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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002
LÍNGUA ESPANHOLA
Os elementos de coesão na estratégia da produção de sentido
Maria Mirtis Caser
UFES (Vitória)
O objetivo deste trabalho é refletir sobre a exploração do texto literário na sala de aula e partimos do princípio de que saber uma língua pressupõe capacidades que vão além de dominar informações lingüísticas, conhecer fórmulas de cortesia usadas por uma comunidade ou ter noções estereotipadas sobre determinado povo, quer dizer, dominar uma língua estrangeira é ter "un conocimiento mínimo de las pautas de pensamiento, sentimiento y comportamiento sobreentendidas y compartidas por todos los hablantes nativos de esa lengua" (Stiman& Lerner). Por acreditar que numa produção literária as marcas da cultura têm seu melhor espaço, optamos por trabalhar o conto da escritora cubana Mirta Yáñez1, "Todos los negros tomamos café". Sabemos o risco que existe em se trabalhar com língua e literatura, quando a lingüística se ocupa da língua como sistema e a literatura se caracteriza pelas especificidades, pela ruptura com os sistemas, enfim com o que particulariza o ato enunciativo e quando, como diz Maria Zulma M. Kulikowski, o discurso literário "complejiza todas las instancias de la enunciación, precisamente por tratarse de operaciones que superan los esquemas de lo llamado "real" para transformarse em uma meta-comunicación entre seres virtuales (KULIKOWSKI, 2001, p. 407). Essa complexidade afeta as relações entre os elementos da enunciação, o espaço, tempo e pessoa, já que "enquanto um enunciado ordinário remete diretamente a contextos fisicamente perceptíveis, os textos literários constroem suas cenas enunciativas através de um jogo de relações internas ao próprio texto." (MAINGUENEAU, 1996, p.16). Sem perder de vista essas dificuldades, defendemos que a literatura pode ser uma ajuda eficaz para se mostrarem ao aprendiz as marcas da cultura de determinado povo. Queremos acreditar que a fronteira que se costuma estabelecer entre língua e literatura pode ser ultrapassada não só sem prejuízo para os aprendizes mas também com as vantagens advindas do contato com essa expressão de um povo. Além do mais, a possibilidade de ensinar-se uma língua estrangeira de forma agradável e prazerosa tem na exploração do texto literário um poderoso aliado.
O conto que escolhemos para análise faz parte do livro do mesmo nome, Todos los negros tomamos caf,é, e remete ao papel importante que o café desempenha na economia e na cultura da gente de Cuba. Podemos reportar-nos aqui ao filme de Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabio, Fresa y chocolate, no qual o personagem Diego (interpretado por Jorge Perugorría) refere-se ironicamente ao fato de os negros cubanos não tomarem chá, a bebida das pessoas cultas, segundo ele, mas apenas café. No conto encontramos temas comuns à obra de Mirta Yáñez: os problemas resultantes das diferentes classes sociais, das pequenas questões domésticas, dos conflitos entre gerações, marcadamente os que ocorrem entre mãe e filha, na luta por demarcar seus espaços.
Numa espécie de monólogo, o enunciador —una chica de quince años— reconstrói a situação de desentendimentos com a mãe, que não reconhece a necessidade que tem sua filha de ir colher café. Disposta a impedir que a moça se afaste de casa para cumprir o trabalho voluntário, a mãe usa todo tipo de chantagem emocional que tem à mão para convencer a filha a não romper a ordem que impera no mundo doméstico. A manutenção dessa ordem está a cargo das mulheres e vai depender da atitude conservadora delas: a mãe, as avós, as tias, cuja pressão se faz pela iminência da morte, das doenças, da opinião dos vizinhos, diante de uma atitude mais ousada da moça: "la presión arterial de abuelas y tias puede bajar al fondo de un abismo por un brigadista recogedor de café más o menos." (p.96). Ao lado das mulheres, a casa2 representa a proteção, como se pode notar no fragmento: "para mi madre el único sitio a salvo es mi habitación de cuatro paredes, un techo, un pavimento del tipo más corriente" (p.95), tudo dentro do esperado e convencional, não sendo admitidas as distorções ou as invencionices. O papel masculino está ligado ao exterior, logo, ao perigo, resultante do desconhecido, do novo, do que foge ao controle doméstico. A única exceção que se pode encontrar é a alusão à figura paterna na condução para o exterior, para a diversão permitida "al cine con papá". Tudo o mais está proibido: "a la calle no puede ir sola", "a jugar con otros no debe" "a mataperrear no" (p. 98)
O acesso ao mundo da ficção se dá por meio da materialidade lingüística e é esta materialidade o objeto deste trabalho, razão pela qual lidamos com a coesão e a coerência, termos de difícil definição, pois qualquer falante tem sensibilidade lingüística para avaliar o que é ou não um texto mas a certeza se esvanece no momento de se definirem os termos.
