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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002

 

Do clássico ao moderno: o desejo de liberdade

 

 

Andréia Dutra Albert

Universidade Federal do Espírito Santo

 

 

''A liberdade é a possibilidade de duvidar, a
possibilidade de cometer um erro, a
possibilidade de procurar e experimentar, a
possibilidade de dizer 'não' a qualquer
autoridade literária, artística, filosófica,
religiosa, social e mesmo política.''1
Ignazio Silone

A liberdade é uma categoria que tem sido tratada pela literatura de diferentes momentos históricos. É um tema cujo interesse permanece evidente até mesmo em nossa sociedade dita globalizada, na qual o homem afirma ter seus direitos assegurados, bem como a liberdade de ir e vir.

Este desejo tão presente no homem moderno encontra-se, também, registrado em produções literárias de séculos anteriores. Assim, não raro identificamos obras que a despeito de pertencerem a distintas dimensões espaço-temporais, aproximam-se de maneira a ultrapassarem as linhas do tempo. Seus temas tornam possível o estabelecimento de um diálogo entre o homem moderno e o homem de séculos anteriores.

É com base nessa perspectiva que pretendemos direcionar este trabalho, cujo objetivo é fomentar um diálogo entre o teatro clássico de Lope de Vega e o teatro moderno de Gianfrancesco Guarnieri. Para tal, nos reportamos às obras Fuente Ovejuna e Ponto de Partida, dos respectivos autores.

Sabemos que estes dois escritores viveram em contextos históricos e sociais bastante diferenciados. Lope de Vega, nasceu em 1562, momento em que a Vila de Madrid é recém convertida a capital do império espanhol2. Por outro lado, Gianfrancesco Guarnieri tem sua existência inscrita no século XX. Isto não nos impede de identificar pontos de convergência e divergência nas idéias expressas em suas produções teatrais.

Ao analisarmos as obras Fuente Ovejuna e Ponto de Partida observamos de imediato a busca pela liberdade, o desejo de tornar possível a voz do povo frente a opressão política. Além disso, ambas as obras se inserem em um contexto rural, no qual a valorização da vida simples e tranqüila se sobressaem em detrimento da vida agitada das grandes cidades.

Fuente Ovejuna conta-nos a opressão de um povo que vê seus direitos violados por dom Fernando Gómez de Guzmán, Comendador maior de Calatrava. Este comete mil desmandos em Fuente Ovejuna, lugar onde governa. Maltrata os homens, seduz as mulheres, rouba as fazendas. Apaixona-se por uma camponesa chamada Laurencia, namorada de Frondoso, também camponês. Laurencia rejeita qualquer aproximação com Fernando Gómez de Guzmán, pois sabe muito bem que devido a sua condição social jamais teria sua união regulamentada com o Comendador. Ademais, Laurência luta para estar com Frondoso, um camponês, a quem verdadeiramente ama. No dia do casamento, o Comendador manda prender Frondoso e leva Laurencia para casa, obrigando-a a se submeter aos seus desejos. Laurencia escapa e consegue convencer a todos os homens e mulheres a se vingarem do Comendador. Este é morto e os Reis mandam fazer a justiça. Apesar de todo o esforço, por parte das autoridades governamentais, em vingar a morte do comendador, ninguém delata os líderes da revolta. Assim, os reis são obrigados a perdoar o povo e também o Mestre de Calatrava, que aconselhado pelo mesmo comendador, havia tomado partido contra os Reis Católicos a favor de Juana la Beltraneja e havia se apoderado de Ciudad Real.3

Segundo Joaquín Casalduero "La decisión del pueblo y su heroísmo al sufrir el tormento atraem toda la virtualidad dramática de la comédia, pero no se deben desfigurar estos momentos haciéndolos ir a dar a un conflicto de orden político".4

Em Fuente Ovejuna a morte traz a idéia de justiça e liberdade de um povo. Tal fato localiza-se quase no fim da peça. Diferentemente, Ponto de Partida situa a morte na primeira cena do espetáculo, e esta representa, por sua vez, a opressão de um povo, a violação do desejo de liberdade.

