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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Out. 2002

 

Os rastros da narrativofilia na Mancha e no Sertão

 

 

Beny Ribeiro dos Santos

Universidade Federal do Espírito Santo

 

 

Quando escutamos um aedo que, instruído pelos
deuses, canta para os mortais histórias encantadoras,
queremos ouvi-lo sem fim todo o tempo que ele canta.
Eumeu

É bastante recorrente na literatura fazer-se uso do expediente de estruturar uma narrativa não só através de uma história, fio condutor da leitura, mas também por várias histórias menores, disseminadas pelo texto. Seus narradores deixam rastros por onde passam, sempre reverenciando as potencialidades do relato. A Odisséia, As mil e uma noites, Mil histórias sem fim e, mais próximo a nós, Se um viajante numa noite de inverno são obras tributárias dessa estrutura.

Dom Quixote de la Mancha e Grande sertão: veredas também fazem parte dessa confraria. Esses romances, com suas narrativas em abismo: estruturadoras e desestruturadoras, seduzem e inquietam pelo interesse permanente de seus narradores e de alguns de seus personagens em narrar, ouvir e escrever histórias. Esses seres de ficção – amantes do provérbio, da sentença, do conto, do romance, enfim, da literatura – (se) alimentam (d)o disfarce narrativo com intensidade.

Dom Quixote é um personagem que se destaca nesse quadro. Seu interesse pela literatura não se restringe somente à leitura dos livros de cavalaria, ou mesmo, de poesia. Ele revela um gosto intensificado pelo relato oral da narrativa curta: o conto. A participação dos contos na sua história torna evidente, a todo momento, sua estreita afeição ao mundo das letras, das palavras, da fala, do canto, da efabulação, da criação propiciada pela imaginação. Todos esses elementos dizem algo sobre dom Quixote, dizem algo especial também sobre a literatura.

Os diversos caminhos que percorre na Mancha são animados pelo narrar e ceder espaço a outras ficções. Cervantes sabe que essas narrativas ecoam e corporificam, sinuosamente, o próprio Quixote. Ao mesmo tempo que manifestam a diferença, apresentam-se como retomadas de um começo, que nunca pára de se movimentar, seja no ato da leitura, da narração, ou da escrita.

O interesse de Quixote pela história da pastora Marcela e do estudante Grisóstomo, sua curiosidade pelo encontro com Cardenio e seu "grandíssimo desejo de saber o fim de sua história" vão, pouco a pouco, ressemantizando e reconfigurando sua forma, seu papel. A criação efetiva desse espaço de ficções deve ser assinalada como bastante interessante. Ao falar de outros e deixar os outros falarem por si de si, ao deixar outros atuarem com seu protagonista, Cervantes cria um personagem que se fortifica nos contatos entre alteridades, põe o eu em troca com o outro, sem desconsiderar a singularidade de cada ser de linguagem.

O amadurecimento dessa estratégia e sua efetiva incorporação ao romance é um fato poético recorrente em diversos estudos sobre o Quixote.1 Isso é relevante na medida em que a crítica toma forma a partir das relações provocadas entre a poética da obra e o seu discurso interpretativo. Os próprios personagens tomam parte nessa relação através de comentários críticos sobre o efeito desses relatos sobre eles. Retomo a passagem, em que dom Quixote comenta essa relação dos ouvintes com o narrador e sua narrativa, na iminência da narração de Eugenio.

Por ver que este caso tem um não sei que de sombra de aventura de cavalaria, eu, pela minha parte, vos ouvirei, irmão, de muito boa vontade, e assim o farão todos estes senhores, pelo muito que têm de discretos e de amigos de curiosas novidades, que suspendam, alegrem, e entretenham os sentidos, como penso, sem dúvida, que há de fazer o vosso conto. Começai, pois, amigo, que todos escutaremos (CERVANTES, 1987, p. 771, tradução livre).

