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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002
Drummond, o cavaleiro de tristíssima figura e Dom Quixote, o gauche maior1
Célia Navarro Flores
Universidade de São Paulo
Em 1973, Carlos Drummond de Andrade publica em As impurezas do branco uma série de poemas intitulada "Quixote e Sancho, de Portinari". Os poemas foram, inicialmente, compostos para acompanhar os vinte e um desenhos executados por Cândido Portinari, que compõem o álbum Dom Quixote de Cervantes, Portinari, Drummond (CERVANTES, PORTINARI, ANDRADE, 1972/3). A leitura de tais poemas suscita uma possível relação entre o gauchismo drummondiano e a personagem Dom Quixote de Cervantes. O objetivo deste trabalho é, pois, apresentar os vínculos entre esses dois elementos baseando-nos não na série de poemas, mas em determinados momentos da obra de Drummond.
Affonso Romano de Sant'Anna em Drummond: o gauche no tempo apresenta-nos um estudo da parte da obra poética de Drummond, compreendida desde Alguma poesia (1930) até Boitempo (1968). Ao longo dos onze livros correspondentes a este período, Drummond cria uma personagem, o poeta gauche — uma projeção de sua própria personalidade — que traça uma trajetória ao redor de seu próprio mundo. Neste percurso, ele assume diversas personae ou "máscaras": José, Carlos, Carlito, K., Robson Crusoé, e outras, as quais seriam desdobramentos da personalidade do autor. Acreditamos que Sant'Anna não tenha incluído Dom Quixote nesse rol porque delimitou seu corpus de 1930 a 1968 e a série de poemas sobre o Quixote só aparece no citado livro As Impurezas do Branco, de 1973; porém, parece-nos evidente que Dom Quixote é mais uma das "máscaras" usadas pelo poeta gauche. As semelhanças entre ambos vão desde simples coincidências até a identificação explícita do poeta com a personagem cervantina. Comecemos pelo batismo das duas personagens.
As condições sob as quais o gauche nasce são apresentadas nos primeiros versos do "Poema das sete faces", de seu primeiro livro Alguma Poesia: "Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.". O poeta, ao nascer é batizado por um "anjo torto", "desses que vivem na sombra". Comparemos com o batismo de Dom Quixote.
O cavaleiro nasce no primeiro capítulo, quando Alonso Quijana concebe a idéia de tornar-se cavaleiro e se auto denomina Dom Quixote, e é batizado, no segundo capítulo, por um estalajadeiro.
Enquanto o poeta gauche é batizado por um "anjo torto", o cavaleiro é batizado por um estalajadeiro, a nosso ver, também torto, pois, segundo o texto cervantino, a personagem é um ladrão, um marginal. Quando Dom Quixote chega à estalagem, chama o estalajadeiro de "castellano" (castelão), pois acha que está num castelo. O estalajadeiro, por sua vez, pensa que Dom Quixote refere-se a castelhano, nascido em Castela. Segundo o narrador cervantino:
Pensó el huésped que el haberle llamado castellano había sido por haberle parecido de los sanos de Castilla, aunque él era andaluz, y de los de la playa de Sanlúcar, no menos ladrón que Caco, ni menos meliante que estudiantado paje. [DQ, I-2].2
A figura do estalajadeiro no Quixote parece estar sempre ligada à marginalidade e até ao demoníaco. Ao longo da obra, temos dois estalajadeiros: o que batiza Dom Quixote e Juan Palomeque "el Zurdo" que, como diz o epíteto, era canhoto, característica ligada ao mal, ao sinistro. O narrador não nos diz o nome do estalajadeiro que batiza o cavaleiro, dando-nos a entender que poderia ser um qualquer, assim como o anjo de Drummond é um anjo qualquer, "desses que vivem na sombra". Obviamente, as semelhanças entre os batismo das duas personagens é mais uma questão de coincidência que de intertextualidade, pois é muito provável que entre a personagem e o poeta inexista qualquer relação de influência no que diz respeito ao batismo do poeta gauche.
A palavra gauche traz em si a idéia do desajustamento ou desajeitamento. O gauche é o canhoto, o sinistro, o desajeitado, o deslocado. Em inglês, equivale ao displaced ou outsider. É o sujeito que está fora de seu centro, à margem.
Sobre este desajustamento da personalidade gauche Sant'Anna nos diz:
Caracteriza o gauche o contínuo desajustamento entre a sua realidade e a realidade exterior. Há uma crise permanente entre o sujeito e o objeto que, ao invés de interagirem e se complementarem, terminam por se opor conflituosamente. Para usar um sinônimo drummondiano, tal tipo é um excêntrico (...); perde a noção das proporções e, colocando-se fora do ponto que lhe seria natural para manter-se em equilíbrio, termina comportando-se como um deslocado, como uma displaced person dentro do conjunto. (SANT'ANNA, 1992, p. 38).
