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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Out. 2002

 

LÍNGUA ESPANHOLA

 

Um panorama da leitura em cursos de graduação em Português-Espanhol na região metropolitana do Rio de Janeiro

 

 

Cristina de Souza Vergnano Junger

UERJ (Rio de Janeiro)

 

 

1. Introdução:

A leitura tem sido considerada como uma habilidade lingüística de menor prestígio no processo de ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras (LE). Em geral, podemos constatar o fato através do pouco espaço que se dedica à atividade nos livros didáticos ou nas linhas metodológicas relacionadas ao ensino de idiomas (DENYER, 1999). Constitui, no entanto, uma atividade inerente à aprendizagem e ao uso de qualquer língua, principalmente se considerarmos a inserção do indivíduo leitor numa sociedade letrada.

Nos cursos de Letras, os alunos dedicam grande parte do seu tempo às práticas leitoras, seja na resolução de tarefas diversas, seja para adquirir e aprofundar conhecimentos específicos do idioma, suas literaturas e manifestações culturais. A consciência dessa realidade parece ser um consenso. Porém, haverá alguma proposta curricular com o objetivo específico de aperfeiçoar as estratégias de processamento do texto em suas diferentes situações de uso, ou de desenvolver as competências envolvidas no ato de ler? Que abordagens estão subjacentes à prática da leitura nas aulas de LE?

Este trabalho é fruto de uma pesquisa sobre o tema, junto a docentes de espanhol como língua estrangeira (E/LE) em cursos de graduação de instituições de ensino superior (IES) do Grande Rio. Defendemos o princípio de que, para o futuro professor trabalhar com seus alunos a leitura sob uma ótica que valorize sua caracterização como atividade não passiva, ou seja, como enunciação (MAINGUENEAU, 1996), é necessário que tenha vivenciado a prática de um leitor autônomo, ativo e construtor de sentidos. Tal posicionamento, portanto, justifica o foco da pesquisa na formação universitária e não, como o fazem vários pesquisadores, na realidade de Ensino Fundamental e Médio.

Professores colaboradores responderam um questionário, através do qual foi possível recolher dados sobre os conceitos de leitura que adotam, as circunstâncias do desenvolvimento da atividade leitora em sala de aula e os recursos utilizados com tal finalidade. Com base nas respostas foram discutidos perfis de atuação e a situação do trabalho com a compreensão leitora no espaço de formação dos futuros profissionais de língua espanhola, em especial, dos professores.

 

2. A proposta metodológica:

Conforme comentamos anteriormente, o processo de leitura, embora requeira uma série de competências e envolva fatores variados de ordem cognitiva, social e de processamento da informação, não costuma ter um espaço próprio no planejamento ou na estrutura curricular dos cursos. Apesar de estarmos cientes de que tais competências, uma vez adquiridas na língua materna (LM), podem ser transferidas, em maior ou menor grau, à LE, é importante ter claro que qualquer dos fatores que determinam a compreensão leitora – o autor, o leitor, o texto ou a interação entre os sujeitos do processo – podem afetá-la e, no caso do leitor estrangeiro, é preciso acrescentar as peculiaridades do trato com outro idioma (BORGES, 1998). Além disso, nem todos os níveis de leitura ou gêneros discursivos são explorados ao longo da formação escolar (JUNGER, 2002, 79).

A atuação do professor de LE em sala como um mediador da interação entre leitor e autor por meio do texto tem um papel significativo. Sua orientação teórica determinará não apenas sua visão pessoal sobre o que é ler – e ler numa língua estrangeira –, mas também a maneira como proporá as atividades de leitura e seu desenvolvimento durante o processo de ensino-aprendizagem.

