2, v.1Subjuntivo en español y portugués: ¿valores alterados?Hacia (y desde) la perspectiva lingüística de la lengua española: el recorrido do los aprendices para situarse del otro lado del espejo índice de autoresíndice de materiabúsqueda de trabajos
Home Pagelista alfabética de eventos  





An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002

 

LÍNGUA ESPANHOLA

 

Violência e resistência na formação de leitores de literaturas estrangeiras

 

 

Marcia Paraquett

UFF (Niterói)

 

 

Esto que les cuento es una cretinada, abyección pura,
ya lo sé. Pero me he propuesto contar las cosas como
fueron. Nada de tener cuidados y disimular.
(MG, 1999, p.19)

 

Começo lembrando que as diretrizes curriculares nacionais recomendam que, no primeiro e segundo grau, o ensino de uma língua estrangeira moderna deve pautar-se na compreensão leitora. Isso determina que o principal papel das faculdades de línguas estrangeiras, hoje, é a formação de professores-leitores, preparando esses profissionais para essa nova perspectiva, onde se privilegiam atividades de leitura organizadas para esse fim. No desejo de refletir sobre essa realidade e preocupada em colaborar para a definição dessa proposta que vejo muito simpaticamente, trago-lhes essa comunicação que se organiza a partir de três vertentes: associar o ensino de E/LE ao texto literário; compreender a expressão estética da violência em fragmentos poéticos; e estabelecer uma dicotomia entre violência e resistência no espaço da sala de aula de E/LE.

Não cabe aqui falar sobre a importância da leitura e os limites que ela determina para o ensino/aprendizagem de E/LE, temas já apresentados em outras ocasiões1, mas para que melhor se possa acompanhar meu pensamento, é preciso afirmar que estou entendendo leitura como a compreensão de enunciados históricos, políticos e ideológicos que são o construto de uma identidade cultural.

Cabe-me, no entanto, explicar porque tomo o texto literário como gênero discursivo e porque escolho a expressão estética da violência para refletir sobre a realidade da sala de aula. E é o que passo a fazer.

Com um título bem abrangente, Aquisição de Língua Espanhola (ALESP), o atual projeto de pesquisa a que me dedico, entre outros temas, propõe procedimentos de leitura de textos em língua espanhola, privilegiando diferentes gêneros literários e discursivos, textos verbais e não verbais. Interessa-me, agora, tratar do texto literário e de sua importância para o processo de aprender e ensinar a língua espanhola no Brasil.

Em conversas formais com os alunos de minha universidade, sempre os escuto falar que a maior dificuldade que enfrentam nas escolas públicas, principalmente, é a questão da motivação que gera problemas de disciplina. Com a nova orientação da Secretaria de Educação da cidade do Rio de Janeiro, que não indica o uso de manuais didáticos em sala de aula de língua estrangeira, esses professores têm vivido a experiência de preparar seu próprio material atendendo às necessidades de seus grupos de alunos. É bem verdade que o órgão público tem se preocupado com a atualização de seus professores, mas esses breves encontros são insuficientes para o fim que se espera alcançar. Os alunos de pós-graduação que estamos recebendo trazem consigo uma preocupação nesse sentido. Estão aflitos e se sentem pressionados a descobrir seus próprios mecanismos para a realização de suas tarefas na sala de aula. O manual didático, apesar de sempre criticado por sua impossibilidade de ser abrangente e pontual ao mesmo tempo, de uma certa forma orientava a seqüência das lições a serem aprendidas. Hoje, o professor de língua estrangeira precisa produzir seu próprio material e ainda definir estratégias de utilização desse produto.

Portanto, a Universidade tem um papel mais efetivo na formação de seu profissional. Estávamos, e falo principalmente por mim, muito acomodados no nosso compromisso de garantir a eficiência do processo de aprender e ensinar uma língua estrangeira, deixando que os professores seguissem as orientações dos sedutores manuais que chegavam às nossas livrarias, trazidos, quase sempre, por modernas caravelas, à moda dos conquistadores.

Por isso quero falar da leitura na sala de aula. Ainda que modestamente, quero contribuir para a segurança de meus alunos. Quero mostrar-lhes que eles são capazes de produzir materiais, atentos às necessidades de seus alunos. Esse é meu objetivo agora. Vou propor a leitura de três fragmentos poéticos do escritor argentino Mempo Giardinelli: o conto Naturaleza muerta con odio (1998), o ensaio, Los argentinos, la violencia y la muerte (1998) e o romance, Décimo Infierno (1999). Ainda que sejam textos literários, cada um pertence a um gênero diferente, o que permite um paralelo que sempre interessa estabelecer. E por que Mempo Giardinelli? E por que esses fragmentos particularmente? É claro que poderiam ser outros, mas quero privilegiar uma produção estética da atualidade. Tratar de temas que sejam da realidade dos alunos é fundamental para diminuir a desmotivação que vivem nossos jovens dentro da escola. E, lamentavelmente, a violência é uma questão do dia-a-dia deles, de suas rotinas. E também da nossa.

