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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002

 

Traduzindo formas de tratamento do espanhol peninsular ao português de São Paulo: uma visão semiótica e ideológica

 

 

Heloísa Pezza Cintrão (FFLCH-USP)

 

 

Formas de tratamento em tradução, discurso e gêneros de discurso

As reflexões feitas neste trabalho têm como fator desencadeador um caso pontual de tradução, mas irão caminhando ao final para problematizações que saem do âmbito da tradução e que têm em vista as questões de como as formas de tratamento produzem os variados e contraditórios sentidos que produzem e que ferramentas da semiótica e da análise de discurso poderiam ajudar a pensar sobre suas cargas valorativas e ideológicas.

O caso concreto que nos serve de ponto de partida é uma experiência de tradução, do espanhol peninsular para o português de São Paulo, de um conjunto de quatro livros didáticos de ensino de religião católica, dirigidos a alunos das quatro primeiras séries do ensino fundamental brasileiro. Os textos a serem traduzidos estavam estruturados de modo a formar três blocos de gêneros de discurso que condicionavam escolhas diferentes de equivalências ao traduzir as formas de tratamento usadas no texto de partida: 1) fragmentos dirigidos aos alunos/leitores em linguagem coloquial, como, por exemplo, convites a reflexões sobre certas questões, instruções para exercícios e jogos; anedotas do dia-a-dia; 2) transcrições de fragmentos bíblicos; 3) fórmulas rituais (entre elas vão nos interessar especialmente as orações católicas, mas havia também alguns trechos rituais recitados na celebração da missa católica, fórmulas rituais cristalizadas recitadas em cerimônias específicas como batismos ou casamentos, dentro dessa religião).

Ao traduzir essas partes provenientes de diferentes gêneros de discurso, acontecia que aquilo que no texto de partida, em espanhol peninsular, era sempre um poderia, segundo cada um dos três blocos de gêneros de discurso envolvidos naqueles livros, equivaler, no português do público alvo, a um você (linguagem coloquial), a um tu (trechos bíblicos), ou ainda a um vós (com valor de singular, nas orações católicas). O que no texto peninsular era sempre um vosotros se desdobrava no português em um vocês (linguagem coloquial) ou em um vós (com valor de plural, nos textos bíblicos e em fórmulas rituais).

Isto levava a levantar algumas questões referentes à tradução. Em primeiro lugar, deixava clara a impossibilidade de se fazer, para o português de São Paulo, a generalização de que “não usamos o tu”, já que algo no processo mental de uma tradutora de São Paulo fazia com que ela reconhecesse a forma tu como a usual e adequada em certo tipo de texto dentro de sua própria variante, e fazia com que não estabelecesse uma equivalência tú-você , nem vosotros-vocês, quando a tradução feita era a de um texto bíblico. Mais ainda: algo, na competência lingüística de um tradutor que tivesse que levar a cabo essa tradução concreta, se algum dia tivesse tido contato com o catolicismo, iria levá-lo a traduzir um do espanhol peninsular por um vós, em português, no pai-nosso, e na ave-maria. Um falante do português de São Paulo não só usa tanto o você quanto o tu, mas é capaz de usar também o vós dirigido a uma só pessoa, em certos casos bem pontuais. É o caso do uso que se faria em filmes estrangeiros dublados cuja ação estivesse ambientada em antigos reinos e cortes, quando alguém estivesse se dirigindo ao rei. Os três tipos de tratamento (você, tu, vós), em um uso condicionado por certos gêneros de discurso, fazem parte conjuntamente do sistema e da competência lingüística de falantes de português de São Paulo.

Fanjul, em oficina apresentada no Congreso de Profesores de Español, em 2001 (Fortaleza-Ceará), levantava uma questão semelhante sobre a (im)possibilidade da generalização que se faz normalmente de que na variante rio-platense do espanhol não se usa o , mas sim o vos, e descrevia o uso de por argentinos voseantes em certos gêneros de discurso, como por exemplo, o uso de que as crianças fazem nos jogos infantis de faz-de-conta, ou o que aparece nas lápides de sepulturas e em certos poemas.

