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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002
LÍNGUA ESPANHOLA
Bloqueios do aprendiz de espanhol/LE: os heterossemânticos
Eliane Barbosa da Silva
Universidade Federal de Alagoas
Neste trabalho, apresentamos uma discussão sobre as dificuldades ou bloqueios do aprendiz no nível léxico-semântico, pela interferência da Língua materna (LM) na aprendizagem da Língua estrangeira (LE). Para tanto fundamentamo-nos em postulados da Lingüística aplicada ao ensino de línguas, centrando-nos sobre a questão da interferência da LM na LE no que diz respeito à transferência tanto da forma quanto do sentido, levando-se em consideração os elementos de cultura da LM e da LE e o que isto significa em termos de ensino-aprendizagem de línguas próximas, como é o caso do Português e do Espanhol.
1. PROXIMIDADE DO PORTUGUÊS COM O ESPANHOL
1. 1. O problema das interferências
Para Vandresen (1988, p. 77), a "interferência" é manifestada através de "desvios" na língua estrangeira estudada, por influência da língua materna do aprendiz. Ou seja, o aprendiz tende a substituir traços fonológicos, morfológicos, sintáticos, (acrescentamos a estes os traços semânticos) da língua estrangeira pelos da língua materna. Assim, o grau de diferença que há entre as duas estruturas tornar-se-á em facilidade ou dificuldade em aprender uma língua estrangeira. E o que os trabalhos científicos mais atuais parecem demonstrar é que o problema das interferências é maior quanto mais próximas forem as duas línguas, como é o caso do Português e do Espanhol.
Grannier (1998, p.2)1 diz que "uma maior ou menor facilidade na aquisição do português está relacionada a uma maior ou menor possibilidade de transferência de unidades significativas do conhecimento lingüístico anterior do aprendiz (CLAA)". Segundo a autora, sabe-se que o CLAA (conhecimento lingüístico anterior do aprendiz) corresponde, na maioria das vezes, à língua materna do aprendiz e, mesmo quando este tem um CLAA ampliado, a sua LM é o fator mais atuante na transferência para uma nova língua, salvo poucas exceções.
Segundo Almeida Filho (1995, p.19), línguas muito próximas levam o aprendiz a viver numa zona de facilidade enganosa proporcionada pelas percepções dos aprendizes. Nessa proximidade, há vantagens, caso sejam combinadas à capacidade de risco, segurança e extroversão, sem as quais espera-se a ocorrência de tentativas de obtenção de fluência e de disponibilidade vocabular, o aparente meio-sucesso leva ao estacionamento dessa interlíngua denominada Portunhol2.
A facilidade enganosa a que se refere Almeida Filho (1995, p.15) encontra-se na teoria de aquisição de língua expressa pela hipótese da análise contrastiva. A versão forte dessa hipótese sustenta que toda diferença entre os sistemas lingüísticos traduz-se em dificuldade de aprendizagem. Essa diferença seria diretamente proporcional ao grau de interferência da língua materna sobre a língua-alvo em construção.
A versão fraca, ou análise de erros, por sua vez, mantém que é necessário observar a existência de erros ou dificuldades para depois empregar estudos contrastivos que expliquem tais desvios da norma. Embora muito criticada, Schmitz (apud Ferreira, 1995, p. 44; 47) enfatiza a importância desta não no sentido behaviorista de prever que todos os erros são decorrentes da interferência da língua materna, mas no sentido de conscientizar tanto os aprendizes com relação às diferenças entre os dois sistemas lingüísticos, quanto ao professor na preparação do material didático. É, pois, nesse último sentido que observamos a importância de estudos contrastivos entre essas línguas para o nosso trabalho, e não simplesmente prever os erros, os quais chamaremos de inadequações, apenas como decorrência da interferência da LM.
Para Older e Ziahosseiny (apud Almeida Filho, 1995, p.16), a interferência pode ser ainda maior quando o que vai ser aprendido é mais semelhante ao já aprendido, do que quando o que vai ser aprendido é totalmente novo e não tem relação com conhecimentos anteriores. É, justamente, o que pode ocorrer com o aprendiz do Espanhol cuja língua materna é o Português, ou seja, a semelhança entre o Português e o Espanhol provoca, nos aprendizes, constatações e sentimentos contraditórios, pois a aprendizagem tanto pode ser em parte facilitada por esta semelhança, como também pode se tornar complicada pela ausência de claros definidores de aspectos dessa nova língua, isto é, dessa língua-alvo. Portanto, a visão dos aprendizes, tanto do Português como do Espanhol, precisa ser trabalhada a fim de que as distorções sejam evitadas e cada língua seja respeitada em suas singularidades.
