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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Out. 2002

 

El local de Bernardeta A., uma paródia lorquiana

 

 

Angela dos Santos

UNISA

 

 

Em 1998, na revista Acotaciones, é publicada uma paródia da peça La casa de Bernarda Alba, de Federico García Lorca, intitulada El local de Bernardeta A., de Lourdes Ortiz. A autora, conhecida por parodiar obras clássicas, como: Fedra: Penteo (1983), Pentesilea (1991), Electra-Babel (1992), Dido en los infiernos (1994), Los motivos de Circe (1988), Yudita (1988) Las murallas de Jericó (1980) e Cenicienta (1988); em 1995 nos oferece uma peça ''tragicómica, un poco disparatada e irreverente'' como ela mesma descreve. Ortiz comenta, em uma entrevista, que a idéia de parodiar Lorca surgiu a partir de uma sugestão de um amigo: ''y de repente tuve una especie de imagen de La casa de Bernarda Alba trastocada, como dada la vuelta, como ¿qué pasaría con Bernarda Alba y sus hijas en nuestra sociedad? Y entonces, a partir de ahí surgió la obra.'' (p.57).

Dado que a paródia é considerada como uma forma de ridicularização que nos leva ao riso, é importante destacar que essa obra está concebida mediante um modelo de paródia esperpêntico, criado por Valle-Inclán que tem como base a superação do riso e do pranto.

Ao colocar a obra lorquiana diante de um espelho côncavo, Ortiz destrói um mito literário que é o retrato da frustração da mulher na cultura espanhola. Bernarda não é mais a autoritária mãe que impede suas filhas de deixar aflorar seus desejos mais íntimos, mas a administradora de um bordel que tenta contornar a difícil situação de decadência em que se encontra o estabelecimento, pois a todo o momento é desafiada pelas prostitutas do bordel.

El local de Bernardeta A. começa onde termina La casa de Bernarda Alba, com o suicídio de Adela, como se fosse uma continuação da peça de Lorca. Nesse início, todas as personagens estão olhando para ''unos pies delcalzos, los pies de Adelita.'' E, durante todo o primeiro ato, é travado um diálogo entre as mulheres a respeito dos acontecimentos que envolvem a morte de Adelita. Na paródia tudo parece se repetir e tudo parece ter sido vivido antes, é uma repetição com diferença.

Logo de início notamos um paralelismo no título que vai estar presente em toda a obra. Por um lado, os dois títulos têm em comum o espaço físico – El local, lugar de estabelecimento comercial, e La casa, lugar destinado à habitação – por outro, os dois trazem o nome da proprietária, respectivamente, Bernardeta A. e Bernarda Alba. Além disso, a relação dos nomes das personagens nas duas obras é evidente – na de Ortiz os nomes estão abreviados como nomes de guerra: Martírio-Marti, Amélia-Meli, Magdalena-Magda, Adela-Adelita, La Poncia-Poncina, Angustias-Gus, Maria Josefa-Josefina. Note-se que na obra de Ortiz o único nome que se mantém é o de Pepe el Romano.

O espaço agora não é mais o ambiente doméstico de uma casa, onde as mulheres passavam seus dias bordando o enxoval que nunca usariam, mas um bordel decadente, onde se desenrola a história das prostitutas, que também, de certo modo, estão condenadas a viverem presas como as filhas de Bernarda.

A descrição do espaço nas duas obras revela explicitamente as características do ambiente retratado em cada uma delas. Em La casa de Bernarda Alba o ambiente é o de uma família rural burguesa:

''Habitación blanquísima del interior de La casa de Bernarda. Muros gruesos. Puertas con cortinas de yute rematadas com madroños y volantes. Sillas de anea. Cuadro con paisajes inverosímiles de ninfas o reyes de leyenda.'' (p. 118).

Em El local de Bernardeta A. o ambiente é descrito como:

''Una habitación con cristales donde se multiplican los reflejos. En el centro, una gran mesa cubierta por un tapiz. Sobre ella un cuenco con frutas, una gran raja de sandía, plátanos y manzanas. Unas mujeres de pie rodean la mesa. Están casi desnudas. Algunas pueden llevar máscaras africanas, deformes. Una versión casi naturalista, de Les demoiselles de Aviñon.''. (p.63)

A descrição dos dois ambientes nos mostra o contraste entre o convencional e o retrato de um bordel decadente. Na obra de Ortiz, as mulheres estão ao redor da mesa e quase nuas, enquanto na obra de Lorca elas se vestem de preto e rezam uma oração em latim, evidenciando um ambiente religioso marcado pelas badaladas do sino da igreja, as quais estarão presentes ao longo de toda a peça, anunciando o final de cada oração, além da morte de Adela: ''Ella ha muerto virgen. Avisad que al amanecer den dos clamores las campanadas''. Em El local de Bernardeta A., o sino é substituído pela ''música de gramófono'', também presente em toda a obra; às vezes se ouve uma música forte, e outras, suave. Essa oscilação revela o momento de grande movimento no bordel e também o momento da morte de Adelita, no início, e depois, o da morte de Delia, que também comete suicídio.

