e o conteúdo de suas falas, chamaram-nos atenção: para ele estar ali não tem nenhum sentido, e "a privação de liberdade só agrava o quadro, pois os tornam ainda mais rebeldes" (sic).

Ainda com relação ao sujeito 2, devemos destacar alguns aspectos relevantes de seu discurso. Este adolescente trouxe, por diversas vezes, questões relacionadas a liberdade que tinha anteriormente à institucionalização, em que fazia tudo o que queria. Para ele, depois de ficar tanto tempo fazendo só as atividades que gosta (todas relacionadas á criminalidade: roubar, assaltar, consumir e vender drogas) ficar preso recebendo ordens é o pior castigo que poderia receber pelo crime que cometeu. E aliado a isto, está a questão relacionada ao homicídio que cometeu,, tratado por ele como natural, não estando presente em eu discurso qualquer indício de arrependimento ou de reconhecimento de sua ação homicida como um erro ou engano. Quando questionado sobre o futuro, falou em mudança de atitude (trabalhar, parar com as drogas e com os assaltos), em função do nascimento do filho. Em seguida, afirmou que o filho era o motivo de pensar em mudança, mas era difícil pois para ele a vida do crime vale a pena, porque economicamente falando, seu retorno é muito maior, o que ele ganha em um mês de trabalho honesto, ele ganha em dois, três dias roubando (sic).

Chamou-nos a atenção o conteúdo das falas de S2, e o fato de que qualquer tipo de abordagem ou intervenção parecia não chegar até ele. Diante de S2, a idéia de reeducação ou educação para cidadania não parecia fazer sentido.

Fomos buscar na saúde mental algumas explicações.

O Transtorno de Personalidade Anti-Social - TPAS é caracterizado por atos anti-sociais e criminosos contínuos, mas não é sinônimo de criminalidade. Trata-se de uma incapacidade de conformar-se às normas sociais que envolvem muitos aspectos do desenvolvimento adolescente e adulto do paciente, de acordo com Kaplan, Sadock e Grebb (2003). Segundo estes autores, os pacientes com transtorno da personalidade anti-social freqüentemente apresentam um exterior normal e até mesmo agradável e cativante, contudo suas histórias revelam muitas áreas de funcionamento vital desordenado, com mentiras, faltas à escola, fugas de casa, furtos, brigas, abuso de drogas e atividades ilegais, que conforme relatos do paciente, tiveram início na infância.

Os autores indicam critérios para o diagnóstico do TPAS3, diagnóstico que deve ser feito com cuidado, jamais conferido sem avaliação cuidadosa, realizada por equipe de saúde mental. Contudo, o depoimento de S2 aponta para discrepâncias importantes entre seu discurso e suas ações.

Isto nos remeteu à questão das grandes diferenças que podem existir no universo de uma mesma instituição, o que nos demonstra a necessidade de uma intervenção mais individualizada, para atender as diversas demandas, pois, neste caso, parece evidente que a intervenção grupal, centrada apenas em procedimentos de educação, não atingiria o objetivo proposto.

Parece-nos interessante considerar que mesmo tendo em comum questões referentes a um contexto adverso, de pobreza e privação aos direitos, tão freqüente nesse universo das instituições para adolescentes em conflito com a lei, não é possível pensar em reeducação, reabilitação ou reinserção social, abordando a situação apenas do ponto de vista do contexto. Existem as variáveis do sujeito, que devem ser consideradas.

2.4 A proposta de intervenção da Terapia Ocupacional: vencendo os obstáculos

De acordo com a coleta de dados, o que foi possível perceber, é que segundo os adolescentes entrevistados, essa abordagem institucional não-individualizada, centrada na (re)educação não é um método efetivo de recuperar indivíduos em conflito com a lei. Isso fez surgir um novo impasse: qual seria, então, a forma de reintegrar estes indivíduos?