Hurtado Albir (1999, p. 31) diz, sobre a tradução, que:

Toda traducción supone el desarrollo, por parte de un individuo, de un proceso mental que le permite efectuar la transferencia desde el texto original hasta la producción de un texto de llegada. Ese proceso mental consiste, en lo esencial, en comprender el sentido que transmite un texto para luego reformularlo con los medios de otra lengua.

Nosso caso envolvendo diferentes opções de equivalência, na língua de chegada, para uma só forma de tratamento, em diferentes fragmentos do texto partida, mostra como, nesse processo mental que tem lugar na tradução, intervém algo que poderíamos chamar de competência de reconhecimento de gêneros de discurso (dentro do processo mental de compreensão) e competência de transposição de gêneros de discursos (dentro do processo de reformulação do texto de partida no outro idioma), esta última guiando a seleção dos elementos lingüísticos, como léxico, estruturas sintáticas, mecanismos de coesão, de acordo com esses gêneros.

Tomamos aqui a noção de gêneros de discurso conforme aparece em Maingueneau (2000, p.73), que os formula como “os dispositivos de comunicação sócio-historicamente definidos: os fatos diversos, o editorial, a consulta médica, o interrogatório policial, os pequenos anúncios, a conferência universitária, o relatório de estágio, etc.”. O mesmo autor observa que a oração religiosa é um dos gêneros de discurso mais estáveis, o que explicaria, em parte, que o catolicismo mantenha, nas suas duas principais orações, um tratamento arcaico dentro do português brasileiro: o vós dirigido a uma só pessoa, como um plural majestático, que não se mantém nessa língua fora de uns poucos gêneros de discurso muito específicos. Nosso caso também leva a considerar quanto os mecanismos lingüísticos dos gêneros de discurso podem variar de um idioma a outro, e mesmo de uma variante regional de um idioma a outra.

Por fim, este caso concreto de tradução, ao conduzir à inferência de uma competência de reconhecimento de gêneros de discurso e de outra de transposição dos mecanismos de um gênero específico de um idioma a outro, como parte importante da competência tradutora, indica a dificuldade de estabelecer equivalências bilíngües fora de contexto, e a necessidade de abordar a tradução como um processo que se dá no âmbito do discurso (ou do texto). Como afirma Hurtado Albir: “se traducen textos, la traducción es una operación entre textos (y no entre lenguas), y los textos funcionan diferentemente en cada lengua y cultura”, e ainda: “los textos se distinguen por sus funciones, pero también por sus convenciones y por la actitud ideológica que transmiten”.

As formas de tratamento (ou mais amplamente: as fórmulas de tratamento) parecem ser um lugar do sistema lingüístico que tende a um alto grau de variação de uso segundo gêneros de discurso, assim como a uma alta complexidade, que envolve, por exemplo, as variações diatópicas, tanto no português quanto no espanhol, o que leva a que o tradutor tenha que saber, em grande parte das vezes, de onde provém o texto, para interpretar os efeitos de sentido do uso de uma forma de tratamento num texto preciso, e tenha que saber quem são seus destinatários, para tomar certas decisões de transposição ao idioma de chegada, dentro do par português-espanhol. Elas também estão sujeitas a grandes variações no tempo: pensemos no caso de um tradutor que recebesse uma telenovela brasileira como A padroeira, num país de fala espanhola, e que tivesse que decidir como traduzir o vossa mercê nela utilizado, ou que recebesse, para traduzir, uma telenovela de época que envolvesse interações comunicativas entre senhores e escravos no Brasil escravagista, de forma a ter que decidir como traduzir o tratamento sinhazinha ou sinhá, ou que precisasse encontrar uma equivalência para diferenciar os matizes de senhor ou seu (como o de seu Antônio). Ele precisaria de um nível refinado de competência leitora e interpretativa e de um nível refinado de saberes sobre o idioma português em relação com a cultura brasileira, ao mesmo tempo que de uma boa competência cultural-pragmático-discursiva para saber se os usos de formalidade e informalidade variariam e onde variariam, entre seu idioma materno e o estrangeiro.