Sobre essas mesmas questões, Ferreira (1995, p. 40) diz: Devido à proximidade tipológica entre as línguas (Português e Espanhol) existe o mito da facilidade. No entanto, se por um lado a semelhança facilita o entendimento, por outro lado são constantes as evidências de transferência negativa e eventualmente de fossilização.
Alguns estudos têm demonstrado que determinados níveis lingüísticos interferem mais que outros na aquisição-aprendizagem de uma segunda língua (L2) ou LE. O que observamos, neste estudo, é que a maior ou menor facilidade na aprendizagem do Espanhol está associada, em grande escala, a uma maior ou menor transferência do léxico, tendo em vista os incontáveis cognatos entre essas duas línguas, somados à infinidade de falsos cognatos que as sobrecarregam. Acreditamos, também, que o fato da proximidade genética entre ambas não diminui o grau de dificuldade na aquisição-aprendizagem do Espanhol se comparado ao Italiano, ao Francês ou ao Inglês, pois devemos considerar os diversos elementos que se combinam e se opõem na aparente semelhança estrutural desses dois sistemas lingüísticos.
2. FACILIDADE OU DIFICULDADE?
2.1. O léxico: semelhanças e diferenças
De acordo com Lado (1972, p.15), a semelhança e a diferença da língua materna em forma, sentido e distribuição com uma língua estrangeira, tornar-se-ão em facilidade ou dificuldade na aquisição do léxico desta língua estrangeira.
A comparação do léxico da língua materna com o da língua estrangeira fará encontrar palavras agrupadas conforme o Quadro1, abaixo:
As dificuldades variam um pouco devido ao fato de que alguns desses grupos se sobrepõem, fazendo com que algumas palavras se encaixem em mais de um grupo. Lado (1972, p.116-123), baseado nesses agrupamentos, prevê um nível geral de dificuldade e classifica cada grupo desses em um dos três níveis de dificuldade: "fácil", "normal" e "difícil", conforme apresentamos acima.
2.2. Os falsos cognatos
Embora tenham a grafia semelhante ou mesmo igual nas duas línguas, como observamos em muitos destes pares heterossemânticos, essas palavras podem ter sentidos totalmente diferentes; podem ser parcialmente semelhantes no sentido, ou seja, podem ter algum sentido em comum, porém não compartilhar outros; podem também ser totalmente diferentes no sentido, mas representar sentidos que existem na língua materna, isto é, os sentidos são sempre diferentes entre ambas as línguas, mas existem na língua materna de outra forma.
Os heterossemânticos formam um grupo especial e estão situadas num nível bem elevado na escala de dificuldade dessa classificação, rotulada de difícil. Tais palavras são "armadilhas infalíveis", pois a semelhança delas, em forma, com palavras da língua materna aumenta sua freqüência no uso normal da língua pelos estudantes. (Lado, 1972, p.117-118). Diante disto, acreditamos ser este um dos grupos que pode apresentar maiores problemas para o falante do Português ao aprender Espanhol, no que diz respeito à compreensão e produção oral e escrita, nas quais estejam presentes essas palavras, pois, por interferência da língua materna, o aprendiz poderá compreender e usar determinadas palavras acreditando ser um cognato, e este poderá ser, na verdade, um falso cognato.
2.3. O léxico: forma, sentido e distribuição.
Lado (1972, p.108), ao tratar da comparação de sistemas de vocabulário, cita três aspectos das palavras: forma, sentido e distribuição. Para ele, estes são aspectos vitais no ensino de uma língua. A forma das palavras abrange a maneira de manifestação, e a maneira de propriedade, identificadas pelos indivíduos da cultura. Na maioria das línguas, a forma consiste de segmentos fônicos, intensidade e altura, e varia de acordo com a situação, rapidez da fala, posição na frase, posição quanto à intensidade, etc.
A distribuição compreende o modo como são distribuídas as unidades em determinada língua, quanto ao tempo, ao espaço, aos vários níveis sociais, e aos estilos de fala e escrita. Exemplo disso são algumas palavras usadas na poesia: a forma como, muitas vezes, estão distribuídas não são usadas no dia a dia, numa conversa comum.
Segundo Lado (1972, p.111), os falantes de uma língua trazem consigo os hábitos das restrições em distribuição, assim como as línguas diferentes têm restrições diferentes. Dessa forma, as restrições em distribuição não são totalmente as mesmas em Português e Espanhol, existe, em ambas, restrições características. Isto é, as palavras em uma determinada frase não estão distribuídas ao acaso, mas em posições determinadas. Por isso, afirma-se que os elementos possuem uma distribuição característica, e essa distribuição pode ser diferente em diferentes línguas.