Os dados coletados nos levantaram uma questão nova: que diferentes necessidades e realidades individuais podem surgir dentro de uma instituição, fazendo emergir uma nova demanda, de atenção mais individualizada: existe sim uma situação central comum que é o "conflito com a lei" ou a "prática de ato infracional", e a abordagem de reeducação é o que a lei prevê. Isso inclui a oferta de políticas públicas que eventualmente falharam no período anterior à institucionalização, mas não deve descartar uma abordagem integral em saúde, considerando-se outras situações que parecem comuns, conforme revelou o estudo preliminar4 (pobreza e privações, convivência com pais com alterações mentais ou dependência química, violência doméstica, abuso de drogas, perda de um dos pais por abandono ou morte, etc), mas certamente geram efeitos diversos nesses sujeitos e por isso merecem atenção individualizada, de acordo com as histórias de vida e com a situação atual dos mesmos.

Além disso, o que pudemos também perceber através da coleta de dados, é a necessidade de se propor atividades extra-muros, pois esta é uma questão trazida pelos entrevistados: o incômodo gerado pelos muros institucionais. A oferta de atividades que reflitam a integração com recursos da comunidade e a garantia do direito desses adolescentes ao convívio comunitário é parte do que o ECA prevê, mesmo para adolescentes institucionalizados, mas nem sempre é possível devido ao estigma que esses adolescentes possuem por terem cometido ato infracional. Acreditamos que uma intervenção que se proponha à realização de atividades fora do contexto institucional possa contribuir para reduzir o mal que o aspecto de reclusão causa ao jovem, contribuindo também para não excluir totalmente este jovem da sociedade, pois apesar de continuar institucionalizado, ele estará em contato com o mundo lá fora, e não perderá a relação com o mundo exterior.

Abordagens individuais ou grupais, aliadas à utilização do instrumental específico da Terapia Ocupacional – a atividade como recurso terapêutico – são escolhas que devem contribuir para amenizar a institucionalização e auxiliar ao adolescente a construir a ponte para o mundo que o espera fora dos muros. Como o trabalho não se dá apenas através do "verbal", é possível pensar que o fazer permite ampliar as chances de ressignificar as situações vividas e de manter a motivação, considerando a questão das diferenças individuais entre os adolescentes e a forma como percebem e recebem as medidas sócio-educativas (as várias demandas institucionais).

Desta forma, a contribuição da Terapia Ocupacional sempre parte do olhar integral sobre os sujeitos da intervenção – os adolescentes - e do pressuposto de que a transformação de situações indesejadas, a construção de um projeto de vida que leve a vencer adversidades e promover a resiliência para esses adolescentes devem necessariamente passar pelo "fazer". As estratégias passam por jogos, dinâmicas e oficinas (sucata, música, desenho, teatro). E devem, é claro, considerar os recursos disponíveis na comunidade que possam auxiliar na construção do projeto de vida, sobretudo questões ligadas à realidade do mercado de trabalho (tecnologia, informática, saúde, educação).

Além disso, a minimização dos efeitos da institucionalização deve passar pela busca na comunidade de recursos que possam engajar os adolescentes fora do contexto fechado. Isto pode dar-se através da realização de cursos profissionalizantes em escolas especializadas, cursos de arte e expressão e atividades de lazer. A questão da profissionalização é central e deve considerar possibilidades concretas voltadas para a realidade do mercado de trabalho.E é claro que, considerando-se a complexidade da situação, a atuação do Terapeuta Ocupacional só pode ganhar e ampliar seu sentido quando realizada em equipe interdisciplinar.

 

III. Considerações Finais

Quando nos dispusemos a compreender a percepção do adolescente institucionalizado em relação à privação de liberdade, não esperávamos encontrar as respostas que obtivemos no trabalho. A questão dos adolescentes desacreditarem totalmente no modelo de reeducação atualmente proposto foi para nós uma grande surpresa, principalmente em se tratando de estarem em uma instituição modelo5, que aplica as medidas garantidas por lei ao adolescente autor de atos infracionais.

O tema adolescente em conflito com a lei ainda é motivo de diversas controvérsias. A comunidade leiga ainda o encara com preconceitos e desconhece o que de verdade se esconde atrás deste universo, e o que muitas pessoas não percebem, é que, estes são apenas o fruto do nosso sistema capitalista, que baseado num modelo de sociedade onde a compulsão do prazer imediato através do consumo, e a ideologia do dinheiro rompem com o ideal de amor, e a esfera afetiva desloca-se para a esfera lucrativa.

