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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Out. 2002

 

Língua de tradição e língua técnica uma sondagem no universo poético de Dom Quixote

 

 

Celia Regina De Barros Mattos

Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

 

Considerando que o paradigma metafísico é o grande suporte da modernidade. Considerando que não muito distante de Cervantes, nascido em 1590 e com discurso semelhante ao do personagem Dom Quixote, para quem os encantadores desfiguram a realidade: ''Supondré.... que.... algún genio maligno de extremado poder e inteligencia pone todo su empeño en hacerme errar; creeré que el cielo, el aire, la tierra, los colores, las figuras, los sonidos y todo lo externo no son más que engaños'', em suas ''Meditacões metafísicas'' de 1641 René Descartes também lança mão dos ''genios'' como instrumentos desafiadores e supera a ''dúvida hiperbólica'', fundamentando no ''EU'' a primeira verdade indubitável da qual surgirão todas as demais, verdades sobre as quais o filósofo alemão Martin Heidegger centra sua atenção ao investigar o pensar do ocidente. Considerando por fim, fenômenos tão próximos- Quixote/Metafísica/Heidegger/Modernidade, vale a pena revê-los.

Como já exposto na comunicação que teve lugar no Congresso anterior (2000), ocasião em que o anteprojeto, recém aprovado pelo Departamento de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ, habilitou-me ao Doutorado em ''Poética'' e foi ali apresentado, a base de sustentação desta pesquisa instalou-se a partir de uma intrigante contradição entre estimativas e resultados do tão esperado progresso da humanidade, exposto no projeto civilizatório, cuidadosamente elaborado no século XVI.

A crise constatada e amplamente discutida no apagar das luzes do século XX denunciam o empreendimento da razão como responsável pelo grande equívoco ocidental no que tange à verdade.


Embora Antonio Maravall, em seus estudos sobre os ''antiguos y modernos'', visse a força da experiência pessoal, sustentada pelo ''princípio de autoridade'', como uma ameaça à habitual veneração daquela época ''...por los antiguos'', quando se refere aos gregos; ao ponto de que ''...acabará desbancándoles de su autoridad'', Heidegger desfaz tais suspeitas não só ao insinuar que os gregos não foram desbancados, como também ao localizar a partir dali, os desdobramentos que posteriormente configuraram o paradigma metafísico.

Tal evidência vê-se justificada na revisão do ''mito da caverna'' onde Heidegger descobre os vestígios dos germes da essência da verdade, lançados em solo grego.

Não foram desbancados os gregos. Ao contrário do que supunha Maravall, a verdade já tinha ali raízes tão fortemente instaladas que, na emergência da razão no renascimento, momento em que o resgate da cultura clássica floresce no pensamento do ocidente, lhe imprime a marca de ponte para a modernidade.

Desse contexto emerge Dom Quixote exibindo evidências claras e indiscutíveis: ''...la razón de la sinrazón que a mi razón hace, de tal manera mi razón enflaquece, que con razón me quejo de la vuestra fermosura.'' – fragmento do primeiro capítulo do texto de Cervantes, além da contribuição de Juan García Bacca com a pesquisa que, ao comprovar ''unas 5000 razones'' que ''irrumpen'' das páginas de Quixote, torna inequívoca a relação Dom Quixote X Razão.

Os dados até aqui apresentados objetivaram justificar as aproximações inicialmente apresentadas onde, a partir delas propõe-se uma revisão.


É transitando nesse espaço que se encontra a pesquisa à qual nos estamos dedicando e que neste momento abre uma clareira de reflexão, responsável por este trabalho.


Revisão da modernidade pela via da ficção – Uma leitura heideggeriana do texto Dom Quixote de La Mancha, este é o tema de nossa pesquisa.

Para o seu desenvolvimento, necessário se faz um aprofundamento no pensamento do filósofo, a partir do qual buscam-se elementos que atravessem o texto de Cervantes.

O tema aqui selecionado - ''Língua/Linguagem'', deriva de outro, cuidadosamente estudado por Heidegger: a Técnica; embora pareçam absolutamente díspares.