A partir dessa definição, podemos dizer que de certa maneira Dom Quixote também é um gauche, pois nele também verificamos um desajuste entre sua realidade (plasmada a partir dos livros de cavalaria) e a realidade exterior; ele não deixa de ser uma displaced person em seu mundo. Porém, em Dom Quixote esse desajuste é maximizado a ponto de caracterizar-se como loucura e não como timidez. Sant'Anna reconhece que há um vínculo entre o gauchismo e a loucura. Sant'Anna reconhece que há um vínculo entre o gauchismo e a loucura, dizendo que o artista gauche assemelha-se ao neurótico e ao psicótico, diferenciando-se no fato de que a finalidade do artista é obter aprovação do mundo para o qual se volta, enquanto o neurótico, apesar de suas tentativas febris, não consegue fazê-lo.
O gauche é aquele que na vida ocupa um lugar que não é central, que fica à margem dos acontecimentos, que não se envolve, não detém nenhum poder, apenas observa. A nosso ver, nesse ponto, o gauchismo e o quixotismo divergem. O poeta gauche mantém distância dos acontecimentos, fica no seu canto, imóvel, apenas observando. Dom Quixote, por sua vez, vai à luta movido pelo desejo de transformar a realidade, de resgatar os valores nobres da cavalaria e da Idade de Ouro.
A identificação definitiva entre as duas personagens — o poeta gauche, personagem criada por Drummond, que é uma projeção de sua personalidade, e a personagem cervantina — é explicitada no poema "O Malvindo", em Farewell, último livro de Drummond, publicado postumamente, no qual o poeta, já idoso, faz um balanço de sua vida e de sua poesia. Nesse poema, cujo tema é o gauchismo, o "eu" lírico compara-se ao Cavaleiro da Triste Figura.
Vive dando cabeçada.
Navegou mares errados,
perdeu tudo que não tinha,
amou a mulher difícil,
ama torto cada vez
e ama sempre, desfalcado,
com o punhal atravessado
na garganta ensandecida.
Este, o triste cavaleiro
de tristíssima figura
que nem mesmo teve a graça
de estar ao lado de Alonso
e poder narrar eventos
nos quais entrou de mau jeito
mas com sabor de epopéia.
Nada a fazer com este tipo
avesso a qualquer romança
ou ode, apenas terráqueo,
ou nem isso, extraterráqueo,
de quem não se ouve um grito
mais além do que um gemido,
nem uma palavra lúcida
varando o cerne das coisas
que esperam ser reveladas
e nós todos pressentimos.
Inútil corpo, alma inútil
se não transfunde alegria
e esperança de renovo
no universo fatigado
em que repousa e não ousa.
Sua ficha — foi rasgada,
por ausência de sinais.
Seu nome — por que sabê-lo?
E sua vida completa
já nem é vida, é jamais. (ANDRADE, 1996, p. 74-75)
O Malvindo, personagem gauche apresentada nesse poema, assim como Dom Quixote, "vive dando cabeçada". Com relação ao amor, tanto o gauche quanto Dom Quixote tem suas esperanças frustradas. O Malvindo "amou a mulher difícil,/ ama torto cada vez" e Dom Quixote ama uma mulher idealizada.
Além disso, há no poema algumas alusões à loucura gauche e quixotesca: "a garganta ensandecida" e "nem uma palavra lúcida". Com relação ao nome das personagens, não sabemos nem de uma nem de outra: em "O Malvindo", "Seu nome — por que sabê-lo?"; e no Quixote, seu sobrenome "importa poco a nuestro cuento". [DQ. I-1]
Dissemos que enquanto o gauche é aquele que fica imóvel à margem dos acontecimentos, o Quixote, é aquele que luta por seus ideais, como podemos constatar no poema:
(...)
Este, o triste cavaleiro
da tristíssima figura
que nem mesmo teve a graça
de estar ao lado de Alonso
e poder narrar eventos
nos quais entrou de mau jeito
mas com sabor de epopéia.
(...) (ANDRADE, op. cit., p. 74)
ou seja, o gauche é um Dom Quixote mas, ao contrário deste, não age, pois "nem mesmo teve a graça" de "poder narrar eventos" "com sabor de epopéia". Diferentemente de Dom Quixote, ele não promove os acontecimentos, permanece imóvel "no universo fatigado / em que repousa e não ousa".
Tanto Dom Quixote quanto o personagem gauche são grandes perdedores. Neste poema, o Malvindo "perdeu tudo que não tinha"; no "Soneto da perdida esperança", o poeta afirma "perdi o bonde e a esperança"; em "Os bens e o sangue", trata da perda do patrimônio da família: "mais que todos deserdamos/ deste nosso obliquo modo/ um menino inda não nado". A perda comparece muitas vezes não apenas no sentido material, mas também relacionado à derrota. Para Sant'Anna, Drummond é o "poeta da derrota".
