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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002

 

O discurso político em Paula

 

 

Ester Myriam Rojas Osorio; Rosângela Manhas Mantolvani

(UNESP- Assis)

 

O propósito deste trabalho é desenvolver uma análise do discurso histórico– político em alguns corpus selecionados na obra Paula, de Isabel Allende, à luz das teorias da Escola Francesa de Análise do Discurso, que tem em Michel Pêcheux seu fundador, e que se apoia nas teorias de J. Lacan sobre o sujeito Inconsciente  e de Louis Althusser sobre a Ideologia e o sujeito social. Para esta análise foi utilizado o suporte da AD – 3.

Para construir Paula, Allende articula diferenciados discursos, cuja temática transita entre o cotidiano e a filosofia, entre a religião e o cepticismo, entre a angústia e a esperança, entre o presente e o passado. Isabel, o sujeito do discurso, constitui-se pelas várias faces do ser individual, submetido à Ideologia. “A ideologia interpela os indivíduos em Sujeitos” (PÊCHEUX, 1988, p. 155). Sua construção revela, então, o discurso da ficcionista premiada, da periodista demitida, da mãe emocionada de Paula, da filha de Tomas e do tio Ramón, da ex-esposa de Willie, da militante socialista tardia, entre outros eus da narradora, que se fundem para constituir o Sujeito Isabel. Outro discurso atravessa esses discursos, que é o do Outro lacaniano, representado por todo já – definido, já – determinado: o discurso dos avós, do pai ausente, da mãe, do padrasto, dos familiares, constituintes da identidade do Sujeito. Estes partilham sua formação, estão constituídos no nível do Inconsciente da narradora Isabel. No nível intradiscursivo subsistem os discursos histórico, filosófico, social, entre outros, através dos quais se dá a projeção do Inconsciente e da memória da autora na construção da ficção autobiográfica. A ficção antagoniza com os fatos da realidade, estabelecendo uma relação dialética. A conclusão da análise  percebe a obra como autobiografia que, ainda, revela fatos sociais de diferentes países, história, e experiências de outras personagens transpostas da realidade. Apesar do excesso de subjetividade, as memórias arrastam à objetividade a realidade do passado da autora.

A obra Paula estrutura-se principalmente como um monólogo interior, no qual há um encadeamento de discursos diferenciados, intercalados, nos quais se pode depreender a subjetividade do sujeito Isabel, suas angústias, seus medos, sua ansiedade, em oposição a outros, em que há o rastro da objetividade, da cientificidade da  linguagem, utilizada para reproduzir os fatos da História:

El 11 septiembre de 1973 al amanecer se sublevó la Marina y casi enseguida lo hicieron el Ejército, la Aviación y finalmente el Cuerpo de Carabineros, la policia chilena” ( id.ibid., p. 214).

Considerando as condições de produção da obra como um todo, verifica-se que o momento da produção é tenso. O estado emocional da autora diante do quadro clínico da filha, Paula, internada em um hospital de Madrid, em estado de coma, permite que as manifestações do inconsciente daquela perpassem à realidade material, e se projetem no trabalho narrativo, em uma transposição de efeitos de sentido. Paula é o receptor inconsciente, a quem se dirige o discurso de toda obra. É o outro lacaniano. Publicado em livro, o receptor do discurso é o leitor. Há, nessa relação discurso/leitor, um Outro, o Universal, que medeia essa conexão entre o sujeito produtor do discurso e o leitor. Nesse Outro do Discurso Universal reside o conjunto do todo “já – dito”, na medida em que é pensável, o referente máximo. ( MILLER, 1987, p. 22).

Isabel, ao falar de si mesma e de suas relações com as sociedades que a cercaram, da família e de suas idéias, revela a constituição do Sujeito Ideológico. 

O sujeito é interpelado pela Ideologia (PÊCHEUX, 1988, p.154), pois (...) a coletividade, como entidade pré-existente , (...) impõe sua marca ideológica a cada sujeito sob a forma de uma “socialização” do indivíduo nas “relações sociais” concebidas como relações intersubjetivas. ( id. ibid, p. 155).

Para esta análise foram selecionados fragmentos de Paula, nos quais há um predomínio do discurso histórico, com ênfase no trabalho da narradora que veicula versões não-oficiais da história do Chile, o que confere a este corpus o caráter de discurso político, posicionado contra as versões oficiais propagadas pela ideologia dominante após a queda do político Salvador Allende. Este, é transformado em personagem e eleito um dos enunciadores dos discursos veiculados pela narradora e pela personagem Isabel em suas memórias. Surgirão avaliações como a que segue:

“El día de la elección los más sorprendidos con el triunfo fueron los vencedores, porque en el fondo no lo esperaban (...) ( ALLENDE, 2000, p. 183).