Para obter dados que permitissem discutir como se está desenvolvendo a questão no ambiente escolar universitário, distribuímos um questionário aos docentes de cursos de Português-Espanhol na área do Grande Rio. O primeiro desafio foi levantar a população da pesquisa e determinar quantos instrumentos seriam enviados. Na época da coleta dos dados (ano de 2001), foram localizadas nove instituições de ensino superior (IES) oferecendo o referido curso – três públicas e seis privadas –, com um contingente de cerca de 48 docentes, quatro dos quais lecionavam em mais de uma instituição. Foram incluídos tanto aqueles que lecionavam língua quanto os que davam aulas de Literaturas, Culturas ou Prática de Ensino, por entendermos que todos lidavam com textos e poderiam contribuir para as discussões sobre o tema. É importante ressaltar, além disso, que, entre estes últimos, vários atuam também no ensino do idioma. Apesar dessa abertura com relação à atuação dos informantes, o foco era especificamente o ensino da língua espanhola. Somente foi possível consultar 42 professores, dos quais, 22 devolveram o questionário respondido.

Para compor o instrumento de coleta de dados, baseamo-nos na proposta metodológica de Daher (1998), que estabelece construir um roteiro de entrevista – ou, neste caso, um questionário –, partindo de problemas, hipóteses e objetivos. Dessa maneira, as perguntas elaboradas não o são de forma direta, mas sim favorecendo o alcance das metas previamente definidas pelo pesquisador, através da descrição do modus operandi do professor consultado. O instrumento apresentou sete questões de múltipla escolha, com vários itens que contemplavam características de três diferentes perfis de atuação em sala de aula, com relação à leitura.

A análise dos dados seguiu dois caminhos metodológicos: um quantitativo, com base em pressupostos teóricos da estatística descritiva e análise exploratória de dados (TUKEY, 1977; DACHS,1978); e outro qualitativo. No primeiro caso, buscávamos uma leitura objetiva do material coletado, a fim de corroborar a análise qualitativa posterior, ou para descobrir aspectos não visíveis através desta última. O enfoque qualitativo, por sua vez, enfatizava de forma subjetiva as respostas aos questionamentos em si e a avaliação da prática da leitura na formação de profissionais de E/LE.

 

3. Estabelecimento de perfis:

Ao propormos a elaboração do questionário, consideramos importante encaminhar questionamentos que favorecessem a resposta a três perguntas:

a) que conceito de leitura possuíam os professores consultados (questão 1);
b) em que contexto e com que finalidade era trabalhada a leitura em suas aulas (questões 2 e 4);
c) qual a natureza dos recursos/materiais utilizados e que pressupostos teóricos serviam de base ao trabalho, ou seja, aspectos do campo metodológico (questões 2, 5, 6 e 7).

De acordo com a orientação metodológica de Daher (1998), esses problemas demandariam a construção de hipóteses, cujo papel seria orientar a composição das perguntas e servir de contraponto para a análise posterior. Optamos por adotar, como ponto de partida, abordagens tradicionalmente associadas à leitura. Sendo assim, estabelecemos, como pressuposto, a possível existência de três grandes grupos de docentes, segundo sua atuação em aula no que se refere à compreensão leitora. Devemos ter sempre em mente a observação anteriormente feita de que a orientação teórica do professor determinará sua prática – escolha de materiais, elaboração de exercícios etc. – e o comportamento esperado de seus alunos – processo de avaliação.

Muitos professores e alunos vêem a leitura como uma atividade cujo objetivo é dar suporte ao aprendizado da língua em si, com prioridade para a forma – estruturas sistêmicas e vocabulário (CARMAGNANI, 1995). Ler passa a ser, portanto, uma prática de decodificação, na qual se espera do leitor a capacidade de extrair informações pontuais do texto, ou aperfeiçoar seus conhecimentos lingüísticos intimamente relacionados à produção oral e escrita. Em certa medida, pela ênfase atribuída aos aspectos sistêmicos, à produção – principalmente oral – e à aquisição e aperfeiçoamento dos conteúdos tanto lingüísticos quanto literários, poderíamos associar esse perfil docente aos pressupostos teóricos dos enfoques de Gramática-Tradução e Audiolingual.

Há, por outro lado, professores que incorporaram ao seu trabalho fundamentos teóricos do modelo interacional de leitura, considerando que, ao lado da informação provida pelo autor por meio de seu texto, existe todo potencial gerado pela bagagem de conhecimentos e experiências do leitor. Os conhecimentos prévios adquiridos ao longo de sua vida, tanto no campo lingüístico quanto no enciclopédico (conhecimento de mundo), são responsáveis pela diferenciação na leitura, seja ela entre diferentes leitores, seja em distintos momentos de um mesmo leitor. Nesse caso, as atividades de leitura em sala de aula teriam um planejamento específico, a fim de proporcionar o desenvolvimento das estratégias exigidas para sua realização plena e autônoma.