O espaço de El local de Bernardeta A. também é um espaço fechado, como em La casa de Bernarda Alba; só as mulheres têm voz na peça de Lorca, sabemos da existência da figura masculina através do murmurinho de vozes e do som do trote do cavalo anunciando a presença de Pepe el Romano. Na peça de Ortiz, o ambiente é freqüentado por homens que, no entanto, não estão presentes fisicamente; somente o murmurinho e as risadas revelam esta presença, mas nem por isso deixa de ser este o elemento importante que permeia as duas obras.

É importante ressaltar que não é casual a referência ao quadro de Picasso Les demoiselles de Aviñon, pois, como se sabe, este quadro representa um bordel da barcelonesa. A autora introduz o leitor em um ambiente de prostíbulo, no qual as mulheres estão quase nuas ao redor da mesa com máscaras disformes.

As personagens da paródia sofrem profundas mudanças em suas características físicas e de personalidade, mas Bernardeta e Pepe el Romano são as que mais se transformam em relação às personagens de La casa de Bernarda Alba. Bernardeta é uma ''Madama cincuentona, todavía de buen ver. Encorsetada y pulcra, trás el carmín discreto. Rasgos duros de jefa del consejo de administración. Lagartona y sadia, con varios repliegues'' Bernardeta não possui a tirania e o autoritarismo de Bernarda, as prostitutas não a obedecem e não têm medo de enfrentá-la, em alguns momentos a desafiam e se opõem a ela, não sentem o ódio que as filhas de Bernarda sentiam pela mãe, e até sentem um certo desprezo por ela.

Esse ódio é deslocado para outra personagem, Pepe el Romano, o protetor do bordel que nunca teve o. O outro Pepe el Romano, de La casa de Bernarda Alba, um jovem desejado por todas as mulheres da casa, se transformou em um homem envelhecido, violento e sentimental. Sua figura grotesca nada tem em comum com o jovem lorquiano além do fato de também desejar a mais jovem das personagens, Adelita.

A revolucionária Adela, pronta a desafiar a autoritária mãe arrancando e quebrando em dois a bengala de Bernarda - ''¡Aqui se acabaron las voces de presídio! (...) Esto hago yo com la vara de la dominadora.'' (p.197) -, já está morta quando começa a obra de Ortiz. Sabemos, porém, que também comete suicídio por não suportar mais sua condição; ela estará sempre presente em uma forma brutal de pés pendurados que não desaparecem nunca e nos reflexos das novas pupilas do bordel, Ade e Delia, sendo que esta última também comete suicídio, como Adela, e tem seus dois pés formando par com os de Adela até o final da obra.

Pepe el Romano também terá seu reflexo em Romanito, secretário de Romano, que surge para tomar conta dos negócios do local, com novas idéias para modernizá-lo:

''MELIA. – Me he cruzado com el chorra ése del Romanito. Hecho un brazo de mar. Gafas de carey, trajecito de seda y corbata italiana. Lo de Delia no parece afectarle mucho. Me ha dado un pellizquito, de ésos como de monja que da él y me ha dicho que no debemos dar importancia a estas pequeñeces, que el negocio va bien y va a crecer. Que tiene tratos con una gran cadena y va a convertir el local en una sauna de postín, que hay gente que no entiendes por dónde van las cosas y que el que no llega es porque no quiere...''

A frágil Martírio de Lorca se converte em Marti, ''unos ventisiete. Envidiosa y mal hablada'' como Martírio, sabe de todos os passos de Adelita. Sua caracterização sugere mudança em sua personalidade ''espera favores y ya há perdido la poca gracia que alguna vez tuvo.'' Martírio temia aos homens e agradecia por ser feia ''Diós me há hecho débil y fea y los há apartado definitivamente de mi'' (p.136).

Gus é a prostituta mais velha e, como Angustia, é privilegiada por ser a mais antiga da casa. Ganha o mesmo que as outras, trabalhando menos; é sarcástica e má; chantageia Adelita tirando-lhe dinheiro. Meli é submissa e agradável, como Amélia, e Magda é mais otimista que Magdalena. Poncina é a fiel criada de Bernardeta, sempre pronta a aconselhar e ajudar.

As mulheres de La casa de Bernarda Alba estavam confinadas a um mundo de convenções sociais que as impediam de satisfazer seu próprio corpo. As prostitutas de El local de Bernardeta A., por sua vez, conhecem muito bem o sexo, mas também estão confinadas à condição de prostitutas.

Com a morte de Romano, pelas mãos de Ade, no final da peça, Bernardeta tem de volta em suas mãos a administração do bordel e as mulheres do local acreditam que tudo mudará, que ficarão livres do domínio de Romano. Mas, a sobrevivência do local depende de como ela poderá esconder os crimes cometidos no estabelecimento, e, para isso, necessitará de pessoas influentes, ou seja, dependerá de outros homens para manter a sobrevivência do bordel.

Constatamos que, apesar de o poder das duas personagens, Bernarda e Bernardeta, sempre existe a figura do homem.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACOTACIONES. Revista de investigación teatral. Resad, Madrid, 1998.

GARCÍA LORCA, F. La casa de Bernarda Alba. Cátedra, 1999.