Nesta seqüência pode-se depreender várias paráfrases que se encontram implícitas: o interdiscurso estabelece o entrecruzamento de subentendidos e pressupostos. O subentendido é o sentido que se pode depreender entre a seqüência de sentidos, entre o dizer e o não-dizer. A  ação  do  pressuposto  também pode  ser   depreendido nessa falha, entre o dito e o não-dito.

No trecho seguinte, é possível observar a manifestação do sujeito“massa”:

(...)

Una muchedumbre cantando que “el pueblo unido jamás será vencido” invadió las calles agitando banderas y estandartes, mientras en la Embajada de los Estados Unidos se reunía el personal en una sesión de emergencia; los norte-americanos habían comenzado a conspirar un año antes, financiando a los extremistas de derecha y tratando de seducir a algunos generales de tendencia golpista (...) ( id.ibid, p. 184).

Este enunciado veicula uma oposição de espaços. Enquanto em Santiago do Chile uma multidão canta na rua o povo unido jamais será vencido, nos Estados Unidos a Embaixada se reúne para discutir a questão. Vários outros aspectos se opõe. É um jogo dialético, no qual está presente o confronto ideológico. No enunciado o povo unido jamais será vencido está implícito o passado de lutas das classes operárias, o vencemos da Comuna de Paris, a quebra da ideologia da classe dominante, da burguesia, e outras que se mantém atreladas a estas por meio do controle dos Aparelhos Ideológicos de Estado (doravante AIE).

Na seqüência discursiva “ o povo unido jamais será vencido” estão implícitos as mudanças no comando e as possíveis transformações no estilo de vida das classes sociais. O que atribui esta significação a esse encadeamento significante é o contexto da época: numa noite, após a vitória do partido socialista chileno, uma multidão entoa essa cadeia significante e evoca todos estes efeitos de sentido. Dito em outro lugar, e não por aquela determinada multidão, estes efeitos são inexistentes.

Nesta seqüência estão implícitas as reformas que favorecem os trabalhadores, as estatizações de setores básicos da economia, em detrimento das classes privilegiadas. Duas Formações Discursivas (FDs) se antagonizam: a FD marxista e a FD capitalista. A primeira FD expõe a tomada do principal AIE: o poder executivo em mãos socialistas e, por conseqüência, a possibilidade da ocupação de outros, num efeito dominó. A narradora utiliza a palavra conspirar, que denota organizar-se contra, articular formas de combater o fato.  A forma de  articulação: financiar  os extremistas de direita no Chile e seduzir generais propensos a Golpes de Estado. A palavra seduzir abre espaço a subentendidos: qual seria a forma de sedução? Fatores econômicos? Privilégios no exterior?  Há nesta falha, a abertura para uma reflexão sobre o não-dizer. O SN algunos generales de tendencia golpista é termo generalizante, não especifica ninguém. Abre margem a perguntas como quais generais?; Todos os generais que participariam da futura ação militar contra o Governo?

No conflito ideológico, o contexto mundial enfatiza a “Guerra Fria” entre a antiga URSS, baseada no sistema de produção estatal X os EUA aliado às potências do Ocidente europeu, com sistema de produção capitalista. O socialismo chileno, nesse contexto, representou a articulação de uma Segunda, mas poderosa plataforma de ideologia adversa à dominante na América Latina.

A sesión de emergencia estabelece a idéia de reação de um aparelho ideológico da superestrutura que se organiza para manter a infra-estrutura, representada pelo modo de produção econômica.

A ideologia da classe dominante [ou grupos dominantes] não se torna dominante pela graça do céu”... ( PÊCHEUX, 1988, p.144) (...) é pela instalação dos AIE, nos quais essa ideologia é realizada e se realiza, que ela se torna dominante (...) ( id. ibid, p.145), pois os AIE constituem, ainda, o lugar e as condições da transformação das relações de produção (...) ( id., ibid , p. 145).

Os norte-americanos, através do financiamento planejam antecipadamente a manutenção do funcionamento dos AIE no Chile. O discurso de Isabel é, nesse momento, atravessado pelo discurso do Outro, o Histórico, a versão não–oficial, a versão dos futuros vencidos, o que  revela suas tendências políticas e sua  defesa do socialismo chileno e, diretamente, do percurso político de Salvador Allende.