O texto literário, por suas particularidades, diminui o impacto do tema, mas não impossibilita uma profunda discussão sobre o panorama que se apresenta hoje em nosso país, sobretudo nas grandes metrópoles. Mempo Giardinelli é um escritor que vive numa sociedade que tem problemas muito semelhantes à nossa. Dessa forma, a escritura argentina é também brasileira, na medida em que podemos conhecer o outro por nossa realidade ou vice-versa, valer-nos de nossa experiência social para o conhecimento da realidade argentina. A escritura poética de Mempo Giardinelli ainda tem outro aspecto que justifica a sua escolha para esse exercício de leitura: ela pertence ao momento/movimento que alguns chamam de pós-boom e outros, de pós-modernidade. O próprio autor rejeita essas duas expressões e prefere falar em escritores da democracia recuperada. Não me interessa agora discutir essa questão, mas sim ressaltar que esse movimento literário tem características finisseculares e marcas de uma linguagem mais atual, vencedora na preferência dos novos homens: o cinema, essa forma ligeira e superficial de dizer, que prende seus ouvintes, garante o boom de mercado e de leitores/espectadores de nossos tempos. Quero crer que Giardinelli, e não só ele2, está assumindo uma nova narratividade, porque está atento aos novos códigos de consumo e de preferência cultural. Com base na leitura de seus ensaios, posso afirmar que ele não está sugerindo que a poética deva ser cinematográfica, sobretudo no que o cinema tem de pior. Mas ter as marcas discursivas do cinema garantirá, minimamente, o interesse de leitores também finisseculares. Feitos esses esclarecimentos, passo a apresentar-lhes a expressão estética da violência selecionada para essa leitura.

A vertente da violência como expressão literária, no meu ponto de vista, é um dos aspectos que marca essa produção heterogênea e variada, conhecida hoje como narrativa de pós-boom ou pós-moderna, além de ser marca da tradição literária argentina. A escritura de Mempo Giardinelli é a representação do cenário social e político que caracteriza seu país. Ele está representando, em sua narrativa, a crise que lhe cabe viver. Seu conto Naturaleza muerta con odio, apresenta uma seqüência de fatos, revelados como num filme, onde o diretor quisesse registrar os diferentes e conseqüentes movimentos de seu personagem. A primeira cena, descrita no primeiro parágrafo do conto, anuncia:

Hay una enorme tijera de jardinero en el aire, de ésas de doble filo curvo y que tienen un resorte de acero en medio de la empuñadura, que de pronto queda suspendida, en el aire y en el relato. (GIARDINELLI, 1999, p.245)

E segue, no segundo parágrafo:

Ahora hay una ciudad provinciana, chata, de unos cuarenta mil habitantes, mucho calor. Un barrio de clase media con jacarandaes en las veredas, jardines anteriores en las casas, baldosas más o menos prolijas, pavimento reciente. (GIARDINELLI, 1999, p. 245)

A presença da forma verbal de presente (hay) e a precisão adverbial (ahora) determinam a descrição do cenário onde está acontecendo o episódio. O movimento se intensifica no parágrafo seguinte, quando o leitor é convidado pelo narrador a entrar em cena para ver o que acontece ali:

Nos metemos en una de esas casas y vemos un living comedor en el que hay una mesa, cuatro sillas y [...] También vemos un par de souvenirs de madera o de plástico, un cenicero de piedra que dice "Recuerdo de Córdoba"[...]. Sentada en una de las sillas y acodada sobre la mesa, hay una mujer que llora y sostiene un hielo envuelto en un pañuelo sobre su ojo izquierdo, que está completamente morado por la paliza que le dio su marido. (GIARDINELLI, 1999, p. 245)

Já há cenário, personagem e expectador. Mais do que ler, nossa função é a de estar ali e ver o que a câmera do narrador vai privilegiando. A narrativa segue e somos informados de que o marido não se encontra no living porque saiu há menos de uma hora, depois de jurar que nunca voltaria.