Esse amor pela narrativa, essa curiosidade pelo novo que o relato transporta em si são fundamentos formadores do Quixote. Seus personagens, companheiros do protagonista, também se solidarizam nessa narrativofilia, mesmo que sob as separações de um espírito purificador, como o do cura e o do cônego. O cura é, por isso mesmo, um personagem bastante paradoxal. Como Cervantes, condena as ficções inverossímeis. No entanto, não deixa de ser um amante das narrativas, afeição demonstrada até mesmo no interesse pela letra em que está escrita a Novela do curioso impertinente. Caso sua leitura lhe contentasse, o cura a copiaria. Mesmo já conhecendo parte da história de Cardenio, narrada na venda por Sancho, o cura e Nicolás instam ao desterrado da Serra Morena que lhes narre seu conto. Logo após o término desse relato, é o cura que novamente pede a Dorotea que lhes conte sua "boa ou má sorte". A história de Cardenio-Luscinda-don Fernando-Dorotea é então concluída.

O comentário de don Fernando sobre a narração e a narrativa de Rui Perez bem como sobre os efeitos que provocaram no círculo de ouvintes lembram o enleamento do sultão Chahriar diante dos relatos de Cheherazade.

Certamente, senhor capitão, que a forma com que contastes este estranho sucesso igualou sua novidade e estranheza. Tudo é peregrino, e raro, e cheio de acidentes que maravilham e enlevam a quem os ouve. E tão grande foi o prazer que tivemos em escutá-lo, que, ainda que o dia de amanhã nos encontrasse entretidos no mesmo conto, folgaríamos de ouvi-lo de novo (CERVANTES, 1987, p. 659, tradução livre).

Efeito novamente sentido quando ouve o relato de Dorotea na venda. Não é estranho que outros personagens da primeira parte (o vendeiro, sua mulher, sua filha, Maritornes, Sancho) e da segunda (o casal de duques, don Antonio Moreno) manifestem o mesmo prazer em ouvir os relatos.

Escrito aproximadamente três séculos e meio depois do Quixote, Grande sertão também é impresso numa rede de pontos e linhas que entrecruzam vidas em histórias. Rosa não só é um amante das narrativas como convive entre elas.2 Aspecto facilmente observado na predominância dessa forma no seu processo criativo. O conto, mais ou menos extenso, e o romance são formas dominantes em sua produção ficcional.

Riobaldo é herdeiro da relação de afetividade do escritor com o relato. Um de seus apelidos, Cerzidor, define bem sua filiação. O nome "Cerzidor" vem do verbo "cerzir", que significa "coser", "remendar com pontos miúdos, quase imperceptíveis", "reunir", "incorporar", "misturar", "intercalar", "formar". O relato de Riobaldo deriva-se desses atos que dão forma às histórias com que teve contato no sertão. Riobaldo é um reconfigurador da função do narrador tradicional. Com a participação de seu interlocutor, mantém viva a simulação de uma narrativa oral dentro da forma romanesca. Nas palavras do narrador: "O senhor fia?", "O senhor tece? Entenda meu figurado" (ROSA, 1986, p. 159).

Riobaldo vive num espaço em que as histórias e as estórias surgem naturalmente. Os jagunços, como parte integrante do sertão, alimentam as guerras, que são fontes para essas narrativas. Entre fluxos de águas infindas, em viagens por espaços reversíveis, no cruzamento de fronteiras, o livro tem suas narrativas multiplicadas em histórias e estórias.

O termo "história" conserva o sentido de acontecimentos ocorridos de fato. "Estória", por sua vez, aparece relacionado a narrativas forjadas pelo imaginário e, principalmente, à narrativa da "história" de Riobaldo, ou seja, o próprio romance é uma grande "estória".