Mesmo em casos não permeados por problemas de gênero de discurso distanciados dos da fala do dia a dia e afunilando a questão das variantes para o espanhol peninsular e para o português de São Paulo, parece não ser simples determinar uma equivalência fixa nos moldes tú=você e usted=o senhor/a senhora. Pode não ser possível, em muitos casos, fixar automaticamente tais tipos de equivalências. Penso, por exemplo, na informação de que na Espanha o seria hoje a forma mais generalizada para o tratamento de filho dirigido aos pais, enquanto, no Brasil, pelo menos no estado de São Paulo, há ainda uma forte tendência ao uso formal nesse caso (o senhor/a senhora), que é, por outro lado, um uso fortemente submetido a variações regionais (interior-capital), de classe social e de opção individual (de idioleto), às vezes com oscilações muito rápidas de geração a geração, às vezes mudando ao longo do tempo, no uso lingüístico de uma mesma pessoa. Valeria a pena aqui lançar mão de alguns exemplos pessoais bastante ilustrativos. Na minha família, trato meus pais de o senhor, a senhora, enquanto alguns de meus irmãos os tratam de você (tanto entre os mais velhos quanto entre os mais novos). Quanto a variações regionais ou de classe social dessas escolhas, tenho primos da minha idade, no Rio de Janeiro, que tratam os pais de você, e que podem ter influenciado uma mudança de opção por parte de alguns de meus irmãos (até certa idade, todos tratávamos os meus pais de o senhor/a senhora). Ainda um mesmo falante pode ter variações de uso muito especiais, que não esperaríamos que convivessem em um mesmo indivíduo, mas atribuiríamos a falantes de diferentes regiões: meu pai, cujo pai era português, sempre usou tu, com suas formas verbais e pronominais de segunda, para conversar com seus pais e seus irmãos, enquanto com esposa e filhos, e em outras relações interpessoais informais, sempre usou você. Também todos os falantes do português sabemos como, em muitos casos, a opção por o senhor/ a senhora não se dirige a um efeito de respeito reverente, mas a buscar um distanciamento com respeito ao interlocutor, distanciamento segundo o qual o falante, muitas vezes, está se colocando em uma posição de superioridade em relação a seu interlocutor (um desconhecido inconveniente ou com o qual estamos discutindo, um empregado, um subordinado, uma mãe dando uma bronca num filho).

 

Efeitos de sentido das formas de tratamento, valores e ideologias

O caso do tratamento dirigido aos pais se mostra especialmente interessante, porque parece nos dar uma primeira pista para as instabilidades que as formas de tratamento têm dentro do português e do espanhol, e para as discrepâncias que possam ocorrer na transposição de uma dessas línguas à outra, nas diferentes relações interpessoais ou nos diferentes gêneros de discurso. A relação com os pais mistura, de forma complexa, afeto e proximidade com respeito hierárquico socialmente institucionalizado, que nesse caso específico convivem numa mesma relação interpessoal, mas que potencialmente gerariam escolhas opostas de formas de tratamento (a proximidade afetiva levaria a uma opção por você e o respeito hierárquico levaria a uma opção por o senhor/a senhora). Uma tensão subliminar semelhante parece pairar muito freqüentemente na opção por uma ou outra forma de tratamento. Uma opção por o senhor/a senhora ou por usted pode gerar recepções muito diferentes, por parte do interlocutor, quanto ao que possam ter de positivo ou negativo, num certo sistema de valores: respeito e reverência autênticos (e no caso do respeito legítimo, é difícil descartar o afeto), a estigmatização do outro como “velho” numa sociedade marcada pela valorização obsessiva do novo e do jovem, uma atitude servil de inferioridade frente ao outro ou de aceitação conservadora de certas hierarquias sociais cristalizadas (contrárias a ideais de igualdade social), um desejo de não estabelecer muita proximidade com o outro. Uma opção por você, por (ou por vos, que representaria um caso ainda mais complexo, segundo a região) pode provocar o efeito de solidariedade ou proximidade afetiva, mas também de irreverência e desrespeito, de uma certa insolência e arrogância.