Segundo Heidegger, a razão tecnológica, também retomada por um estudioso de seu pensamento – José Carlos Michelazo, bem aceita e por todos valorizada, tem um papel determinante nas fissuras que sofreu o pensamento do ocidente.

Ao nos referirmos à técnica somos provocados a pensar em máquinas e aparelhos. Entretanto a máquina e os aparelhos são o que nada têm de técnico. Dessa maneira somos provocados ainda mais a investigar o que é, afinal, a técnica.

A partir da revisão das 4 causas aristotélicas, Heidegger chega aos fundamentos da técnica e conclui que o que os gregos chamam de ''causa'' não tem relação com seu significado original; técnica como ''techné''.

Se seguimos a sugestão de que técnica é um meio, privilegiando seu caráter instrumental para produzir algum fim, se lançamos mão do princípio grego de causalidade, concluiremos que, antes de ser instrumento ou meio, a técnica é modo – um modo do ''fazer-vir'', um modo de desvelamento, aquilo que é responsável por algo, aquilo que deixa vir a dar-se na presença.

Vê-se então que o que está na base das 4 causas é a essência da técnica e esta coincide com o fundamento da verdade como ''aletheia'' ou seja, da verdade como desocultamento, como aquilo que estava oculto e se desvela. Só nesse jogo de deixar sair do oculto é que descansa a possibilidade de toda elaboração produtora e criadora.

A essência da técnica é, para os gregos, ''aletheia'', para os romanos ''veritas'' e para nós ''verdade''. Entretanto o grande equívoco ocidental, resgatado em sua origem por Heidegger no mito da caverna e mais adiante em Kant, para quem a verdade só se torna possível ''a partir da essência humana enquanto subjetividade, segundo a qual ''os objetos se conformam com nosso conhecimento''. HEIDEGGER. Sobre a essência da verdade p.23, abriu um abismo entre a essência da técnica/aletheia e a verdade, porque esta degenerou-se em ''correción del representar'' HEIDEGGER. La pregunta por la técnica p. 15, em mera adequação do objeto à enunciação, promovida pelo intelecto.

Vale lembrar que esse modo de desvelamento, esse fazer vir a dar-se, o trazer à presença pode acontecer em dois níveis: um ''fazer aparecer'' no sentido artesanal onde no trazer a imagem artístico-poética, a eclosão não se dá no mesmo, e sim no outro (artista/artesão). E ainda o fazer aparecer como emergir desde si mesmo, como o eclodir das flores, por exemplo. Tal constatação, além de aproximar o fazer produtivo do homem ao fazer da natureza, justifica o dizer de Heidegger: ''La techné pertenece al traer-ahí-delante, a la ''poiesis'', es algo poiético''. HEIDEGGER. La pregunta por la técnica. p.19

Se a essêcia da técnica é o fazer sair do oculto, o trazer à presença o que até então estava oculto, se essa marca essencial era para o pensar grego adequada para a técnica do artesão, o que a teria desfigurado no que tange à técnica moderna?

O rasgo fundamental da técnica moderna é a ''provocação''.

Nesse ponto a técnica se desvirtua do desvelamento e, conseqüentemente, da ''poiesis''. A técnica moderna, ao relacionar-se com a natureza, obriga-a de todos os modos a liberar suas forças com vistas a dela tirar toda energia e riqueza.

Ao apresentar tal evidência, Heidegger faz a defesa das tecnologias brandas, como aquelas que caracterizavam o ''cultivar'', quando ainda guardava o sentido primordial de ''abrigar e cuidar''. O camponês ''en la siembra del grano, entrega la sementera a las fuerzas de crecimiento y cobija prosperar''. Do mesmo modo, no tocante ao moinho de vento; ''sus aspas se mueven al viento, quedan confiadas de un modo inmediato al soplar de éste''. HEIDEGGER, La pregunta por la técnica, p. 19. Já as tecnologias pesadas aprisionam e controlam. Desse modo uma usina hidroelétrica jamais revelará o rio, como o moinho o faz com o vento. Controlada, a natureza só esconde, nada revela.