Finalmente, é importante considerar a contribuição dos estudos de Análise do Discurso (AD)1, que, ao discutir a subjetividade e interdiscursividade, permitem destacar, por um lado, o papel ativo do leitor como construtor de sentidos, um co-enunciador no processo de enunciação que é a leitura e, por outro, o caráter dialógico do discurso – em verdade, intercessão de vários discursos.

Com base nessas considerações teóricas, propusemos um perfil conservador – P1 – coincidente com o conceito de leitura como decodificação, propondo-se a usar o texto para aperfeiçoar estruturas sistêmicas, vocabulário ou conhecimento técnico e utilizando materiais adaptados ou produzidos com fins didáticos. A um perfil interativo – P2 – corresponderia o professor que adotasse pressupostos da leitura interativa, procurasse desenvolver estratégias cognitivas e metacognitivas em suas aulas e utilizasse materiais autênticos e variados. E, finalmente, os professores que adotassem uma orientação enunciativo-discursiva, com objetivo de trabalhar a leitura como enunciação e desenvolver um leitor crítico e ativo, empregando diversidade de gêneros de discurso, corresponderiam a um terceiro perfil – P3.

 

4. Observações sobre a análise quantitativa dos dados:

Dos 22 professores colaboradores, poucos admitiram adotar uma orientação teórico-metodológica específica para o desenvolvimento da leitura em suas aulas – questão 3 do questionário. De fato, ao tabular os dados, pôde-se observar que a maioria, embora representasse um perfil determinado, teve uma quantidade grande de respostas pertencentes a outros perfis. No gráfico a seguir (JUNGER, 2002, 115), por exemplo, vemos que:

a) houve uma quantidade pequena de docentes com perfil 1 predominante;
b) a quantidade de docentes dos perfis 2 e 3 foi equivalente;
c) há uma maior incompatibilidade entre as características de P1 e as de P2 e P3, mas estes últimos perfis parecem aproximar-se ou ser mais compatíveis;
d) na maioria dos casos, há incidência de características próprias de outros perfis que não o predominante.

 

 

Outro dado relevante observado a partir da leitura quantitativa é o fato de que, os três temas abordados no questionário – conceito de leitura (T1); atividades e objetivos do trabalho (T2); materiais e conteúdos (T3) – não se apresentaram de forma homogênea. No caso dos docentes do perfil 1, T1 e T3 foram definidos por características típicas de perfil interativo (P2), sendo próprias do perfil conservador apenas as atividades e objetivos (T2). Com relação ao perfil 2, os professores assim identificados adotaram para o conceito de leitura (T1) características de perfil 3, apontando características de perfil 2 para os demais temas. Apenas os docentes de perfil 3 manifestaram maior homogeneidade temática, escolhendo grande parte das características de cada tema dentro do seu próprio perfil. Nos três casos merece destaque a importância do tema 2 para a caracterização do perfil, pois a maior pontuação das características tipológicas de cada grupo docente esteve sempre associada às atividades realizadas e aos objetivos da prática leitora.

 

5. Algumas conclusões extraídas a partir da análise qualitativa dos dados:

Consideramos importante, para complementar o exposto, ressaltar alguns aspectos de interesse, levantados na análise qualitativa do corpus, com apoio dos índices determinados na análise quantitativa. A conclusão primordial a que pudemos chegar é que o estudo aponta para a heterogeneidade no trabalho com leitura. Nenhum dos professores apresentou características exclusivas de um perfil, ou, pelo menos, baixa interferência de aspectos alheios ao seu enfoque predominante. Ou seja, mesmo quando há a preocupação em criar um espaço destinado ao desenvolvimento específico da leitura, constata-se a presença de posturas híbridas.

