2, v.1Sobre las formas de leer: la adquisición - aprendizaje de E/LE y la relación entre sistemas ortográfico y fonológicoTraduzindo formas de tratamento do espanhol peninsular ao português de São Paulo: uma visão semiótica e ideológica índice de autoresíndice de materiabúsqueda de trabajos
Home Pagelista alfabética de eventos  





An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002

 

LÍNGUA ESPANHOLA

 

Heterogeneidade e enunciação informativa: um Mercosul dos jornais

 

 

Vera Lucia de Albuquerque Sant' Anna; Luise Campos da Silva; Paulo de Carvalho Junior; Raphaela Dexheimer Mokodsi; Rosane Manfrinato de Medeiros

UERJ (Rio de Janeiro)

 

 

1. Introdução

Este trabalho participa de um conjunto de reflexões que busca ampliar o perfil do lingüista como cientista social, em especial no que se refere a análises que se voltam para o conhecimento do seu entorno sócio-histórico. Nesse sentido, os estudos sobre as relações entre linguagem e trabalho têm demonstrado sua relevância, a partir de diferentes práticas de análise, entre as quais ressaltamos as que observam a linguagem como co-construtora de conceitos de/sobre o trabalho1. Tal construção é aqui observada a partir da visão de linguagem como fenômeno dialógico (Bakhtin e seu círculo, 1995), e dos estudos em Análise do discurso de base enunciativa, de orientação francesa.

Nosso estudo, portanto, participa da vertente que observa os sentidos atribuídos a trabalho num certo contexto discursivo e este artigo traz uma parte das reflexões desenvolvidas no projeto Estudo discursivo do mundo do trabalho em notícias sobre o Mercosul, que tem como objetivo desenvolver uma análise discursiva voltada para problemas relacionados ao processo de integração regional.

Para desenvolver o estudo, definimos observar a notícia, um dos gêneros em que se atualiza o discurso jornalístico, que circula fora dos ambientes restritos da política e da economia, e que propõe que criemos a expectativa de estar lidando com a "objetividade informativa". A discussão teórico-metodológica sobre a notícia como um gênero que se situa na tensão informar/opinar, desenvolvida por Sant'Anna (2000), aponta como reveladoras dessa tensão manifestações da heterogeneidade enunciativa, em particular as identificáveis por meio das marcas do discurso relatado (Mainguenau, 2002; Authier-Revuz, 1998; Sant'Anna, 2000).

As notícias que compõem o corpus da pesquisa foram recolhidas por meio eletrônico, entre setembro e outubro de 2000 e 2001, em jornais de países que compõem o Mercosul. Para esta apresentação foram selecionadas duas por jornal/ano, com a finalidade de estabelecer relações entre as diferentes vozes trazidas pelo enunciador-jornalista e o espaço discursivo que ocupa o trabalho em discursos relatados pela imprensa como construtores de uma integração regional no marco do Mercosul. Os jornais e as notícias selecionadas são:

 

 

2. O espaço discursivo: uma construção organizadora de sentidos

2.1- Estabelecendo espaços a partir da atribuição do discurso relatado (DR)

Antes de tratar da construção do espaço discursivo, faz-se necessário explicitar a metodologia de identificação das vozes trazidas pelo enunciador-jornalista para sua enunciação, ainda que não seja esse o foco deste artigo. Observadas as várias estratégias discursivas de inclusão de outras vozes, a partir do entendimento do DR como uma categoria ampla, verificamos que havia a possibilidade de organizar-se um continuum do conjunto das incidências.2 Portanto, essa escala considera uma progressão de enunciações que se mostram mais ou menos claramente como DR. Desse modo, registramos o seguinte continuum:

 

 

Observamos, ainda, que: (a) quanto mais explícita a presença do outro como responsável pelo citado (itens 1, 2, 5 e certas ocorrências de 3, 4 e 6), menor é a responsabilidade do citante pelo conteúdo do citado; (b) os verbos introdutores, ou as formas nominalizadas da ação, têm papel relevante na identificação da relação citante/citado, conforme nossa análise demonstrou; (c) os tipos de ocorrências apresentadas nos itens 4, 5, 6 e 7 têm pontos de aproximação que dificultam o estabelecimento de fronteiras muito claras.

Neste artigo, então, tratamos dos passos de pesquisa posteriores a esse primeiro momento, relacionados à identificação dos vários processos de ocorrências de DR.