Heidegger nos lembra que o desvelamento do real não é algo do qual o homem disponha. O real e efetivo não está a mercê do poder do homem (entenda-se real e efetivo como a essência do ''não-velamento'' que Platão desvitalizou quando escravizou o ''ente'' à ''Idéia'', enquanto fundo de toda e qualquer manifestação sensível), mas o homem por equívoco e sem cerimônia o pratica. E embora, reconheça o dramático da situação vivida, não vê a possibilidade do homem igualar-se à natureza porque sua própria condição humana o provoca do modo mais originário.

Michelazzo é mais dramático quando afirma que nem mesmo o homem escapa dessa provocação – ''a um estar exposto à solicitação para liberação de energias''. Do mesmo modo que a usina e o avião, o homem também faz parte do ''fundo de reserva'' e é também tomado como material e recurso humano.

Entretanto, esse mesmo dado, visto por outro prisma, o promove porque, ao mesmo tempo, ainda que de um modo menos visível, o real também provoca o homem, na medida em que dele esconde suas energias, desafiando-o a sempre procurá-las e encontrá-las. Desse provocar recíproco só o homem participa, essa é de tal forma a sua marca que ''...el hombre sólo puede ser hombre en cuanto que interpelado así.'' HEIDEGGER. La pregunta por la técnica , p.9/37.

O que não se pode perder de vista é o quadro que o tempo em que vivemos revela; os efeitos devastadores que ''vontade'' e ''técnica'' trouxeram para o olhar do ocidente, tirando-lhe qualquer possibilidade de luz, porque esse olhar destituiu o mundo de brilho e profundidade. Essa constatação se deve ao 3 monstros que, segundo Michelazzo, já vinham represando força titânica desde o início da modernidade. São eles: devastação da terra, massificação do homem e a fuga dos deuses.

Conseqüentemente, tomada como fundo de reserva, ''a terra se torna incapaz de repor suas energias e em pouco tempo ela se transforma num grande torrão ressecado e estéril'' MICHELAZZO. P. 164. O homem , também explorado como fundo de reserva, agora é ''massa'' e, totalmente indiferenciado e desfigurado de seu ser real, ''Este homem, [...] é aquele perfeitamente adaptado ao mundo do trabalho para alimentar as forças de produção. Ele é, na verdade, animal de carga'' MICHELAZZO. P. 166. E os deuses, onde estão? Heidegger responde: ''Fugiram'', ''desapareceram'', ''afastaram-se'' porque, desafortunadamente, '' o mundo perdeu o seu fundamento que dá o sentido às coisas e ao homem'' MICHELAZZO. p. 169. Nada mais tem sentido e esse ''vazio'' que o homem tenta desesperadamente preencher trasveste-se de um fenômeno que muitos ainda insistem chamar de ''pós-modernidade''.

Falta-nos ainda estabelecer as conexões necessárias com a linguagem, tema em que está centrado este trabalho e que lhe dá título.

Língua de Tradição e Língua Técnica.

O homem é o único ser capaz de palavra. É enquanto ser falante que o homem é homem.

Entretanto é fundamental que se estabeleça aqui o sentido radical de falar e dizer. Língua não é, de nenhum modo, um simples instrumento de troca e de comunicação. Mas é exatamente essa concepção corrente da língua que se vê avivada pela dominação da técnica moderna. Assim, a língua passando pelo mesmo processo da técnica com a natureza, reduz-se à proposição, faz-se informação. Isso porque falar é essencialmente dizer e o homem já não diz, fala. O falar pertence à língua técnica e, submiso a ela, impõe, faz aparecer. Enquanto o dizer, não impõe, deixa aparecer naturalmente. Mas o que pode verdadeiramente dizer o homem? É claro que só aquilo que se mostra de si próprio e a ele se dirige.