Quando falamos das formas de tratamento, é impossível eludir a questão de quanto os usos lingüísticos são permeados por sistemas de valores, em última instância pela ideologia e pela história. Em seu livro Linguagem e Ideologia, Fiorin (2000, p. 57) tem um capítulo dedicado à “igualdade burguesa”, em que transcreve um fragmento de uma circular ao serviço público, na França revolucionária de 1794. Em nome da igualdade, da liberdade e da naturalidade das relações sociais, o texto prescreve que, em sua linguagem, o funcionário público:

[...] deve desfazer-se da roupagem antiga e abandonar a polidez forçada, tão inconsistente com a postura de homens livres, e que é uma relíquia do tempo em que alguns homens eram ministros e os outros seus escravos. [...] As maneira simples e naturais devem substituir a dignidade artificial que freqüentemente constituía a única virtude de um chefe de departamento ou outro funcionário graduado. [...] A qualidade essencial do Homem da Natureza consiste em ficar de pé. [O estilo de linguagem deve ser] isento de expressões de servilismo, de formas obsequiosas, indiretas e pedantes, ou de qualquer insinuação no sentido de que existe autoridade superior à razão e à ordem estabelecida pelas leis” [os destaques são meus].

O que antes era visto como “polidez” nos usos lingüísticos, está, na França daquele momento, passando a ser visto como um indigno formalismo servil. O autor do texto deixa clara a tensão entre “igualdade vs. hierarquia” refletida na linguagem usada na relação de trabalho entre superiores e subalternos. Em seu discurso, a valorização positiva ou eufórica da igualdade colore de visão negativa o reconhecimento, marcado lingüisticamente, da superioridade do outro. Ele aparece como algo indigno, servil, pedante, autodepreciativo, que usa um homem curvado ou rastejante, que não é capaz de ficar em pé diante do outro, como mandaria sua dignidade natural. Não é difícil ver que os reflexos dessa tensão social tendem a ser especialmente fortes sobre o uso das formas de tratamento, e isso pode explicar boa parte da complexidade e da instabilidade de seus usos: nas formas de tratamento, marcam-se inevitavelmente os valores que, numa sociedade, estabelecem as hierarquizações, inclusive as de classes, e por isso elas carregam potencialmente, talvez mais que qualquer outra parte do sistema lingüístico, a carga dos conflitos de classes e interesses, além de carregar potencialmente várias tensões afetivas. Misturam de maneira complexa a estrutura social estabelecida com as opções individuais de resposta a essa estrutura.

Fiorin (2000, p. 15) ainda indica que:

É possível que o surgimento de um número muito grande de pronomes de tratamento, como, por exemplo, Vossa Excelência, Vossa Majestade, Vossa Alteza, no período do absolutismo monárquico, esteja ligado ao aparecimento de uma sociedade rigorosamente hierarquizada e governada por um protocolo muito rígido.

Se é verdadeira a observação tantas vezes feita de que a Espanha, neste momento, parece tender a preferir a informalidade no tratamento (diz-se que um vendedor que nos atende numa loja, um desconhecido na rua, um aluno universitário falando com seu professor, hoje, tende a usar tú, e não usted), enquanto em São Paulo se mantém mais do que lá a tendência à formalidade nestas mesmas situações, pode levar a uma hipótese interpretativa de que temos hoje, na Espanha, uma sociedade menos marcada por valores hierárquicos, por protocolos, por uma história de hierarquia servil, e mais marcada por desejos de igualdade entre seus membros, mas, ao mesmo tempo, pode levar a interpretações de que temos hoje, lá, um povo mais marcado por valores capitalistas de dignificação do indivíduo prevalecendo sobre os de coesão social, talvez por uma atitude de individualismo mais neutralizador da reverência, com menos cortesia no tratamento dedicado ao outro. Seriam interpretações/valorizações quase opostas, mas sobre ambas se poderia construir uma argumentação convincente, porque as marcas das hierarquias na linguagem implicam sistemas de valores, às vezes vários sistemas de valores convivendo paralelamente em relações de conflito, e provocam sentimentos ambíguos e conflitivos, social e psicologicamente, oscilando permanentemente entre o respeito que devemos a nós mesmos e o que devemos ao outro e à estrutura social, em um equilíbrio que não é fácil, que parece ser sempre muito delicado. Por isso também parece não ser tão simples e isento de subjetividade interpretar ideologicamente, via teorias do discurso, as tendências de uso de formalidade ou informalidade num sistema lingüístico determinado.