Ponto de Partida é uma obra, cuja trama baseia-se na morte de Birdo, um habitante de uma aldeia medieval. Tal episódio desencadeia uma série de reações nas demais personagens, pois Birdo, por ser muito conhecido e querido pelos moradores, tornou-se exemplo para os outros habitantes locais.

Birdo era um homem do povo, livre e respeitado pela comunidade. Sua morte é vista como um agravo ao livre pensamento. Portanto, toda a trama se desenvolve objetivando a luta contra a impunidade e a busca pela justiça, ocorrendo, então, um empenho em descobrir o responsável pela morte de Birdo.

Neste ponto encontramos uma divergência entre Fuente Ovejuna e Ponto de Partida. Na primeira, o povo não quer a revelação do autor do crime, pois a morte do Comendador é vista como uma vingança coletiva, uma conquista do povo.

Sobre este aspecto assim nos fala Joaquín Casalduero:

"En Fuente Ovejuna lo que presenciamos es la venganza de todo un pueblo; no hay protagonista individual; no hay más héroe que el demos, el concejo de Fuente Ovejuna: cuando el poder Real interviene, es sólo para sancionar y consolidar el hecho revolucionario. No hay obra más democrática en el teatro castellano".5

Em Ponto de Partida, por sua vez, a morte de Birdo representa a derrota do povo, e por isso há uma necessidade em revelar o responsável pelo crime a fim de fazer valer a justiça.

A trama se inicia com Birdo dependurado em uma árvore. O enforcamento assusta os habitantes dando início a uma investigação, cuja finalidade é revelar se o fato decorre de um suicídio ou de um assassinato. Durante a investigação descobre-se que Birdo se relacionava com uma moça pertencente à camada dominante da sociedade. Ao conhecer Birdo, sai de seu universo e descobre outros horizontes. Birdo torna-se para Maíra o ponto de partida: é a luz que a faz despertar-se para o mundo. Apaixona-se por ele e traz em seu ventre um filho. Ao tomar conhecimento da morte de Birdo, sofre imensamente e luta sem cessar para revelar o verdadeiro culpado da morte do homem que ama.

O pai de Maíra é o representante legal da justiça na referida aldeia; cego e com inserção social privilegiada. Seu papel dentro da trama é desvendar a causa da morte de Birdo. Para isso, procura ser neutro, e busca evidências para julgar com imparcialidade a morte da vítima. No entanto, está sempre guiado por sua mulher, Áida, que representa a corrupção. Logo, por mais que D. Félix se esforce para agir com integridade, acaba envolvido por sua mulher, que possui objetivo oposto ao seu: escamotear o verdadeiro motivo da morte de Birdo.

Percebemos na obra uma tensão, um jogo de Forças entre a justiça e a impunidade. Ao final, descobre-se o assassino: a mãe de Maíra, Áida, esposa de D. Félix; mulher fria que não se sensibiliza com o sofrimento alheio. Tenta demonstrar bondade e discrição, mas evidencia sua crueldade no fim.

Maíra esforça-se para fazer valer a justiça, porém no final da trama é fortemente violentada pelos seus próprios pais, que representam a dominação. Ao saber da gravidez da filha, D. Félix e Áida matam com uma agulha o filho que Maíra guarda no ventre. A obstinação de Maíra é tão grande que, após ter perdido tragicamente seu filho, ainda consegue manter sua esperança em um mundo melhor e mais justo. Este sentimento torna-se evidente quando ela fica só diante do morto e assim se expressa:

"Sozinhos, meu amado. Já em mim não continuas, que mataram ao pai e ao filho não nascido, e de ti só restará uma lembrança proibida. Mas eu ficarei, meu amado, no centro desta praça, até que estes tempos se acabem e os homens se reencontrem no que conservam de humano. Eu e seu sangue, e minha fé, e minha coragem, minha certeza, e minha dor que é só o que há de irreversível.6

A citação acima permite-nos associar o comportamento de Maíra com a esperança, pois ela não desiste de lutar pelo novo, por um mundo melhor, mesmo diante dos obstáculos que a vida lhe impôs. Ela acredita na possibilidade de um mundo mais justo, no qual os homens possam reivindicar seus direitos.