2.2 - Os espaços de onde só alguns falam

Para dar prosseguimento às análises é preciso fazer uma distinção quanto a dois planos de espaço discursivo. Num primeiro plano, está o espaço discursivo entendido como o "aqui" instituído pelas marcas embreantes de uma certa enunciação. No caso de uma notícia, corresponderia a referências existentes nos textos que localizam sua base – por exemplo, "daqui saiu para o encontro com o ministro", sendo esse "daqui" o restaurante onde almoçava certa pessoa e também se encontrava o enunciador-jornalista. Podemos mapear esses embreantes e estabelecer uma certa construção de espaço para as informações contidas na notícia. Ao lado desse plano da dêixis, há também outra possibilidade de compor a topografia de uma cenografia discursiva (Maingueneau, 1989; 2001). Num segundo plano está o espaço instituído pela enunciação em relação àquilo que ela trata como seu objeto de discurso.3 Ou seja, cada notícia analisada mostrou-nos a existência de espaços marcados por um embate de forças, caracterizados a partir da distribuição das vozes trazidas como representativas desses espaços. Assim, a enunciação das notícias reelabora uma divisão de poderes existente nos vários espaços da empiria, inaugurando uma forma peculiar de compreensão do espaço discursivo, cabendo a essa enunciação a responsabilidade de instaurar topografias não coincidentes para os vários planos que vêm a compor a integração no Mercosul.

Desse modo, o primeiro passo foi levantar as ocorrências de DR e identificar a quem o enunciador-jornalista dá voz em sua enunciação, em todas as notícias. A partir desse levantamento inicial, verificamos quem/quais são as fontes que a enunciação traz como voz autorizada. A seguir, observamos uma certa hierarquia de espaços, a partir da identificação dessas vozes. Em seguida, foi possível verificar que as unidades da integração4 no marco do Mercosul, segundo o ponto de vista da enunciação dos jornais, estão dividas entre vários níveis hierárquicos, caracterizando uma distribuição de poderes que não contempla necessariamente a todas as unidades que compõem o processo de integração do bloco.

Tendo em vista a natureza extensiva da análise efetuada, optamos por apontar alguns detalhes mais relevantes para o objetivo deste artigo. Em primeiro lugar, expomos a incidência das marcas de DR de cada notícia; em seguida, resumimos a relação entre as marcas de DR e a atribuição a um enunciador. Uma vez apresentado esse conjunto, comentamos a hierarquia dos espaços discursivos e sua relação com a presença/ausência de referências a mundo do trabalho, no processo da integração regional.

 

 

Ainda que nossa pesquisa não seja de caráter quantitativo, observar a incidência dos recursos discursivos utilizados pelo enunciador-jornalista para trazer outras enunciações aponta para reflexões importantes: a grande incidência do discurso indireto (41) – considerando que muitas das ocorrências de ilhas de discurso direto estão no seu interior –, e do discurso narrativizado (33) – com atribuição explícita ou não a uma fonte – aproximam o texto noticioso do efeito de sentido de informação objetiva, uma vez que são DRs que assumem sua reformulação como forma neutra de apresentar o que foi dito em outra situação enunciativa. Quanto às ocorrências de discurso direto (31), estas participam da configuração do gênero que se propõe informativo, porém com outras funções discursivas, aproximando-se mais do efeito de verdade.

Em seguida, a partir da observação da estratégia de inclusão da voz do outro na notícia e a relação dessa voz com o mundo empírico no qual se situa, foi possível identificar os espaços discursivos atribuídos aos enunciadores citados trazidos pelo enunciador-jornalista para compor sua enunciação. A primeira parte dessa análise, apresentada de forma resumida, aponta para citados que podem ser agrupados em três grande blocos: (1) aqueles que guardam relações com os discursos governamentais dos países integrantes do bloco (presidentes, chanceleres, embaixadores, ministros, órgão oficiais, como o Itamaraty); (2) aqueles que trazem vozes de níveis internacionais que de alguma forma atuam sobre o bloco (europeus, União Européia, governo dos EUA); (3) aqueles que falam do lugar das empresas (no caso deste trabalho, aparecem somente vozes que se identificam com empresas paraguaias e argentinas). Constata-se, então, uma distribuição do espaço discursivo das notícias entre vozes que respondem pelas políticas de integração: o alto escalão governamental de cada país e o segmento dos empresários, acompanhados de perto do nível internacional.