Dom Quixote, ao final de seu périplo, também é um derrotado. Primeiro ele, assim como o "Malvindo", "perdeu tudo que não tinha", isto é, perdeu Dulcinéia; depois, é derrotado pelo Cavaleiro da Branca Lua, o que gera a perda de sua liberdade (pois tem de abandonar as armas) e da possibilidade de resgatar os ideais da cavalaria. No caso de Dom Quixote, o sentimento de perda provoca-lhe a extrema melancolia que o leva à morte. García Gibert, em seu estudo sobre a melancolia no Quixote, traz uma explicação psicanalítica para a melancolia quixotesca. Segundo Freud, a melancolia é o resultado de dois sentimentos: o desejo e a perda. Dom Quixote é ferido justamente nos dois, pois tem seu desejo de glória frustrado e sofre várias perdas.
A melancolia também é um sentimento inerente à poesia drummondiana. A própria palavra "melancolia" comparece em vários poemas: "melancolias, mercadorias espreitam-me" (A flor e a náusea); "Em meio a palavras melancólicas,/ ouve-se o surdo rumor dos combates longínquos" (Ode no cinqüentenário do poeta brasileiro); "Entretanto você caminha/ melancólico e vertical" (Não se mate); "O poeta fecha-se no quarto/ o poeta está melancólico" (Nota social).
García Gibert afirma que o processo melancólico de Dom Quixote culmina no "desengaño". Também na poesia drummondiana encontramos a tópica do "desengaño" gerado pela melancolia. Em "Cantiga de enganar" de Claro Enigma:
(...)
Meu bem, o mundo é fechado,
se não for antes vazio.
O mundo é talvez: e é só.
Talvez nem seja talvez.
O mundo não vale a pena,
mas a pena não existe
(...) (ANDRADE, 1992, p. 210)
Também, ao final de "A máquina do mundo", penúltimo poema de Claro Enigma, encontramos este sentimento de derrota e desengaño.
(...)
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas. (ANDRADE, 1992, p. 244)
o seguir vagaroso, de mãos pensas lembra-nos o Dom Quixote voltando para seu povoado, após ser derrotado pelo Cavaleiro da Branca Lua.
Além da melancolia quixotesca, outro elemento que as personagens apresentam em comum é o idealismo. O cavaleiro luta por um mundo melhor, mais justo; o poeta anseia pela tranqüilidade de um mundo idealizado, no qual "não houvesse tantos desejos", conforme o "Poema das sete faces":
(...)
As casa espiam os homens
que correm atrás das mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
(...) (ANDRADE, 1992, p.4)
e no "Poema que aconteceu": "Nenhum desejo neste domingo / nenhum problema nesta vida".
Enfim, na aproximação realizada entre o poeta gauche — personagem criada por Drummond, que seria uma projeção de sua própria personalidade, segundo Sant'Anna — e Dom Quixote pudemos observar que há desde coincidências, como é o caso do batismo das personagens (Dom Quixote e o poeta gauche), até uma identificação mais explícita, como o poema "O Malvindo", no qual o poeta-personagem define-se como o "Cavaleiro de Tristíssima figura". Porém, são as múltiplas facetas do gauchismo drummondiano — como a loucura, a melancolia, o desengaño e outras — que nos permitem estabelecer vínculos mais evidentes entre a personagem gauche e a cervantina.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Carlos Drummond de. As impurezas do Branco. Rio de Janeiro, José Olympio, 1973.
____________________________ Farewell. Rio de Janeiro: Record, 1996.
____________________________Poesia e prosa. 8ªed. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1992.
CERVANTES, M. de. PORTINARI, Candido. ANDRADE, C. Drummond de. Dom Quixote. Rio de Janeiro: Diagraphis, 1972/3.
CERVANTES, M. de. Don Quijote de La Mancha. 2ªed. Edición del Instituto Cervantes. Dirigida por Francisco Rico. Barcelona: Instituto Cervantes, 1998.
GARCÍA GIBERT, Javier. Cervantes y la melancolía. Ensayos sobre el tono y la actitud cervantinos. Valencia: Ediciones Alfons el Magnánim, 1997.
SANT'ANNA, Affonso Romano de. Drummond: o gauche no tempo. 4.ed. Rio de Janeiro: Record, 1992.
1 Este texto é um é um extrato sintetizado de nossa dissertação de Mestrado, intitulada Dois Quixotes brasileiros na tradição das interpretações do 'Quixote' de Cervantes.
2 Para este trabalho utilizamos a edição do Instituto Cervantes, dirigida por Francisco Rico.