Os sentidos, segundo Lado (1972 : 109), não são os mesmos em todas as línguas, engano que até pessoas instruídas cometem por acreditar que as línguas diferem apenas nas formas usadas para tais sentidos, quando, "na verdade, os sentidos em que classificamos nossa experiência são determinados ou modificados culturalmente e variam consideravelmente de cultura para cultura".
2.4. A cultura: forma, sentido e distribuição
Do mesmo modo que transfere a forma, o sentido e a distribuição da língua materna para a língua estrangeira, o aprendiz também transfere elementos da sua cultura para a cultura estrangeira. Pois, tanto a forma como o sentido e a distribuição de elementos da cultura do aprendiz podem ser diferentes da cultura estrangeira.
Desta maneira, afirmamos, baseados em Grannier (1998, p. 1), que no processo de ensino-aprendizagem de línguas, é preciso considerar o papel dos aspectos culturais e interculturais que podem afetar em maior ou menor nível tanto a futura comunicaçãodo aprendiz na comunidade na qual se usa aquela língua-alvo como aqueles que afetam o processo de ensino-aprendizagem e, conseqüentemente, o processo de aquisição da língua.
3. LEVANTAMENTO DE ERROS
Apresentamos, a seguir, alguns exemplos de ‘erros’, os quais preferimos chamar de inadequações, observados em aprendizes de Espanhol (LE), falantes de Português (LM), durante algumas aulas em instituições públicas de ensino tanto em nível fundamental como em nível superior em Maceió.
As inadequações podem ser classificadas como ortográficas, fonológicas, lexicais, morfológicas, sintáticas e semânticas, podendo haver subgrupos e intergrupos4 entre estes apontados. Porém, dentre as inadequações encontradas, agrupamos apenas as inadequações lexicais, e dentro deste grupo classificamos três subgrupos quanto à inadequação na forma e no sentido, considerando como pontos críticos alguns tipos de erros que persistem mesmo em estágios avançados da aprendizagem de LE.
3.1. Inadequações lexicais:
3.1.1. Uso da forma em português
Consideramos como uso da forma em português aquele que indica uma falta de contato com o item lexical em Espanhol suficiente para que o aprendiz faça uso da mesma, decorrente do desconhecimento total da forma em Espanhol, ou da aparente semelhança. Exemplos:
1. ... las mujeres pueden executar. (Esp. ejecutar)
2. ... no son cumpridas en nuestro país. (Esp. cumplidas)
3.1.2. Uso de uma forma mista
Este subgrupo se caracteriza pela presença inadequada de formas da LE, o que demonstra uma percepção e desenvolvimento no processo de aprendizagem da mesma. É a partir deste ponto que devem ser reforçadas a conscientização e a aplicação de metodologia e atividades específicas através da análise contrastiva sobre as semelhanças e as diferenças entre as duas línguas. Exemplos:
3. Hoy me he acuerdado del viaje que hicimos a Itália. (Esp. acordado)
4. ... me acusa de ser exagerada en tudo aquello que haço. (Esp. todo/hago)5
5. ... muchas gracias por el envite. (Esp. la invitación)
6. ... viajé al extrangero. (Esp. extranjero)
3.1.3. Inadequação léxico-semântica
Este subgrupo ou intergrupo, embora pareça, a primeira vista, que não apresenta nenhuma inadequação lexical, se caracteriza como um dos mais complexos, pois envolve inadequações quanto à forma, ao sentido e à distribuição, em alguns casos. Neste grupo, aparecem as sutilezas e o emaranhado de sentidos (primário, secundários, conotativo, etc) que cada língua e cada cultura apresenta em seu léxico de forma muito peculiar. Referimo-nos, portanto, aos heterossemânticos, que, como já dissemos, na escala de dificuldade estão situados em um nível bem elevado, e que merecem uma atenção redobrada e um estudo voltado ainda mais para a leitura e produção de textos. É neste grupo que, em muitos casos, embora o aprendiz já se encontre em níveis avançados de aprendizagem de LE, permanece com determinados bloqueios e inadequações, tanto na compreensão como na produção oral e escrita.. Exemplos:
7. ... os envio um regalo, es um esquisito mantel bordado. (Esp. hermoso, lindo)
8. ... el preconceito está sólo en la cabeza de las personas. (Esp. prejuicio)
9. El ladrón tiró de mi bolsa todo el dinero. (Esp. sacó/bolso)
10 .... aunque no creas, ocorrió un hecho que me dejó muy aburrida. (Esp. ocurrió/enojada)
11. Mi amigo está muy embarazado hoy en el trabajo. (Neste caso, para não haver constrangimentos, é melhor usar desordenado/perturbado, ...)