A coesão e coerência, que alguns autores preferem chamar coerência superficial e coerência profunda, constituem os padrões da textualidade e a escola os utiliza para dar subsídios aos aprendizes no que tange a produções de textos reconhecidos como tal, ainda que, como já dissemos, não se possa definir com precisão o que é um texto coerente, uma vez que "textos incoherentes en un nivel de estructura de superfície muestran un alto grado de coherencia en la estructura profunda" (LOZANO, 1999, p 23), enquanto textos que apresentam coesão podem ser falhos no que se refere à coerência, donde se pode concluir que a coesão não é necessária nem suficiente, embora seja desejável, para que um texto seja decodificado pelo receptor. Com o conto que analisamos aqui vemos que uma certa ruptura com os padrões de coesão vai dar ao texto novas possibilidades de leitura, já que do leitor se exige um alto grau de cumplicidade, chamado que é a preencher os vazios deliberadamente deixados na tessitura da narrativa: Vejamos a passagem: " Las cosas que diría mi abuela si lo supiera, si se levantara de la tumba y viera dónde quiere meterse la niña de sus ojos. Por suerte está bien muerta, que si no. Muchos cuentos se oyen por ahí, de madres irresponsables. Pero ella." (P.95). Observa-se na passagem um caráter francamente elíptico, deixando o narrador a cargo de seu interlocutor as conclusões sobre o que lhe aconteceria se a avó não estivesse bem morta, assim como deixa em suspenso todas as informações relativas ao ella.
A coesão textual é resultado de uma série de procedimentos tais como a recorrência, a substituição, a paráfrase, a elipse, os marcadores discursivos, a ordem dos elementos na frase, além dos recursos de uso especial dos tempos verbais e o uso dos pronomes, que, segundo Harweg, citado por Lozano (1999, p.23) é "el procedimiento principal, si no el único, que determina las conexiones de las frases de un texto".
O conto inicia com um pronome catafórico, cujo correferente só aparecerá no quarto parágrafo, quando se pode concluir que é da madre que se fala. Antes disso o narrador alude à madre e à mamá, sem que o leitor possa, com segurança, saber que esses substantivos são o correferente de ella:
Ella dice que yo no me sé ni lavar la ropa y ya me quiero ir. Que qué va a hacer una hija de su mamá por esos lugares. Las cosas que diría mi abuela si lo supiera, si se levantara de la tumba y viera dónde quiere meterse la niña de sus ojos. Por suerte está bien muerta, que si no. Muchos cuentos se oyen por ahí, de madres irresponsables. Pero ella.
Y así sigue renegando desde el fondo del pasillo adonde ha ido a refugiarse mi madre para que la voz se le pierda, se escurra entre los muebles (...)
Sus tiempos eran otros. Qué tenía que ir a hacer una muchacha de su casa en medio del monte.(....)
Para mi madre el único sitio a salvo es mi habitación de cuatro paredes, un techo (...) (p.95)
A escolha do pronome em detrimento de nomes parece denunciar a intenção de um certo distanciamento que a narradora imprime a seu relato. Deve-se anotar, claro, que esse caráter é fortalecido por outras estratégias lingüísticas como o uso da ironia, conforme se pode ver no fragmento:
¿Cómo puedo saber yo en agosto si la regla vendrá puntual en octubre, en diciembre, en todos los meses sucesivos? ¿Qué contratos puedo darle a mi madre para poner a buen recaudo la honrilla de la familia? Qué acuerdo tan extraño firmar para ir solamente a recogida de café. Romperse el alma trabajando cuarenta y cinco días y todavía asegurarme de tener todas las funciones en su sitio... (p.98)
Dissemos anteriormente que o texto é um monólogo, mas há de se lembrar que há sempre um ouvinte potencial ao qual se dirige o locutor. Esse caráter de interação se dá de forma especial entre o escritor/autor e seu destinatário/leitor, cuja comunicação ocorre em tempo e espaço distintos, impedindo que uma resposta imediata se concretize; entretanto, de acordo com Bakhtin, (apud MAINGUENEAU, 1996b, p. 22):
Qualquer enunciado é concebido em função de um ouvinte, isto é, de sua compreensão e de sua resposta — não a sua resposta imediata, é claro, pois não se deve interromper um orador ou um conferencista com observações pessoais; mas também em função de sua concordância, de seu desacordo ou, em outras palavras, da percepção avaliativa do ouvinte.