No ambiente há uma criança a que tudo assiste, testemunha da violência do pai e da cobrança da mãe que recrimina as mentiras, a contínua infidelidade, as ausências que duravam dias, a embriaguez e o maltrato que sofria. "Ese niño ha mamado leche y odio a lo largo de sus nueve años de vida" (GIARDINELLI, 1999, p. 246), ressalta a voz em off a nos lembrar que se trata de literatura. Os dias que seguem ao desaparecimento do pai não são mais fáceis. A mãe vê na prostituição a saída para a sobrevivência dela e do filho, até que a morte a retira do cenário, deixando-o sozinho e ao relento.

Nesse momento, a narrativa passa a seu segundo flash: "Ahora hacemos un corte y estamos en la noche de anoche" (GIARDINELLI, 1999, p. 247). O menino já é um homem. Um homem jovem que não tem trabalho. Esteve na guerra das Malvinas e por causa de um ferimento, teve o pé amputado, o que lhe obriga o uso de uma prótese de plástico coberta por uma meia preta e um sapato andrajoso. O ambiente é outro:

Habita una mugrosa casucha de cartón y maderas, empalada sobre la tierra, en un suburbio de la misma ciudad, que ahora es mucho más grande que hace unos años y ya tiene casi medio millón de habitantes. (GIARDINELLI, 1999, p. 247)

O jovem homem não está sozinho. São milhões os que habitam o seu território, onde sobrevive, às vezes, porque cuida dos jardins das casas dos mais ricos. Com sua tesoura, é claro. Às vezes, também, vende balas, bilhetes de loteria ou pede esmolas nas esquinas do centro. Seu corpo se veste com uma velhíssima calça de soldado e uma camisa rasgada e suja. "Ese joven ignora la rabia que tiene acumulada" (GIARDINELLI, 1999, p. 248), alerta-nos o narrador. Ainda que beba um copo aqui ou acolá, não se pode dizer que seja um bêbado. Ao contrário, é tão manso e resignado que é difícil imaginá-lo tomando mates até a madrugada, com erva velha e seca ao sol, e com água que esquenta na lata e que coloca no fogãozinho de lenha.

"Ahora hacemos un otro corte y nos ubicamos, ayer a la tarde, en la entrada nordeste de la ciudad" (GIARDINELLI, 1999, p. 248). Estamos, narrador e leitor, de novo na cena. Onde "nos ubicamos", desemboca a ponte que cruza o grande rio e vemos um ônibus vermelho e branco. Num dos assentos viaja um homem já velho. A voz em off se faz dispensável, mas anuncia que: "ese hombre viejo es el mismo que era el padre del niño silencioso que lo escuchó decir nunca más me van a ver el pelo" (GIARDINELLI, 1999, p. 249). Esse homem viveu durante muitos anos em outra cidade. Teve outra mulher, que cuidou de sua comida, de sua roupa, que agüentou seu humor. Essa mulher acaba de morrer e esse homem ficou ainda mais velho. Também está doente e por um impulso qualquer resolveu voltar a essa cidade para buscar o filho.

"Ahora hacemos el último corte imaginario y los vemos a ambos dentro de la tapera" (GIARDINELLI, 1999, p. 249). A câmera nos leva a ver as cenas e mostra o homem sentado, chorando com a cabeça entre as mãos. O homem velho monologa e chora, enquanto o jovem, proibido de falar pelos tantos anos de silêncio, lembra da primeira cena. Mas não chora, só escuta. E então segura a tesoura de cortar trepadeiras. "Es una tijera muy vieja, oxidada y casi sin filo. Pero es dura y punzante. Como su odio" (GIARDINELLI, 1999, p. 250).

E, então, o último corte:

la enorme tijera de jardinero que había quedado suspendida en el aire, y en el relato, cae sobre la espalda del hombre viejo y penetra en su carne, entre los hombros y el omóplata, con un ruido seco y feo como el de ramas que en la noche se quiebran bajo el peso de un caballo. (GIARDINELLI, 1999, p. 250)

Esse longo passeio pelas secas e duras palavras que constituem o conto de Mempo Giardinelli nos permite perceber que sua narrativa leva o leitor a ver-se frente a um espetáculo que poderia estar sendo rodado numa tela de cinema. Ou numa exposição de fotografias. Quatro cenas, quatro fotos, organizam a trama. A voz do narrador, como uma câmera, vai construindo o discurso poético numa genialidade representada em poucas páginas. A expressão da violência se manifesta no horror familiar, no abandono social e no desrespeito político que envolve a todos os personagens: mãe, pai e filho, cidadãos argentinos da contemporaneidade. Vítimas, os três, da violência de seu país, retratada na poesia desse conto que se inclui na narrativa pós-moderna.