Embora estas duas obras situem a morte de maneira diferenciada, ambas fomentam uma mesma problemática: a violação da liberdade de um povo e a busca pela justiça. Enquanto em Fuente Ovejuna temos um assassinato encerrando o espetáculo e simbolizando a garantia do direito popular; identificamos em Ponto de Partida a violação da liberdade de um povo. Nesta última, a sociedade não consegue a garantia de seus direitos, porém permanece a esperança, a luta por um mundo melhor.

Nas duas obras detectamos a presença da figura feminina. É a mulher que se reveste de um potencial heróico, capaz de levar adiante a luta pelo ideal de liberdade e justiça. Em Fuente Ovejuna o tema amoroso aparece com todo o relevo dando forma heróica a figura de Laurencia. É ela quem resiste firmemente aos encantos do Comendador e convence o povo a vingar-se de Fernando Gómez de Guzmán, matando-o.

Após ser raptada pelo Comendador Laurencia consegue escapar e se apresenta descabelada. Segundo Joaquín Casalduero "El desorden de su peinado es signo de ira, pero lo es que al mismo tiempo es testimonio de la lucha sostenida para defender su honor".7

Em Ponto de Partida Maíra resiste tenazmente a todo tipo de conformismo que pudesse impedir o andamento da justiça. Luta enquanto pode para que a morte de Birdo seja punida. Perde seu filho, porém conserva viva a esperança em um novo ponto de partida.

Em Fuente Ovejuna o povo deseja o casamento de Laurencia com Frondoso. Por conseguinte, toda Fuente Ovejuna responsabiliza-se pela morte do Comendador Fernando Gómez de Guzmán. Há uma união de forças em favor de uma causa única: a justiça.

De maneira distinta, em Ponto de Partida o povo não consegue manter a união necessária para impor a justiça. No início da trama todos querem a vingança da morte de Birdo, porém, no decorrer da peça muitos vão perdendo o vigor e desistem frente aos obstáculos e aos recorrentes desmandos conhecidos pelo povo.

Até mesmo o Ferreiro, pai de Birdo, é levado a desistir de lutar pela causa do filho. Dotado de um comportamento religioso e preso a princípios morais, o Ferreiro inicialmente luta e quer garantir o seu direito de vingar a morte do filho, no entanto, frente as dificuldades do cumprimento da lei e da ameaça de ferir seus princípios morais, conforma-se com a injustiça. Ao saber que seu filho engravidou uma jovem de classe alta, o Ferreiro argumenta:

"Senhor, sinto-me aturdido, cansado. Com ele, meu filho, se foi minha vida e espero poder passar deste mundo para outro que só pode ser melhor. Ouvi as declarações, e devo dizer que, de fato, Birdo, meu Filho, não se comportou nunca como se esperava de um subordinado. Foi livre enquanto pôde, desperto, desperto... Tanta coisa foi dita... da menina agradeço o empenho em defender meu filho do que foi acusado. Mas, enfim, declaro que já não suspeito de nada... Estou cansado. Que se dê Birdo por suicidado que já não importa... Foi somente dele a culpa, por esperar do desespero, por ver amor no estagnado... Só teve culpa.... senhor, que se dê o caso por encerrado!8

A citação mencionada permite-nos depreender que no fundo o Ferreiro sabe da boa índole do filho, pois afirma que ele errou por ser livre e por amar. Porém, mostra-se cansado com a situação complexa que se tornou a investigação da morte de seu filho. Já está tão cansado e infeliz que pouco lhe importa se julgarem a morte de Birdo suicídio ou assassinato. No momento, o que mais importa para o Ferreiro está perdido: a vida de seu filho. Seja qual for a sentença, Birdo já não existe mais.

Assim, podemos entender que em Ponto de Partida a atitude heróica recai sobre uma personagem, Maíra, e não sobre toda uma comunidade, como presenciamos em Fuente Ovejuna.

Para compreendermos melhor estas duas obras é necessário situá-las em seus respectivos contextos históricos. Em Fuente Ovejuna, teatro do século XVII, há a figura dos reis que aparecem novamente no final da trama para perdoar o mestre e todo o povo. Acima do poder do Comendador há o poder temporal do monarca, que na ocasião inibia certos desmandos e acabava com as constantes lutas entre os grandes senhores.