O status dialógico do conto aqui analisado pode observar-se mais claramente nesta interpelação que o narrador faz ao leitor: "Sabes lo que significaba ser uma niña blanquita" (p.98), dirigindo-se ao interlocutor, sem dar voz, de forma direta ou indireta, a qualquer personagem. A questão da voz merece, no entanto, uma mirada mais atenta, pois em uma narrativa entre confessional e memorialista, a "leitura deve fazer surgir todo um universo imaginário a partir de índices lacunares e pouco determinados. Só é possível se impressionar com a parcela considerável de trabalho que é deixada para o leitor; para reconstruir as cadeias anafóricas, para preencher as elipses no encadeamento das ações, identificar as personagens, assinalar os subentendidos, etc." (MAINGUENEAU, 1996b, p. 33).
Ainda buscando identificar o papel do leitor na produção do sentido, observamos as marcas da enunciação quando, em plena narrativa, irrompem a pessoa, o tempo e o espaço em que se dá comunicação:
Hay tantos peligros en el campo. Mi madre no tiene una lista a mano. Un papel que esgrimiría desde su pecho como un estandarte, retahíla de palabras conocidas donde la primera sería enfermedades. Y después quién te cuida. Cuando te enfermes de los pulmones yo soy, ella, la que va a cargar conmigo.(p. 96)
O leitor detecta claramente o momento da enunciação e a subjetividade do locutor, com a retomada do discurso da mãe pela filha, num cruzamenteo de vozes, em que se misturam a primeira e a terceira pessoas, confundindo-se o discurso direto e o indireto, chegando-se ao indireto livre. No início do período a voz é da mãe: "Cuando te enfermes de los pulmones yo soy..." e espera-se que a frase termine com "... la que va a cargar contigo"; surpreende-nos, no entanto, a interferência do narrador, que explicita que o yo é ella, la madre, que deve preocupar-se com a filha. E é a filha que assume o discurso, que passa para a 1ª pessoa.
O mesmo procedimento é utilizado nesta passagem: "Tú eres, yo soy, dice, la que salgo perdiendo" (p.98). Note-se aqui a concordância do verbo salir com o yo, e não com tu, que no caso é sujeito retomado por la que, quer dizer o sujeito que vigora já não é o da narrativa, mas o da enunciação. Esses recursos mostram a decisão da escritora em trabalhar com estruturas próprias da língua falada, que permite que as informações sejam acompanhadas de gestos, expressões faciais, enfim toda a contribuição do não-verbal na construção do sentido, corroborando a idéia de que "... a coerência não é tanto uma propriedade vinculada ao texto quanto a conseqüência das estratégias, dos procedimentos que os leitores empregam para construí-la a partir das indicações do texto. A coerência não está no texto, é legível através dele, supõe a atividade de um leitor". (MAINGUENEAU, 1996b, p. 33)
Defendemos em nosso trabalho a possibilidade de se verificar a língua no texto literário, buscando nos elementos de coesão, em especial nos pronomes, o fio que leva o leitor a penetrar com mais segurança nesse mundo "irreal", construído de palavras. Vimos, enfim, que a escolha do autor por determinadas estruturas não se deve a simples capricho e que a observação dos elementos de coesão pode fazer a diferença no tipo de leitura que se alcança.
Referências
BACHELAR, Gaston. A poética do espaço. Trad. de Antônio P. Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989. 234 p.
KULIKOWSKI, Maria Zulma La lengua en la literatura: un universo hecho de palabras. In: OLIVEIRA, E, A. V.& CASER, M. M. (org.) Universo hispánico. Vitoria, UFES. 2001. 635 p.
LOZANO, J., PEÑA-MARÍN, C., ABRIL, G. Análisis del discurso: Hacia una semiótica de la interacción textual. 6. ed. Madrid: Cátedra, 1999. 253 p.
MAINGUENEAU, Dominique. Elementos de lingüística para o discurso literário. Trad. Maria Augusta de Matos. São Paulo: Martins Fontes, 1996a. 221 p.
MAINGUENEAU, Dominique. Pragmática para o discurso literário. Trad. Marisa Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes. 1996b. 205 p.
YÁNEZ, Mirta. Todos los negros tomamos café. La Habana, Ed. Arte y Literatura, 1976. 113 p.
SITMAN& LERNER. La literatura del mundo hispanohablante en el aula de E/LE: ¿un lugar de encuentro o desencuentro? Disponível em Http://www.ucmes.info.especulo/numero12
1 Mirta Yáñez nasceu em La Habana em 1947. Escreve poesia, narrativa, artigos para jornais e revista e é ensaísta reconhecida em seu país e fora dele. Trabalha como professora na Universidad de La Habana, e é pesquisadora do Departamento de Literaturas Hispânicas. Destacamos na sua obra os livros de contos Todos los negros tomamos café (1976) La Habana es una ciudad bien grande (1981) El diablo son las cosas (1988) Narraciones desordenadas e incompletas (1997)
2 Sobre o espaço da casa como proteção e único lugar possível dentro de um mundo de incertezas, veja-se Bachelard (1989), para quem a casa é o nosso canto do mundo, o primeiro universo, um verdadeiro cosmos.