Assim, no crescendo da narrativa, os limites entre o real e o ficcional são revestidos de outras determinações, na verdade, sobredeterminações. As matérias fornecidas pela memória não são suscetíveis de certeza. Ao contrário, seu domínio da verdade, como espaço sedentário e portador de uma explicação verídica, é questionado. Como escreve o próprio Rosa: "A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota" (ROSA, 1979, p. 3).

É nessa perspectiva que Riobaldo desenvolve seu gosto por narrar. Esse gosto não é apresentado somente como fonte de entretenimento, tendência muitas vezes reiterada na narração de histórias no Quixote. O relato das narrativas em abismo ganha força na medida em que problematiza conceitos estruturadores e definidores do ser. Sem se acorrentar em fronteiras de frágil conceituação, Riobaldo entrega-se a esse gosto e apresenta para o senhor – e não devemos esquecer que esse interlocutor é uma forma de mediação direta entre o texto e o leitor – uma série de narrativas e de personagens que, como ele, se aprazem em fabular: em inventar novos enredos.

É o caso de Selorico Mendes. Seu padrinho-pai costumava contar-lhe as peripécias e invenções que Joca Ramiro, Neco e outros utilizavam nos combates. "Altas artes de jagunços – isso ele amava constante – histórias" (ROSA, 1986, p. 94). Riobaldo já mantinha contato com a experiência da narração e, mais ainda, com o amor pela narrativa desde a adolescência na fazenda do pai. É lá que ouve pela primeira e única vez a cantiga de Siruiz. Posteriormente, quando jagunço, ouvirá outras narrativas, algumas de efeitos até mais reais, já que agora participa de combates, tiroteios, riscos e fugas. Recordo a rápida referência feita ao jagunço Freitas Macho, que "contava ao senhor qualquer patranha que prouvesse, e assim descrevia, o senhor acabava acreditando que fosse verdade; [...]" (ROSA, 1986, p. 279).

Certos personagens, como ocorre no Quixote, têm sua participação em Grande sertão marcada pela narração de histórias e pelo fato de serem também narradores de contos significativos para a compreensão da vivência do próprio narrador. É Jõe Bexiguento, amante dos "casos", que lhe conta a história de Maria Mutema e do Padre Ponte. É seo Ornelas que lhe narra diversas histórias, dentre elas, o conto do delegado Hilário. Riobaldo até contesta o contínuo controle da voz narrativa na fazenda do anfitrião Ornelas. A contestação da autoridade pelo direito de narrar confirma que, no sertão de relatos, saber narrar é um indício do poder de comandar. "Pelo que, por todo o seroar, deixei com ele a mão; ainda que às vezes eu ficasse em dúvida: se competia, sendo eu um chefe, aturar que um outro fiasse e tecesse, guiando a fala" (ROSA, 1986, p. 406).

A força da narrativa subverte até o desfecho do julgamento de Zé Bebelo, influenciando assim na decisão sobre a vida e a morte do personagem. Um dos argumentos decisivos para a absolvição do prisioneiro de guerra, pronunciado por Riobaldo, diz respeito à repercussão negativa que uma condenação teria nas futuras histórias e cantigas derivadas do relato daquele julgamento e difundidas pelo sertão.

Os chefes ali presentes – Joca Ramiro, Sô Candelário, Titão Passos, Hermógenes, Ricardão – ficariam conhecidos como os que condenaram um homem sozinho à morte. Para Riobaldo, sempre interessado nas possibilidades efetivas da narração da vida e na contribuição que esse relato pudesse trazer para a compreensão das misturas que observa no mundo, a construção de uma imagem positiva daqueles chefes e jagunços no imaginário popular seria determinante para se ter mais fama e honra no futuro.