No corpus abaixo, é possível observar de que forma se estrutura seu discurso sobre a economia que funcionava no período do governo de Salvador Allende:

En los tres años siguientes el Gobierno de la Unidad Popular nacionalizó los recursos naturales del país – cobre, hierro, nitratos, carbón – que desde siempre habían estado en    manos    extranjeras    (...) expandió dramaticamente la reforma agraria, repartiendo entre los campesinos latifundios de antiguas e poderosas familias, lo cual desató una odiosidad sin precedentes.” (ALLENDE ,2000, p.188).

Neste enunciado, Isabel marca a presença do Outro histórico oficial, cujo referente apresenta fatos histórico–econômicos na superfície discursiva. No plano  ideológico, observa-se a tentativa de mudança das práticas de produção econômica: imensos latifúndios passam a pertencer a camponeses, uma prática das políticas socialistas pós–revolução, desfavorecendo os praticantes da Ideologia dominante: antiguas e poderosas famílias chilenas.

Seu discurso revela a transformação na infra-estrutura do Estado, no modo de produção. A palavra odiosidad veicula o choque ideológico entre os grupos antagônicos: camponeses e Governo da U. P. X poderosas famílias. Com referência à transformação da infra-estrutura, promovida pelas ações da Unidade Popular, observamos no trecho:

“(...) desarmó los monopolios que por décadas habían impedido la competencia en el mercado y los obligó a vender a un precio conveniente para la mayoría de los chilenos”. ( id.ibid, p. 188).

Neste enunciado, as FDs veiculam a quebra de um dos mecanismos de ação da infra-estrutura capitalista: a formação de cartéis, trustes e outras organizações econômicas que privilegiam os monopólios de controle de determinados materiais essenciais à sobrevivência. Esta disposição do governo da Unidade Popular obriga o mercado, ou a infra-estrutura a uma prática alternativa não conveniente à prática capitalista. As tendências marxistas da narradora são reveladas, por sua voz, no corpus abaixo, no qual denuncia as formas de pressão econômica  a que esteve exposto o Governo Chileno:

(...) Los Estados Unidos, en ascuas ante la posibilidade de que sus ideas tuvieran éxito y el socialismo se extendiera irremisiblemente por el resto del continente eliminó los créditos y estableció un bloqueo económico ( id.ibid., p. 188).

Estes enunciados mostram a força e a ação da ideologia dominante atuando sobre a infra-estrutura do Estado chileno. A expressão “en ascuas”, que significava em brasas, em sobressalto explicita bem, no nível de superfície discursiva, o que o Governo da Unidade Popular representava naquele momento para a ordem capitalista mundial: a extensão do socialismo para o continente americano. Todas as práticas, tanto as da direita capitalista quanto as da esquerda socialista evidenciaram a   luta ideológica e o confronto, com o objetivo de assumir o controle dos   AIE.  Outras forças ideológicas atuariam sobre esse confronto, de forma a produzir pontos de forças contrárias ou favoráveis à tentativa de instalação da nova ordem: a ideologia religiosa, os partidos políticos, a ideologia da classe trabalhadora, da classe burguesa, das poderosas famílias, a estrutura educacional e outras que, através de instituições favoreceram ou dificultaram essa transformação na infra e na superestrutura.

A narradora busca uma certa imparcialidade, e revela, ainda em seu discurso, as falhas e faltas dos grupos que integravam a Unidade Popular:

Los campesinos (...) no sabían usar su libertad y muchos añoraban el regreso del patrón, esse padre autoritario y a menudo odioso, pero que al menos daba órdenes claras (...) (id.ibid., p. 205).

Estas FDs trazem implícitos o como e porquê a Ideologia interpela os indivíduos em Sujeitos e exerce seu poder para que estes ocupem seus lugares sociais. O trabalhador que pertence a outra classe social, que não a dominante, pratica desde o nascimento a Ideologia própria de sua classe, portanto, não tem o conhecimento das práticas do outro, que ocupa um outro lugar social, por isso a dificuldade encontrada pelos trabalhadores do Chile na ocupação desses outros lugares.