No ensaio Los argentinos, la violencia y la muerte, Giardinelli começa perguntando se a Argentina é um país violento, de pessoas violentas e a resposta que nos dá é que há uma convicção de que os argentinos são pacíficos e tranqüilos e que tudo o que se quer é viver em paz. No entanto, segundo sua opinião, isso não corresponde à verdade. A sociedade argentina tem marcas de violência que se expressam principalmente no universo familiar e no futebol, esporte da paixão nacional. Ainda que considere quase desnecessário falar da violência urbana, lembra-nos que lamentavelmente a América Latina, não somente ela, mas bastante nela, a Polícia e a Justiça estão corrompidas de tal maneira que essa violência só tende a aumentar. No entanto, Giardinelli está mais interessado em tentar entender por que os argentinos crêem que seu país é pacífico. Identificar a falta de cuidado com os velhos e com as crianças e entender esse abandono como forma de violência é começar a modificar esse quadro. Essa é sua proposta. Desfazer o mito. Mostrar que a família argentina, a de classe baixa, principalmente, é vítima não só da violência social e política, mas de sua própria família. E o conto que acabamos de analisar revela esse universo, onde a violência externa provoca a interna e vive-versa, num jogo macabro de nunca acabar.

Essa é a explicação que encontro para justificar a opção temática de seu último romance: El Décimo Infierno: uma narrativa que desnuda a condição humana de sentir-se no inferno, sem saída, onde matar é o que resta. Um romance que merece uma epígrafe de El libro de buen amor, de Arcipreste de Hita que se refere ao fogo da paixão, e que está dedicado a Osvaldo Soriano, denunciador e vítima do Proceso, indicia a violência como seu tema central: uma violência nascida da paixão. Ao ler o romance, encontramos traços coincidentes entre personagem e autor, o que permitiria o levantamento da hipótese de tratar-se de uma obra autobiográfica. A data e o local de nascimento coincidem, mas esse narrador em primeira pessoa não é Mempo Giardinelli. Sabemos que se trata de uma obra de ficção porque em seu ensaio, ele nos informa que os escritores da democracia recuperada não são autobiográficos. Ao contrário, escrevem puramente por imaginação. Essa coincidência é, com certeza, a intenção de marcar a sua geração. Ele fala de seu lugar e de seu tempo. De dentro de sua crise, portanto.

A forma como essa temática se apresenta nos obriga a fazer uma aproximação com a linguagem cinematográfica: triângulo amoroso, traição, assassinato, sangue, fuga, perseguição e brutalidade nas ações. Modelo do cinema comercial, aprendido dos produtores de Hollywood e seguido pelos que vêem na sétima arte uma forma de enriquecer. É impossível ler El Décimo Infierno sem lembrar de Luna caliente, outro romance do autor já adaptado para o cinema e televisão. Se na primeira publicação o tema da paixão se junta a uma boa dose de magia fantástica, na última, a paixão se mistura à violência, à brutalidade e à agressão. E não só na descrição das cenas, mas na linguagem, no vocabulário utilizado. Nesse aspecto, é bastante diferente de Naturaleza muerta con odio, quando as cenas são violentas, mas a linguagem é suave. No romance, a fala do narrador justifica outro mito que Giardinelli discute em seu ensaio: "Porque te quiero te aporreo". A narrativa desse romance vem confirmar sua declaração sobre a agressão familiar, feita em nome do amor, da paixão. Observemos esse fragmento:

Entonces me pidió que la penetrara, me rogó que la rompiera toda, que volviera a pegarle, que le hiciese lo que se me antojara porque yo era un hijo de puta sin remedio ni perdón de Dios pero era un hijo de puta maravilloso que la hacía gozar como nadie lo había hecho en toda su vida (GIARDINELLI, 1999, p. 86)

A voz do narrador segue o relato, estabelecendo uma cumplicidade com seu leitor, iniciada desde a primeira linha do romance:

Ustedes discúlpenme pero no hay macho en el mundo que no responda como corresponde a semejantes exigencias. Yo fui la ira y yo fui el toro desbocado, todo a la vez y en ese mismo momento. Ella tuvo una serie de orgasmos y al final, cuando yo alcancé el mío, la sentí tan entregada y tan frágil debajo de mí, la sentí tan rota, diría que me alcé levemente y la miré de nuevo a la cara – ella tenía los ojos cerrados y un gesto de dolor demasiado expresivo, demasiado profundo – y eyaculé con un ronquido feroz, pronunciando su nombre una vez y otra vez y otra más, y pensando que yo era capaz de cualquier cosa por esa mujer, realmente de cualquier cosa, incluso de matarla a ella misma. (GIARDINELLI, 1999, p. 87)