12. La secretária está muy exquisita. (A palavra adequada seria rara/extraña, pois exquisita tem sentido de deliciosa, de muito bom gosto, ...).
13. "Tiró al aire un largo cuchillo". ("Atirou ao ar uma faca comprida". Excelente exemplo, pois reúne três Falsos cognatos, de Jorge Luis Borges, apud Leal, 1997: 7,8).
14. Le contestó que había borrado lo que estaba escrito. ( Respondeu-lhe que tinha apagado o que estava escrito.). (Leal, 1997 : 7).
Nestes dois exemplos (13 e 14) observamos a incompreensão ou compreensão inadequada quanto ao sentido das palavras e da própria frase por parte dos alunos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desta forma, procuramos mostrar, muito sucintamente, através dos poucos exemplos acima, a validade de se analisar e aplicar princípios da análise contrastiva, a partir da produção oral e escrita de alunos, como também através de compreensão e expressão oral e escrita, e de exercícios estruturais com ênfase no contraste entre as línguas, com a finalidade de promover a conscientização dos mesmos quanto às semelhanças e as diferenças entre o Português e o Espanhol, quanto à distinção entre os pontos divergentes entre as duas línguas e à regularidade entre ambas, e, conseqüentemente, para um maior aprofundamento na LE. Por outro lado, ressaltamos aqui a necessidade de se desenvolver uma metodologia específica, e materiais adequados ao ensino-aprendizagem do Espanhol como LE, tendo em vista a inadequação de muitos destes à realidade dos falantes de Português como LM face a proximidade das mesmas.
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA FILHO, J.C. Uma metodologia específica para o ensino de línguas próximas? In : ___ (org.). Português para estrangeiros interface com o espanhol. Campinas, SP: Pontes, 1995. p. 9-21.
FERREIRA, I. A interlíngua do falante de espanhol e o papel do professor: aceitação tácita ou ajuda para superá-la? In: ALMEIDA FILHO, J.C. (org.). Português para estrangeiros interface com o espanhol. Campinas, SP: Pontes, 1995. p. 39-48.
GRANNIER, Daniele Marcelle. Distâncias entre línguas e variáveis metodológicas no ensino de português como segunda língua.Anais do VII Encontro da Associação das Universidades de Língua Portuguesa. Macau, abril de 1998. 7p.
LADO, R. Introdução à lingüística aplicada. Petrópolis, RJ: Vozes, 1972. 167 p.
SCHMITZ, J. R. Análise contrastiva. In: BOHN, I.& VANDRESEN, P. (org.). Tópicos em lingüística aplicada: o ensino de línguas estrangeiras. Florianópolis: UFSC, 1988, p. 95-116
VANDRESEN, P. Lingüística contrastiva e ensino de línguas estrangeiras. In: BOHN, I.& VANDRESEN, P. (org.). Tópicos em lingüística aplicada: o ensino de línguas estrangeiras. Florianópolis: UFSC, 1988. p. 75-93.
1 Esclarecemos que Grannier (1998) embora trate em seu estudo sobre o ensino de português para estrangeiros, a questão em foco, ou seja, o fenômeno da transferência é um fator de grande importância no ensino-aprendizagem de qualquer língua.
2 Segundo Almeida Filho (1995), Portunhol é a produção lingüística intermediária de um falante de Espanhol ao tentar falar Português, enquanto que Espanhoguês seria o inverso desta; ou ainda, segundo Colin Rodea (apud Ferreira, 1995, p. 39), é a expressão mais imediata do contato entre as línguas portuguesa e espanhola.
3 Segundo Lado (1972, p.122-123), a classificação segundo o nível de facilidade/dificuldade neste grupo (7) é difícil pois as restrições também devem ser aprendidas. Porém, pode-se considerar como um grupo de dificuldade especial, pois o aluno que aprendeu uma forma restrita tem de aprender outra para o mesmo sentido, caso tenha de se comunicar com falantes de áreas geográficas onde aquela forma aprendida não é corrente.
4 Dizemos intergrupo pois alguns desses grupos e subgrupos podem estar inter-relacionados, por exemplo, no caso de serem encontradas inadequações léxico-semânticas, sintático-semânticas, etc.
5 Salientamos que alguns desses exemplos podem fazer parte ou exemplificar mais de um subgrupo.