É interessante observar o antagonismo entre a forma de ocupação dos AIE pela esquerda e a apropriação destes pela extrema direita. Os primeiros ocupam ao som do canto el pueblo unido jamás será vencido, que ecoa na noite pelas ruas chilenas, originário da vitória nas urnas. A multidão de trabalhadores canta nas ruas. A direita ocupa ao som de estampidos e estrondos produzidos por canhões e rajadas de metralhadoras, de acordo com o “corpus” seguinte:

Los bombarderos volaram como pájaros fatídicos sobre el Palacio de La Moneda lanzando su carga con tal precisión, que los explosivos entraron por las ventanas y en menos de diez minutos ardía toda un ala del edificio, mientras desde las calles los tanques disparaban gas lacrimógeno. (...) donde Salvador Allende y unos cuantos de sus seguidores aún se mantenían atrincherados ( ...)(id. ibid, p. 216).

A música  da esquerda é contraponto dos estrondos da direita.

O discurso do presidente Allende através da Rádio Magalhães, de Santiago, prenunciando sua morte, fundamenta seu último discurso na ideologia da classe trabalhadora: (...) Tienen la fuerza, podrán avasallarnos, pero no se detienen los procesos sociales ni com el crimen ni com la fuerza (...).(id.ibid,p.215). Duas FDs se antagonizam: a FD ditatorial e a FD democrática.

Em seu discurso político, Isabel constrói a imagem heróica de Salvador Allende, utilizando recursos lingüísticos que recortam fatos comprovados, outros comentados e, ainda, outros poucos, ficcionalizados.

Visto pelo esquema de formações imaginárias, a partir do olhar do Sujeito narrador, podemos perceber a isenção que a narradora busca para relatar sua história e promover uma maior credibilidade do interlocutor (o leitor):

¿ Quien era Salvador Allende? No lo sé y sería pretencioso de mi parte intentar describirlo, se requieren muchos volúmenes para dar una idea de su compleja personalidad, su dificil gestión y  el papel que ocupa en la historia.(id. ibid.,p.190).

Neste enunciado transparece a FD individual e a FD sócio-política.  A primeira se relaciona a su compleja personalidad, a segunda a su dificil gestión y el  papel que ocupa en la historia.  Salvador Allende deixa o plano material e, através de suas ações, alcança o plano do mito.  Isabel o percebe em dois momentos, sob duas facetas, com as quais se lhe apresenta: Por años lo consideré un tio más (...)” ; “(...) fue después de su muerte, al salir de Chile, cuando comprendí  su dimensión legendaria”. ( id. ibid., p. 190).

A dimensão lendária de Allende está relacionada não apenas a sua atitude heróica, enfrentando as forças militares praticamente sozinho, mas a todo seu comportamento inatacável. Ao escrever suas memórias, Isabel o faz ainda mais lendário, pois oferece ao leitor, a oportunidade de conhecê-lo.

Um discurso definido, aliado a determinadas atitudes, tem o poder de transformar indivíduos feitos sujeitos em mitos. O confronto ideológico no Chile culmina com o discurso da força, representado pelas palavras “ideologia foránea”,  e ainda, ley y orden, .que mascara a imposição do modelo de produção capitalista à América Latina.

O discurso histórico-político de Isabel Allende pode ser visto como o resultado do confronto temporal: o Sujeito que fala sob as condições de produção do discurso X o Sujeito que presenciou parte do fato político e apropriou-se das informações acerca deste. O filtro da memória e do inconsciente permitiram essa produção literária, na qual há se antagonizam  o provável e o subjetivo, a Ideologia Socialista e a Ideologia Capitalista, os trabalhadores e os militares, a emoção e a razão, a Ciência e a Fé, e tantas outras,  em um jogo dialético que não se apresenta visível no nível significante/ significado, mas apenas no nível discursivo.

O trabalho geral da obra mostra uma estrutura discursiva de aparente desordem, refletindo no Sujeito Isabel, uma das máximas lacanianas: “o eu é uma desordem”,  projetado pela ação da Ideologia e do Inconsciente.

 

BIBLIOGRAFIA

ALLENDE, I. Paula. 26. ed..Espanha-Buenos Aires: Ed. Sudamericana, 2000.

ALTHUSSER, L.. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado. trad. de Joaquim José de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1974.

MAINGUENEAU, D. Novas Tendências em Análise do Discurso. trad. Freda Indursky. Campinas, Pontes, Editora da UNICAMP, 1989.

MILLER, Jacques-Alain. Percurso de Lacan: uma introdução. trad. Ari Roitman. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.

ORLANDI, E. P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2. ed. rev. e aum..Campinas-SP, Pontes, 1999.

PÊCHEUX. M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. trad. Eni Pulcinelli Orlandi et al.. Campinas-SP, Editora da UNICAMP, 1988.