A violência juvenil deve ser vista como sintoma de um mundo que lhe nega cuidado, assistência e seus direitos fundamentais. O jovem que age com violência, no fundo, ele está chamando atenção para que a sociedade reconheça sua dívida para com sua pessoa. Nossa reflexão deve ser mais ampla para que não cometamos injustiça com nossos jovens.

Pensar uma intervenção para minimizar os efeitos da privação de liberdade, foi, para nós, um grande desafio. Ao nos depararmos com o novo, percebemos que este universo é ainda muito desconhecido e que apesar dos diversos estudos acerca desta população, ainda há muito a fazer para melhor atende-la.

O estudo também nos fez refletir a respeito da eficácia das leis relacionadas ao adolescente infrator. Até onde elas são realmente eficazes? Nem sempre o que nos parece de longe, é, de perto, realmente verdadeiro.

Aceitamos e reconhecemos o que há de social e histórico, os determinantes comuns desta situação de risco peculiar, contudo, devemos deixar claro que qualquer abordagem institucional que não se proponha ao acompanhamento individualizado aos casos e suas peculiaridades, pode ser pouco efetiva.

Além disso, devemos considerar que, para melhorar esta realidade, deve-se pensar em mudanças políticas consideráveis. Essas modificações devem, sem dúvida alguma, observar a realidade atual e sua evolução, garantindo proteção à comunidade e ao mesmo tempo dando ao infrator o direito de plena recuperação de sua dignidade, reintegrando-o numa sociedade que desejamos melhor e mais justa.

Assim sendo, não nos parece correto afirmar que o uso da atividade humana como estratégia para intervenção com quaisquer populações seja uma prerrogativa exclusiva da Terapia Ocupacional, embora a experiência com populações em risco tem demonstrado que o olhar da Terapia Ocupacional – sobretudo este que deriva da concepção materialista de homem e mundo – tem contribuições únicas a oferecer numa abordagem tão difícil como esta, com adolescentes em situação de risco.

 

IV. Referências

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VOLPI, Mário. Sem liberdade e sem direitos: a privação de liberdade na percepção dos adolescentes em conflito com a lei. São Paulo; Cortez, 2001.

VOLPI, Mário (ORG). O adolescente e o ato infracional. 4ª edição. São Paulo: Cortez, 2002

 

 

1 As palavras em itálico que aparecerão ao longo deste texto representam nosso incômodo pelo estigma que encerram, mesmo quando utilizadas pelos autores estudados.
2 Campos, Fabiana R. S. Adolescentes em Conflito com a Lei: Entendendo a "opção" pela marginalidade. Trabalho de Conclusão de Estágio. Uberaba: UNIUBE, 2003.
3 padrão invasivo de desrespeito e violação dos direitos dos outros, ocorrendo desde os 15 anos, como indicado por três (ou mais) dos seguintes critérios: fracasso em conformar-se às normas sociais com relação a comportamentos legais, como indicado pela execução repetida de atos que constituem motivo para a detenção; Propenso a enganar, como indicado por mentir repetidamente, usar nomes falsos ou ludibriar os outros, para obter vantagens pessoais ou prazer; Impulsividade ou fracasso em fazer planos para o futuro; Irritabilidade e agressividade, indicadas por repetidas lutas corporais ou agressões físicas; Desrespeito irresponsável pela segurança própria ou alheia; Irresponsabilidade consistente, indicada por um repetido fracasso em manter um comportamento laboral consistente ou honrar obrigações financeiras; Ausência de remorso, indicada por indiferença ou racionalização por ter ferido; Maltratado ou roubado de outra pessoa.
4 Campos, Fabiana R. S. Adolescentes em Conflito com a Lei: Entendendo a "opção" pela marginalidade. Trabalho de Conclusão de Estágio II – Área Social. Uberaba: Uniube, 2003, 24 páginas.
5 O CARESAMI é reconhecido como modelo para todo país por cumprir exemplarmente o que prevê o ECA (relação vagas/educadores; equipe multidisciplinar, receber adolescentes apenas da região definida, etc) e por utilizar como metodologia de trabalho a "Pedagogia da Presença".