Mas a língua como forma de representação do mundo é um conjunto de sinais, uma capacidade que o homem partilha, até um certo grau, com as máquinas que desenvolveu (língua como produção de sinais, envio de mensagem). Sinais que funcionando de forma unívoca, apontam para um enunciado determinado, captado de forma abstrata e lógica. Essa univocidade, do mesmo modo que o represar do rio assegura um sistema rígido de direcionamento para o uso, ela também garante a possibilidade de uma comunicação rápida, também direcionada para o uso e assim, o estilo de uma língua acaba sendo determinado a partir das possibilidades técnicas de produção formal de sinais com os quais podem-se alimentar as máquinas, através de programas. Nesse caso, um poema, por princípio jamais pode ser programado, o que mostra o quanto a técnica é a agressão mais perigosa ao caráter próprio da língua e, ao mesmo tempo, uma ameaça contra a essência mais própria do homem.

A contrapartida é a língua de tradição. Enquanto a língua técnica entra no processo da ''usura'' a língua de tradição se dá como ''salvaguarda'' preservando a língua conservada para que o homem possa dizer sempre e de maneira renovada, o mundo; permitindo que se mostre o ainda não apercebido. No dizer vem também à aparência, o ausente como tal. Só a língua de tradição revela a dimensão salvadora que se abriga no segredo da língua porque só ela conduz ao inexprimível, ao inefável.

A língua de tradição encontra amplo espaço na poesia. Essa é a missão do poeta, atualizar sempre o leque aberto de possibilidades e relacionar-se com a totalidade do que foi, é e será.

Toda reflexão de Heidegger sobre o ser do homem irradia-se do eixo – linguagem. E se voltamos nosso olhar para a antigüidade clássica, ali surpreenderemos duas tradições: uma que aponta para o modo de pensar original realizado pelos pré-socráticos – um pensar totalizador em que a ''physis'' em tudo estava presente; e outro, derivado deste, que é o modo de pensar da filosofia em que a realidade, já fragmentada pela ''idéia platônica, delega poderes à subjetividade, banalizando o objeto. É aí exatamente que Heidegger fixa as bases para afirmar o ''esquecimento do ser''.

Esse pensar que fragmenta a realidade onde, ainda que se reconheça o ser, todo e qualquer empreendimento para surpreendê-lo, acaba focalizando o ''ente''. Esse pensar é o que caracteriza a metafísica, timidamente iniciada por Platão e radicalizada por Descartes quando o existir aparta definitivamente o ser. Foi esse pensamento que abriu caminho e fortaleceu a ''língua técnica'', onde o sujeito ordena o mundo e o reduz a partir de sua vontade – a ''vontade de poder'' com que Nietzsche substituindo a escravatura da racionalidade, coloca como fundo do real.

O mundo passa a ser o que dele o homem diz, justapondo proposições que não dão conta da ''coisa'' e inibem a realidade. Entretanto a língua de tradição, experienciada pelos pensadores originais, abre-se à totalidade porque deixa falar o ser de todas as coisas.

Dessa forma, tendo a língua técnica já dominado o universo da informação, resta ainda ao homem a possibilidade de resgate da experiência original através do pensamento e da linguagem, através da ''poiesis''.

Necessário se faz que incluamos aqui o empenho de Heidegger na busca da origem da obra de arte.

No livro de mesmo nome, Heidegger, para captar a origem da obra de arte e chegar ao fundamento _ ao ''ser-obra da obra'', parte do ser da ''coisa''. Reconhece no utensílio a via que dará acesso à verdade da obra e, a partir de um quadro de Van Gogh que exibe um par de sapatos de camponesa, conclui que a essência do utensílio sapato – a solidez, só se manifestou porque foi, o sapato, feito obra. A pintura não trata de um sapato qualquer, um sapato abstrato, presente no pensamento do homem, sobre o qual a lógica racional impõe verdades; nem da descrição e explicação do utensílio sapato; nem é o relato sobre sua fabricação e utilização porque tudo isso participa do ''intra-mundano'', onde prevalece o ordinário, muito bem representado pela língua técnica.