Outros exemplos retirados dos dois romances poderiam ser citados para demonstrar a relevante participação da narrativofilia na sua formação. Isso porque é freqüente o estabelecimento de uma relação de afetividade com as narrativas. No Quixote, essa relação é mais apresentada, principalmente pelo seu narrador, como um elemento lúdico, apesar de saber que a questão no próprio Quixote é mais complexa, muitas vezes, do que se apresenta, tornando o disfarce ainda mais opaco. Em Grande sertão, algumas questões derivadas da narrativofilia, como a relativização de fronteiras, são assumidas a partir do momento em que Riobaldo reconhece e instaura elos entre o real, o imaginário e a ficção, afastando-se dos domínios de qualquer maniqueísmo. É raro encontrar-se um pensamento unívoco em sua narração. Trata-se de uma narrativa que faz uso reiterado de paradoxos desestabilizadores.

A observação desses detalhes, pequenos pontos de formação, rastros mesmos da narrativofilia, revela os sentidos das narrativas e de seus amantes. Esses rastros são elementos formais que auxiliam na distinção da matéria múltipla e interessante de que os relatos são feitos. Longe dos disfarces apagarem esses rastros, paradoxalmente, nessas narrativas são eles os próprios rastros.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AS MIL E UMA NOITES. Versão Antoine Galland. Tradução Alberto Diniz. Apresentação Malba Tahan. 16. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. 2 v.

CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno. Tradução Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Edição, introdução, notas, comentários e apêndice Ángel Basanta. Madrid: Anaya, 1987. 2 v. (Biblioteca Didáctica Anaya)

GAOS, Vicente. Claves de literatura española I: Edad Media – siglo XIX. Madrid: Guadarrama, 1971.

HOMERO. Odisséia. Introdução e notas Médéric Dufour e Jean Raison. Tradução Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Abril Cultural, 1981.

LORENZ, Günter W. Diálogo com a América Latina: panorama de uma literatura do futuro. Tradução Rosemary Costhek Abílio e Fredy de Souza Rodrigues. São Paulo: E. P. U., 1973.

RÓNAI, Paulo. Os vastos espaços. In: ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 36. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

______. Tutaméia (terceiras estórias). 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.

TAHAN, Malba. Mil histórias sem fim: contos orientais. Tradução e notas Breno de Alencar Bianco. 7. ed. Rio de Janeiro: Conquista, 1952. v. 1.

______.Mil histórias sem fim: contos orientais. 2. ed. Rio de Janeiro: Conquista, 1952. v. 2.

 

 

1 Para Vicente Gaos, ''Las interpolaciones no constituían un fin en sí mismas. Se trataba simplemente de un procedimiento, de un medio que Cervantes utilizó con determinada finalidad. Y esta finalidad, lo hemos visto, era, en uno de sus aspectos, la de incrementar la ilusión de realidad, la de dotar a los personajes de una como independencia propia de los seres de carne y hueso.'' Cf. GAOS, 1971, p. 200-201. O autor faz referência a outras fontes que discutem as narrativas inseridas no Quixote.
2 Destaco, nesse sentido, um depoimento de Rosa em que apresenta um pouco de sua relação com a forma narrativa: ''Veja você, Lorenz, nós, os homens do sertão, somos fabulistas por natureza. Está no nosso sangue narrar estórias; já no berço recebemos esse dom para toda a vida. Desde pequenos, estamos constantemente escutando as narrativas multicoloridas dos velhos, os contos e lendas, e também nos criamos em um mundo que às vezes pode se assemelhar a uma lenda cruel. Deste modo a gente se habitua, e narrar estórias corre por nossas veias e penetra em nosso corpo, em nossa alma, porque o sertão é a alma de seus homens. Assim, não é de estranhar que a gente comece desde muito jovem. Deus meu! No sertão, o que pode uma pessoa fazer do seu tempo livre a não ser contar estórias? A única diferença é simplesmente que eu, em vez de contá-las, escrevia. [...] Eu trazia sempre os ouvidos atentos, escutava tudo o que podia e comecei a transformar em lenda o ambiente que me rodeava, porque este, em sua essência, era e continua sendo uma lenda'' (in LORENZ, 1973, p. 325).