Antes, porém, de prosseguir com nosso estudo da enunciação da notícia, é importante trazer uma breve reflexão do campo da Economia que nos auxilia a elucidar alguns conceitos relevantes para o andamento da análise. O economista Perroux (1991) afirma que a integração não se dá de modo equilibrado entre todos os participantes, pois as unidades do processo têm poder de ação umas sobre as outras, provocando a posição dominante de uma ou algumas delas. Estas, como poderosos integrantes, podem ter grandes vantagens sobre zonas integradas, sem que a recíproca seja verdadeira. Logo, os resultados de um processo de integração não são iguais para todos. Porém, a desigualdade entre os recursos das nações não pode ser considerada como um determinismo patológico em relação aos papéis das nações, pois se assim fosse, seria uma ilusão de coincidência entre espaço político e espaço econômico. Some-se a isso a afirmação do economista Di Ruzza (1998), que considera que os espaços intermediários não se configuram nem como nacionais, nem como mundiais, pois têm lógica distinta, como é o caso do Mercosul, e isso aponta para várias dificuldades, entre elas a de não se identificarem facilmente os atores sociais representativos para a tomada de decisões.

As contradições apontadas pelos economistas sobre o processo de integração vão adquirir características peculiares conforme os grupos humanos envolvidos. Em nosso estudo, tratamos dos países que compõem o Mercosul, o que implica reconhecer nossas peculiaridades. Os espaço discursivos, então, são ocupados nas notícias analisadas de forma desequilibrada, como podemos constatar nas seguintes observações:

(a) o espaço discursivo do poder federal é identificado em todas as notícias, porém não há equilíbrio na distribuição desse espaço entre as várias vozes identificadas –sobressaindo as marcas de DR que revelam DD e DI, às vezes com ilhas de DD;
(b) o espaço discursivo das empresas é marcado pela atribuição ao dito por empresários paraguaios e argentinos, nos respectivos jornais, por meio do DI e DD;
(c) o espaço discursivo das fontes não identificadas é o do rumor, da especulação, do dito que não se sabe (ou não se quer) a quem atribuir, ressaltando o DN;
(d) o espaço discursivo das forças externas ao Mercosul se faz presente por meio das vozes atribuídas aos norte-americanos e aos europeus, como marcas de um espaço empírico superior ao da integração e que o subordina, que aparecem em DI e DN.

Gostaríamos de ressaltar que nossas análises apontam para uma das contradições mais fortes na atribuição dos espaços discursivos que definem sentidos ao Mercosul: a ausência total ou uma participação débil de diferentes segmentos das sociedades, de cada um dos países e na relação entre estes, no que concerne às esferas de decisão e poder que constituem o Mercosul. Esse perfil de organização do mercado regional caracteriza-se, então, por esse "déficit social e democrático"5.

Outra questão relevante na atribuição do dito que participa da definição dos espaços discursivos está no papel dos verbos dicendi utilizados pelo enunciador-jornalista para marcar a entrada dos DRs. O levantamento dos verbos nos faz verificar que as vozes atribuídas aos governos têm seus espaços caracterizados como o das ações que começam a delinear posturas, informam, enumeram, assinalam, acrescentam, destacam, asseguram, expressam seu convencimento, reconhecem problemas, concordam.

O espaço discursivo de vozes que estão fora do âmbito do Mercosul, mas o contêm, é caracterizado por verbos dicendi do campo do dizer o que causa dano, propor ações. Já os verbos dicendi atribuídos ao espaço discursivo das empresas estão no campo do criticar, advertir, sugerir regras, lamentar decisões, manifestar problemas. Esse espaço presente na enunciação dos jornais ABC Color e Clarín traz somente vozes de empresas de seus próprios países e, em ambos, o espaço é marcado pela decisão. Às fontes não identificadas são atribuídos ditos do campo do dizer, do fazer supor, do questionar, do perceber.

A partir dessas reflexões, percebemos que a enunciação dos jornais constrói uma topografia discursiva em planos espaciais diferenciados: o espaço do jornal destinado às notícias desdobra-se em espaço discursivo, que institui uma topografia específica de um Mercosul atravessado por níveis de conflitos e de poderes em relação à integração. Essa observação, somada às análises discursivas do DR, nos auxiliam a apontar a imprensa como um dos agentes da integração, pois cabe-lhe um papel de construtora de uma imagem de Mercosul que mobiliza algumas unidades e não outras na organização do mundo dos discursos, aqui observada por meio das notícias. Constroem-se acordos, embates, conciliações, enfrentamentos, e, acima de tudo, são trazidas vozes sobre as quais se lançam luzes, enquanto que sobre outras, lançam-se sombras. Ao não trazer algumas vozes ao nível da discursividade, apagam-se aqueles que deveriam participar do processo de integração, aumentando o déficit social e democrático de todos os países que compõem o mercado regional. É nessa ordem das sombras que está o mundo do trabalho: nega-se, pelo silêncio, esse mundo e, ao mesmo tempo, obriga-se a perceber sua existência pelo fato mesmo de negá-la.