No quadro, não é Van Gogh quem fala, mas a obra. Porque, sendo obra, leva-nos à experiência de um outro lugar que não aquele em que, habitualmente, costumamos estar. É a experiência do extraordinário. Só no extraordinário da obra, pode-se saber o que o utensílio calçado é na verdade.

Codificado em língua técnica, o calçado não passaria de mera representação, esvaziado de significação e sentido. Na obra de Van Gogh, o calçado não é representação, é presentificação que traz à luz a verdade porque, feito obra, ali instala um mundo e, a solidez de um simples sapato de camponesa, dá acesso a diversas vias de possibilidades. O quadro abre então, a abertura por onde o ente-sapato emerge no desvelamento do ser. Só assim, com a abertura do ente, é que se põe em obra o acontecer da verdade.

Muitas são as vias de entrada no texto de Cervantes. Esta é uma de suas possibilidades: A busca da verdade da obra Dom Quixote de La Mancha, via ''poiesis'', via ''língua de tradição''. Se por ela optarmos, este intróito já forneceu base suficiente para procedermos, na conclusão, à uma sondagem do universo ficcional de Quixote, lançando mão de um procedimento fundamental: deixar a obra em seu puro ''estar-em-si-mesma'' de modo a acenar-nos com alguns sinais que apresentaremos a seguir, a título de orientação.

Vale lembrar que, considerando o estado prematuro da pesquisa e, corroborando o título deste trabalho, nossa proposta se restringe a abrir uma clareira no suporte teórico heideggeriano e, a partir dele, realizar uma ''sondagem no universo poético de Dom Quixote'', obra de Miguel de Cervantes.

1- O que ocupará lugar de destaque em nossas considerações é o novo modo de ver a obra de arte proposto por Heidegger: a obra de arte erige a verdade do ente, tornando visível o seu ser. Esta é uma definição nova para a essência da obra de arte porque até então, esta esteve estreitamente comprometida com ''o belo'' e não com ''a verdade''.

2- Se a obra de arte é um puro ''estar-em-si'', deve libertar-se, deixar livre, retirando tudo o que é ''outro''. ''...é isso que visa o mais autêntico intento do artista. Através dele, a obra deve estar-em-si-mesma.'' HEIDEGGER – Origem da obra de arte, p.31

O autor da ''Grande obra'' anula-se, coloca-se indiferente, não deixando sinais seus porque ele é também aquilo que não é o ''si próprio'' da obra. Em resumo, tira todos os sinais de realidade da obra, a ''DESREALIZA''.

Se a obra de arte é um desrealizar, Quixote integra-se perfeitamente a essa característica, já que expressa o que, absoluta e indiscutivelmente, está fora do âmbito do real na Espanha daquele momento. Em Quixote, o puro ''estar-em-si'' ganha tal dimensão, a obra liberta-se em tal nível que o autor desaparece no intrigante jogo da autoria, jogo que por sua vez desencadeia o jogo da verdade. A quem pertence a história? Quem a conta? Quem está com a verdade, Cervantes, Cid Hamete ou Avellaneda?

3- A obra de Cervantes instala um mundo que se desvela e traz a esse aberto um cavaleiro diacrônico. Mas é preciso atenção para não crer que é só no aberto que a obra está. A obra também está no que permanece velado. Não como trancamento irreversível mas como cuidado e proteção. É o que Heidegger chama de ''salvaguarda''. O fechar-se é, antes de tudo, um mar de possibilidades. Neste caso, cabe mencionar a variedade de pontos de vista que, resultante de uma multiplicidade de leitores, ao ponto dos personagens lerem a si próprios, garante um jogo narrativo. Esse jogo, abrindo-se a múltiplas perspectivas, possibilita infinitas leituras.