 

Efeitos de sentido das formas de tratamento e o nível fundamental da teoria semiótica de geração dos sentidos

Neste ponto, há alguns postulados da análise de discurso de linha semiótica que podem ser interessantes para pensar a instabilidade dos efeitos de sentido gerados pelas formas de tratamento. Começamos dizendo que as formas de tratamento, da perspectiva das equivalências necessárias à tradução, só podiam ser abordadas do ponto de vista do discurso, e não do ponto de vista do sistema lingüístico. Também a teoria semiótica se propõe a funcionar como ferramenta para o estudo de discursos concretos. O que vamos sugerir aqui é que a semiótica, para dar conta de discursos concretos, postula um sistema de produção de significados que tem um grau de abstração semelhante à abordagem da língua como sistema (em oposição aos usos individuais, fala, discursos, textos). Nesse sentido, parece ser possível procurar estabelecer relações entre as formas de tratamento, segundo seus potenciais de produção de sentido no sistema lingüístico, e os esquemas abstratos de geração dos sentidos propostos pela semiótica discursiva.

A teoria semiótica greimasiana postula três níveis de geração de sentidos: o fundamental, o narrativo e o discursivo. Segundo essa divisão em três níveis, as categorias de pessoa, e portanto também as formas de tratamento, só aparecem como geradoras de efeitos de sentido no nível discursivo, que é também o nível no qual aparecem as marcas da ideologia. Mas as formas de tratamento parecem ter sentidos potenciais contidos nelas mesmas, que permitiriam projetar sobre elas algumas questões do nível fundamental de geração de sentido propostas pela semiótica.

No nível fundamental, os sentidos são gerados de forma condensada e binária, como oposições dentro de uma mesma categoria. Por exemplo, um determinado texto pode ter seu sentido sendo gerado, no nível fundamental, pela oposição liberdade-opressão. Quanto aos sentidos que subjazem às formas de tratamento, poderíamos dizer que não há uma, mas uma série de oposições binárias capazes de gerar sentidos para a opção entre tú(vos)-usted ou entre você-o senhor/a senhora: formalidade-informalidade, distanciamento-solidariedade, hierarquia-igualdade, poder-submissão, pouca relação-relação de intimidade, indiferença-afeto, e essa pluralidade latente é um dos fatores que gera conflitos potenciais nessa escolha. Por outro lado, a semiótica postula que, no nível fundamental, cada um dos elementos das oposições geradoras de sentido sofre projeções valorativas, que ao mesmo tempo são afetivas. A semiótica fala em valorização positiva ou negativa (do pólo “hierarquia”, por exemplo), ou em euforia e disforia. O elemento eufórico e disfórico numa oposição como formalidade-informalidade pode sofrer variações de acordo com diferentes tipos de sistemas de valores, como já vimos no fragmento da época da Revolução Francesa. Essas noções da semiótica pareceriam produtivas para abordar as questões de como as formas de tratamento se vinculam, já potencialmente, no nível do sistema lingüístico, a sistemas de valores sociais e individuais a uma só vez, a sistemas ideológicos, a questões afetivas e psicológicas, por que é tão complexo controlar os efeitos eufóricos ou disfóricos que se produzem ao optar pela formalidade ou pela informalidade em um idioma, por que as formas de tratamento são tão instáveis historicamente, de modo que uma forma que, em certo momento, expressa formalidade e distanciamento (vossa mercê) deriva num tratamento informal com o passar do tempo (você).