 

3. Conclusões

Compreendendo que o espaço empírico é um conjunto de forças que se movimenta segundo determinadas circunstâncias, percebemos que levantar esses traços da empiria, na verdade, tem a função de mostrar que o espaço discursivo que identificamos na imprensa é ainda mais complexo na sua constituição do que podem prever teorias econômicas e/ou políticas. Assim, podemos verificar que o espaço Mercosul é uma criação dos discursos mobilizados e postos em circulação que o incluem.

Entretanto, observamos que nesses espaços não há vozes que referenciem o mundo do trabalho: fica patente a sua ausência, como se dele não fizesse parte. A inexistência da designação não significa a inexistência da referência. É necessário, portanto, constatar que a presença do mundo do trabalho está silenciada nas notícias observadas. Mas, como só se apaga o que existe, pois não se pode deixar de mencionar o que não tem existência, acreditamos que se pode identificar o espaço que corresponde ao mundo do trabalho: fazer-se visível, sob todos os aspectos.

Procuramos, ao longo do artigo, demonstrar que estudos discursivos, em particular os voltados para as relações entre linguagem e trabalho, atribuem ao lingüista um lugar específico nas pesquisas que buscam compreender a ordem social e histórica da qual participa. A esse respeito, não há como negar o lugar privilegiado que ocupam os discursos da mídia na atualidade: é lugar de práticas discursivas que remetem às alianças e aos embates vividos pelas sociedades.

 

Bibliografia

AUTHIER-REVUZ, J. (1998) Palavras incertas: as não coincidências do dizer. Campinas, Ed. Unicamp.

BAKHTIN, M.; VOLOCHINOV (1995) Marxismo e filosofia da linguagem. 7 ed. São Paulo, Hucitec.

BIZZOZERO, L.; GRANDI, J. (1997) "Vers une societé civile du Mercosur. Anciens et nouveaux acteurs". In: Cahiers des Amériques Latines. Université Sorbonne Nouvelle, Paris III, nº 24, p. 53-72

DI RUZZA, R. (1998) "La fin du travail el la mondialization: idéologie et realité social". Compte-rendu de l'ouvrage de Denis Collin: "Syndicalism et societé". In: Trade unionism and society. Paris, ISERES/CGT, vol 1, nº 1, p.199-205.

MAINGUENEAU, D. (1989). Novas tendências em análise do discurso. Campinas, SP, Pontes/Ed. da Unicamp.

_____ (2001). Análise de textos de comunicação. São Paulo, Cortez.

PERROUX, François (1991). L'Economie du XXe siècle. Grenoble, Presses Universitaires de Grenoble. (1ère édition 1961, 3ème édition augmentée 1969).

ROCHA, Décio O. S. da (1997). Produção de subjetividade: para uma cartografia dos discursos das publicações sobre vídeo-jogos. Tese de Doutorado, LAEL - PUC/SP.

SANT'ANNA, V.L.A. (2000). Mercosul em notícia: uma abordagem discursiva do mundo do trabalho. Tese de Doutorado, LAEL - PUC/SP.

SCHWARTZ, Y. (org.) (1997). Reconnaissances du travail. Pour une approche ergologique Paris, Presses Universitaires de France.

 

 

1 Como integrantes do grupo Atelier - PUC/SP e UERJ - acompanhamos e participamos de pesquisas que vêm sendo desenvolvidas por grupos franceses e brasileiros, que se dedicam a esse enfoque e às relações entre linguagem e atividade de trabalho, numa determinada situação específica.
2 O processo completo de estudo que nos fez chegar a esse continuum é tema de outro artigo, intitulado "Discurso relatado como estratégia organizadora da notícia", a ser publicado.
3 Rocha (1997: 200-1) aponta para a necessidade de "superar as evidências que, por exemplo, nos fazem limitar a investigação da topografia tão-somente a indicações da ordem espacial, isto é, a sintagmas que teriam diretamente alguma afinidade com a idéia de 'localização no espaço'"; como resultado disso, encaminha sua análise para mostrar como elementos de uma locução discursiva também são "índices de construção de um espaço".
4 O conceito de unidades da integração, podendo ser unidades ativas ou unidades passivas, é do economista Perroux (1991).
5 Bizzozero& Grandi (1997).