Como nos esclarece Juan María Marín, "havia povos que dependiam diretamente do rei e outros o faziam através de vinculação aos senhores; os primeiros gozavam de certa paz e segurança jurídica, enquanto os segundos eram, muito freqüentemente, vítimas de opressões diversas e não desfrutavam das mínimas garantias de justiça, sempre expostos à veleidades e arbitrariedades de seus senhores. Tudo isso gerava desequilíbrio e tensões que desencadeavam revoltas populares como a de Fuente Ovejuna."9

Nesse Contexto, podemos constatar que o homem é visto como um ser coletivo, reflexo de uma concepção barroca de mundo, na qual a sociedade sente-se amparada e protegida pela Igreja e pela Monarquia. Por conseguinte, o agravo cometido contra Frondoso também representa uma ofensa a toda comunidade de Fuente Ovejuna. Daí a revolta do povo.

Em Ponto de Partida, por sua vez, não encontramos um poder que esteja acima do representante local: D. Félix. Este, simboliza a força jurídica maior da aldeia. Sabemos apenas que se trata de uma aldeia medieval, porém não temos referência quanto a sua espacialidade. Ponto de Partida revela-nos uma espacialidade com características universais, onde a ação e a omissão é ponto de questionamento.

Essa obra foi escrita na década de 70 do século XX, período em que o Brasil passa por uma intensa crise política e institucional, que se configura no autoritarismo militar. Ponto de Partida é uma produção literária que nos revela uma situação na qual o povo encontra-se profundamente aviltado diante de forças transitoriamente irreversíveis. Por conseguinte, é compreensível que não haja uma vitória do povo perante as forças ditatoriais, mas permanece o convite à luta pelos direitos humanos e a mensagem de esperança, que é levada a cabo mediante a força da ação de Maíra.

Estas duas grandes obras revelam-nos que o grande desafio humano, social e político, como nos demonstra Eduardo Giannetti, é encontrar um equilíbrio entre as exigências da ética cívica e as demandas da ética pessoal - uma gramática da convivência que de alguma forma encontre o ponto adequado para a inevitável tensão entre os dois imperativos da melhor sociedade: liberdade e justiça. Acrescenta ainda, que é somente no solo de uma ética cívica legítima, enraizada e bem constituída que uma ética pessoal agressiva - livre, ousada e pluralista - pode prosperar e florescer.10

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CASALDUERO, Joaquín. Estudios sobre el teatro espanhol. Madrid:Gredos, 1967.

GIANNETTI, Eduardo. Auto-engano. 6ª ed. São Paulo; Companhia das Letras, 1997.

GUARNIERI, Gianfrancesco. Ponto de Partida. São Paulo: Brasiliense, 1976.

LÓPEZ, José Garcia. Historia de la Literatura Española. Barcelona: Vicens-Vives, 1995.

MARÍN, Juan María. Fuente ovejuna. 6ª ed. Madrid: Cátedra, 1985.

RÓNAI, Paulo, Dicionário Universal de Citações. Nova Fronteira, 1985.

VICENTE, Alonso Zamora. Lope de Vega. Madrid: Editorial Gredos, 1961.

 

 

1 RÓNAI, Paulo, Dicionário Universal de Citações. Nova Fronteira, 1985. p.552.
2 VICENTE, Alonso Zamora. Lope de Vega. Madrid: Editorial Gredos, 1961, p. 7.
3 CASALDUERO, Joaquín. Estudios sobre el teatro espanhol. Madrid. Editorial Gredos, 1967, pp.15/16.
4 Ibid. p.16
5 Ibid. p.13
6 GUARNIERI, Gianfrancesco. Ponto de Partida. São Paulo: Brasiliense, 1976.pp.77/78.
7 CASALDUERO, 1967, p. 36.
8 GUARNIERI, 1976. p. 73/74.
9 MARÍN, Juan María. Fuente ovejuna. 6ª ed. Madrid: Catedra, 1985. p. 15. 9 (Nossa tradução)
10 GIANNETTI, Eduardo. Auto-engano. 6ª ed. São Paulo; Companhia das Letras, 1997. p. 214.