Ao comparar os textos, percebe-se que a violência familiar, social e política denunciada no conto Naturaleza muerta con odio, opta por uma narrativa conduzida por uma câmera cinematográfica, mas se esmera na poesia de sua escritura. O mesmo não se pode dizer do romance Décimo Infierno, quando a brutalidade das cenas e a vulgaridade da expressão quase roubam a arte de narrar. Não fosse o personagem narrador que em lugar de dirigir as cenas com uma câmera cinematográfica, nos conduz pelos labirintos do narrar, do contar e do compreender, não seria possível perceber a voz de um autor atento e crítico à violência desses tempos de democracia recuperada. Por isso comecei essas reflexões com uma epígrafe tomada da fala do personagem narrador do romance aqui analisado e que revela que Mempo Giardinelli segue seu projeto de registrar a memória nacional, a memória de sua crise, de seu tempo, uma crise que também é da literatura, da escritura poética. Tem consciência do que escreve. Sabe que sua narrativa é grosseira, mas precisa registrar seu tempo, tanto no que se refere ao tema, quanto à linguagem. Nesse sentido, essa literatura de pós-boom ou da democracia recuperada é, de fato, uma literatura de resistência.

Permitam-me um corte nesse relato para que se tente estabelecer um paralelo entre essa proposta de leitura e o espaço da sala de aula. É possível que alguns alunos se assustem com os textos aqui selecionados. Talvez outros os considerem um barato. Quem sabe algum pai ou alguma mãe não mande um bilhetinho para a escola, pedindo contas ao professor pelo uso de texto tão depravado. O mesmo pai que talvez não perceba ou não queira perceber que seu filho ouve textos como esses, muitas vezes por dia, quer através das telenovelas, quer através dos enlatados estadunidenses. Mas textos como os de Giardinelli podem propiciar riquíssimas discussões sobre a realidade dos alunos das escolas de primeiro e segundo grau. É claro que pela complexidade dos selecionados para esse exercício, eles estariam mais apropriados aos segundos do que aos primeiros, mas o importante é fazer a ponte entre o outro e o eu, entre o estrangeiro e o nacional, entre realidade e escola.

Textos dessa natureza também podem permitir o conhecimento de uma linguagem literária mais adulta, mais atualizada e que permitam curiosidades. Não só no aspecto discursivo, na literaridade dos textos, mas na possibilidade de vê-los como produtos de um tempo pós-moderno. Propiciar essas reflexões com os alunos da escola fundamental é convidá-los a crescer, é vê-los como seres pensantes e inseridos num mundo moderno. O seu mundo. O mundo do cinema. Da televisão. Da violência. O mundo da pós-modernidade. De outra forma, a desmotivação se perpetua. O mundo gira num sentido e a escola vai noutro.

Formar professores-leitores, conforme eu anunciava no início dessa comunicação, é o papel dos cursos de formação de professores de língua estrangeira no Brasil. Só dessa forma eles farão de seus alunos, leitores atentos e críticos. E então, o discurso televisivo vai afetá-los menos. E, nesse sentido, a escola cumpre com o seu papel. A aula de língua estrangeira, e também ela, não pode ficar fora desse compromisso.

 

Referências bibliográficas:

GIARDINELLI, M. El país de las maravillas. Los argentinos en el fin del milenio. Buenos Aires: Planeta, 1998. 431 p.

________. Cuentos Completos. Buenos Aires: Seix Barral, 1999. 392 p.

________. El Décimo Infierno. Buenos Aires: Planeta, 1999. 157 p.

 

 

1 Sobre esses temas, encontram-se publicados os seguintes artigos: a) Da abordagem estruturalista à comunicativa: um esboço histórico do ensino de Espanhol LE no Brasil. In: TROUCHE e REIS (org.), Hispanismo 2000. Brasília: Embaixada da Espanha no Brasil, 2001, p.186-194; b) Revistas e Jornais Brasileiros na Aula de Espanhol Língua Estrangeira. In: GUBERMAN, Mariluci (org). Español: Un Idioma Universal. Rio de Janeiro: APEERJ, 2002, p.83-95; c) Espanhol Língua Estrangeira — um objeto fundamental. In: Caligrama. Revista de Estudos Românicos. Belo Horizonte: UFMG, vol 3, Dez.1998, p.117-127.
2 Em artigo ainda inédito, apresentado no VI Encontro Internacional da ABRALIC/2000, analisei o romance Cascabel, de Arturo Arias, cuja proposta de narratividade também se inclui nesse grupo de produções literárias de final de século que dialoga com a linguagem cinematográfica.