Efeitos de sentido das formas de tratamento, interpretações dos comportamentos interpessoais, simulacros interpessoais: as diferentes linhagens do dizer e do fazer

Mais do que chegar a respostas definitivas, as reflexões colocadas aqui se propõem como um levantamento de questões e como indicações que parecem importantes ao abordar as formas de tratamento e a pluralidade contraditória de seus efeitos de sentido dentro de uma mesma língua, tanto quanto a complexidade de suas equivalências de uma a outra língua.

Gostaríamos de terminá-las com a sugestão de que a abordagem das formas de tratamento dentro da teoria semiótica do discurso pareceria poder ser esclarecedora para muitas de suas complexidades, mas nos perguntamos também pelos limites de uma abordagem de seus efeitos por qualquer teoria lingüística que leve em conta a produção de sentidos a partir apenas das pistas dadas na materialidade lingüística e nas relações dessa materialidade com sistemas ideológicos postulados abstratamente.

Que ferramentas poderiam explicar, por exemplo, o efeito negativo ou disfórico que um determinado tratamento pode ter em um contexto comportamental e o efeito emotivamente positivo ou eufórico que pode ter noutro? Pensemos nos efeitos que pode ter, para uma mesma pessoa, ser chamada de linda, querida ou meu bem em diferentes contextos comportamentais e de vínculos interpessoais. No contexto de um desconhecido passando na rua, e de um homem dirigindo-se a uma mulher, as maiores chances são de que esse tratamento produza um efeito negativo, desagradável e até agressivo, e que conduza a uma interpretação de desrespeito e invasão do espaço pessoal por parte do outro. No contexto de uma relação interpessoal pouco sólida e marcada por um contexto de contatos puramente interessados por parte do enunciador (uma pessoa que só entra em contato com a pessoa a quem dirige esse tratamento a longos intervalos de tempo, com certos interesses bem pontuais –obter uma informação ou um favor- mas mostra durante muito tempo desinteresse por manter contato, aprofundar coleguismo ou amizade, e por vezes até comportamentos de desrespeito e descaso), também há grandes chances de que se produza um efeito desagradável, e uma interpretação de falsidade ou de uma conduta malandra, do tipo aduladora-interessada, por parte do outro. No caso de uma relação interpessoal marcada por comportamentos de maior afeto e solidariedade para com o outro e de cuidado com os contratos assumidos com o outro, pode produzir um efeito agradável e uma interpretação de delicadeza e carinho. Tais efeitos de sentido não dependem já de uma análise lingüística vinculada a sistemas ideológicos abstratos, mas da interligação da análise lingüística com a comportamental, e parecem mais fortemente ancorados no comportamento e nos contratos específicos que se estabelecem nas relações interpessoais, marcadas pelas ações, do que na língua (embora em uma narrativa isso possa estar contido totalmente na expressão lingüística, são categorias que vão além dela).

O mesmo vale para a análise dos valores e da ideologia. A análise de discurso, na busca da interpretação de valores e ideologias, pareceria portanto necessariamente impelida a sair do âmbito do discurso verbal e entrar no estudo do comportamento nas relações interpessoais, de como os contratos sociais de relação interpessoal se estabelecem nas diferentes culturas e como produzem efeitos eufóricos ou disfóricos em combinação com o discurso e a interação lingüística, como geram sentidos em combinação com o discurso ou em desacordo com ele. Pecheux parece dar pé a essa integração com a questão das imagens e simulacros intersubjetivos. Sobre eles, Barros (2001, p. 44) diz que “são principalmente a imagem que o emissor faz dele mesmo, a imagem que o emissor faz do receptor, a imagem que o receptor faz dele mesmo e a imagem que o receptor faz do emissor”. A mesma autora indica que a essas imagens intersubjetivas, “Osakabe acrescenta outras imagens possíveis, como a que faz o receptor ao perguntar-se o que o emissor pretende falando daquela maneira”. O efeito que o uso de uma forma de tratamento pode ter sobre o interlocutor parece estreitamente dependente desses simulacros e dos comportamentos que, em cada cultura, contribuem a criá-los.