Não postulamos a necessidade de homogeneidade absoluta, mas destacamos que a clareza na linha de atuação e a percepção de que a leitura não é um simples elemento acessório no ensino-aprendizagem de uma LE podem gerar resultados mais satisfatórios para o processo. Tais resultados se refeririam tanto ao alcance dos objetivos propostos para o curso, como à autonomia e criticidade do leitor-aprendiz, futuro profissional de espanhol. Implícita nesta conclusão está a crença de que a postura conservadora não contribui de forma específica para o desenvolvimento desse leitor construtor de sentidos, crítico e autônomo, uma vez que não se propõe a trabalhar a leitura e as competências a ela associadas.

Ao lado da heterogeneidade, as repostas dadas indicaram indefinição teórico-metodológica. Muito poucos docentes declararam a base teórica subjacente ao seu trabalho. E foi representativa a separação entre abordagem interativa, aplicável a aulas de língua instrumental de acordo com alguns informantes, e o ensino de língua geral nas aulas de espanhol para formação dos profissionais desse idioma, cuja ênfase seria o domínio sistêmico e léxico, em especial, na produção oral e escrita.

Outro aspecto que mereceu atenção foi a caracterização do perfil enunciativo-discursivo. A aparente homogeneidade e alta presença de professores desse perfil 3 contrastava com a dispersão nas características apontadas nos questionários, principalmente depois do procedimento quantitativo de padronização2 dos dados. Consultados esses informantes, chegamos a uma hipótese que explicaria a contradição. Muitos deles atuam no campo dos estudos literários, ou distribuem sua atuação entre turmas de língua e de literatura. Como vários dos teóricos que servem como base à AD também são fonte para os estudos literários, podemos estar diante de uma coincidência terminológica, que introduziu um viés à análise. Isso explicaria porque coexistem aspectos de valorização dos elementos sistêmicos e das práticas de produção oral e escrita, quando o que se desejava era a postura relativa à leitura, com o reconhecimento da atividade de leitura como construção-reconstrução de sentidos, indo além do produto-texto, em direção ao processo anterior de enunciação do discurso que se está lendo (JUNGER, 2002, 216).

A presente pesquisa discutiu muitos aspectos que não puderam ser expostos neste trabalho e, sem dúvida, o fato de enfocar especificamente a área do Grande Rio não a qualifica para o estabelecimento de padrões genéricos da atuação de docentes universitários dos cursos de graduação em Português-Espanhol, no que tange à leitura. Permite, contudo, a abertura de um espaço para reflexão sobre o tema, inclusive no que se refere à revisão curricular, já que parte dos dados foi também contraposta às ementas e programas das instituições observadas, que não contemplavam, em alguns casos, a compreensão leitora.

 

Referência bibliográfica:

BORGES, Vládia Maria Cabral. A psicolingüística e o ensino da leitura em língua estrangeira. In:GELNE. XVI JORNADA DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 1998. Anais.

CARMAGNANI, Anna Maria G. Analisando as Visões de Leitura em LE de alunos de 3º grau. In:CORACINI, Maria José (org.). O jogo discursivo na aula de leitura. Língua materna e língua estrangeira. Campinas: Pontes, 1995. p. 93 – 101.

DACHS, J. Norberto W. Análise de dados e regressão. Campinas : UNICAMP, 1978.

DAHER, Maria Del Carmen González. "Quando informar é gerenciar conflitos: a entrevista como estratégia metodológica". In: The ESPecialist, São Paulo: Cepril/ Educ, 1998. p. 287- 303, vol 19, nº especial.

DENYER, Monique. La lectura: una destreza pragmática y cognitivamente activa. España: Universidad Antonio de Nebrija, 1999.

JUNGER, Cristina De Souza Vergnano. Leitura e Ensino de Espanhol como Língua Estrangeira: Um enfoque discursivo. Rio de Janeiro, 2002. 266 p.Tese (Doutorado) – Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro

MAINGUENEAU, Dominique. Pragmática para o discurso literário. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

TUKEY, W. J. Exploratory Data analysis. Massachussets : Addison Wesley, 1977.

 

 

1 Referimo-nos de maneira específica à AD de linha francesa, principalmente, pela ênfase dada à análise de discursos escritos.
2 Esse procedimento se caracterizou pelo uso de desvio padrão, reestruturando a caracterização de cada docente em relação aos companheiros do mesmo perfil, o que relativizou a pontuação bruta inicialmente obtida.