Ainda segundo a mesma autora (Barros, 2001, p. 44) , Greimas desenvolve a questão da construção de simulacros, definindo-os como “objetos imaginários que os sujeitos projetam e que, embora não tenham nenhum fundamento intersubjetivo, determinam de maneira eficaz o comportamento dos sujeitos e as relações entre eles”. Os simulacros do outro poderiam, então, tanto ser criados pela análise, de acordo com determinados sistemas de valores, de certos comportamentos concretos e reiterados, quanto por preconceitos, por avaliações institucionalizadas e superficiais.

Uma reportagem feita há pouco, por uma importante emissora de tevê, procurava ver o efeito da aparência de quem falava sobre a boa vontade para ouvir e o sucesso na persuasão de quem ouvia. Para isso colocou um mesmo rapaz fazendo uma mesma proposta em um mesmo lugar, mas durante algum tempo vestido com bermuda, tênis e camiseta e, num segundo momento, vestido com terno e gravata. A proposta que ele fazia era em princípio absurda: que pessoas que passavam pela Avenida Paulista assinassem um abaixo-assinado em defesa dos ratos, embora se procurasse atenuar o absurdo da proposta inserindo-a dentro das convenções dos discursos das sociedades protetoras dos animais. Enquanto poucos pararam para ouvi-lo, riram e não mostraram nenhuma disposição a se deixar convencer no primeiro momento, o rapaz conseguiu, no segundo momento, vestido de terno e gravata, que mais pessoas parassem para ouvi-lo, e que algumas inclusive assinassem a tal defesa dos ratos. Esse dado comportamental talvez permitisse falar de uma tendência à valorização da formalidade e da aparência formal-conservadora entre a população de São Paulo.

Que o português de São Paulo aproxime o tratamento formal e o informal pelas formas verbais e pronominais, e deixe a diferença entre elas menos marcada por meio de uma substituição da segunda pessoa pela terceira, talvez aponte no mesmo sentido ideológico e de escala de valores: uma valorização positiva da distância com respeito ao interlocutor, uma valorização das relações mais marcadas pela formalidade, pelos protocolos e pelas diferenciações hierárquicas conservadoras na sociedade.

Por fim, talvez as oscilações e instabilidades das formas de tratamento baseiem-se muito numa tentativa de marcar, no discurso, ideais de interação humana que elas não têm a capacidade de garantir, nem na opção formal, nem na informal, porque só poderiam ser garantidas na dimensão do comportamento na relação interpessoal. Isso parece insinuado no fragmento da Revolução Francesa que vimos ao início. Obviamente, uma mudança proposital, programática, no uso lingüístico mostrava uma intenção de mudança comportamental de acordo com certos valores ideológicos de igualdade, mas não garantiria essa mudança comportamental por si só. No caso das formas de tratamento, uma grande instabilidade de sentidos parece advir de que, qualquer dos tratamentos escolhidos, dissociado dos comportamentos interpessoais, não garantem nem a expressão de respeito nem a de afetividade, e podem expressar sempre o oposto disso. No Século de Ouro, Quevedo já explicitava que: “no hay más diferentes linajes que el hacer y el decir”, e as formas e fórmulas de tratamento talvez carreguem historicamente o peso de sucessivas tentativas desgastadas de resolver, ora pela valorização de fórmulas de respeito ora pela valorização de fórmulas de afeto ou igualdade, conflitos interpessoais e problemas comportamentais humanos que o discurso verbal, por si só, pode contribuir para mascarar e dissimular mais do que para resolver.

 

BIBLIOGRAFIA

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FIORIN, J. L. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 1988. p. 87.

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MAINGUENEAU, D. Termos-chave da Análise do Discurso. trad. Márcio Venício Barbosa; Maria Emília Amarante Torres Lima. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. 155 p.