4- O que dá sentido e significação ao sapato da pintura de Van Gogh é seu caráter instrumental que só é determinado pelo sapato de camponesa, por estar no pé da camponesa, por a camponesa nele pensar, por um olhar cotidiano que a camponesa lhe dirige, por senti-lo em seus pés na lida do campo. Não é um par de sapatos comum, geral e abstrato. Aí está a grandeza da obra de arte: apesar da pintura não estabelecer onde se encontram os sapatos, apesar de não haver nada que a ele se integre, denunciando sua utilização, como por exemplo um torrão de terra, apesar de ser um par de sapatos de camponesa e nada mais, eles nos dizem algo, a partir do que neles se colocou em repouso. Só na obra, pode emergir o ser da coisa – a ''coisidade da coisa''.

Dom Quixote, inserido naquele contexto da obra, deixa de ser um cavaleiro comum. Do mesmo modo que a pintura leva o sapato e junto nos leva a outro lugar, a um lugar extraordinário, também a obra de Cervantes coloca Dom Quixote fora do seu lugar ordinário.

Embora em Dom Quixote, seu caráter de paródia lhe atribua sinais típicos de um cavaleiro, ainda que distorcidos e deslocados, não se deve levá-los em consideração porque não se trata de uma simples paráfrase como aquelas com as quais se reduplicavam as ''novelas de cavalaria''. Não se deve considerá-los porque não serão tais sinais, os responsáveis por dar-lhe sentido e significação. O que lhe dá sentido e significação é aquilo que nele vai repousando a partir de seu estar e agir no mundo, a partir do que a aventura do dia-a-dia vai fazendo experiência.

5- Além disso é flagrante a questão da ameaça que representa o ''pensamento abstrato'' e a ''língua de informação'' que já se anunciava naquele momento da criação de Quixote.

No episódio do ''Caballero de los espejos'' em que, apesar de em suas ações ser Dom Quixote ''disparatado, temerario y tonto'', tudo o que falava era ''consertado, elegante y bien dicho'' e também no episódio dos leões quando, depois de por força querer lutar com o leão que viajava numa carroça como presente para o rei e sem consegui-lo, Dom Quixote, com toda lucidez, recomenda ao ''leonero'' que conte aquela aventura ao rei, com a intenção de obter glória e fama.

Tudo isso nos leva a desconfiar, tratar-se de um alerta no que se refere à linguagem como lógica e abstração, pura representação no jogo de oposição entre falar e agir, entre loucura e lucidez. Sem contar com o forte índice de que a linguagem, como saber e como dizer, já estava cedendo lugar à ''linguagem de informação'' na Espanha de Quixote. Basta comparar os fragmentos: ''Pues si acaso su Majestad preguntare quién la hizo, diréis que el Caballero de los Leones; que de aquí adelante quiero que en éste se trueque, cambie, vuelva y mude el que hasta aquí he tenido de el Caballero de la Triste Figura''.Dom Quixote de La Mancha CAP.XVII 2a p. e '' No universo da técnica, a linguagem como dizer e mesmo como saber cede o lugar à informação: .... o conjunto de notícias que é necessário difundir para que a opinião pública entre nestes processos.'' HEIDEGGER – Língua de tradição língua técnica, p. 51

6- Ao jogo velar/desvelar que revela o ser, Heidegger, no produzir da obra de arte, chama de terra/mundo. Terra simboliza o que guarda, esconde, cuida e vela e mundo é a abertura, o manifestar-se daquilo que estava escondido na terra.

Aí reside o fenômeno que Heidegger chama de ''salvaguarda'', garantido pelo leitor ao qual, em qualquer tempo e espaço, a obra pode mostrar-se no aberto.

Poder-se-ia afirmar que na obra de Cervantes, a salvaguarda adquire ampla proporção, na medida em que tem no ''leitor'' um ingrediente fundamental.

Assim, na figura de Quixote, o leitor inveterado de ''novelas de caballería'', ''el ratón de bibliotecas'', sai da ocultação da terra e, na emergência da obra, instala mundo. Do mesmo modo que o sapato posto em obra passa a pertencer ao mundo da camponesa, também o universo da cavalaria lido e posto em obra, passa a pertencer ao mundo do leitor. Tanto daquele que até o início do séc. XIX, bem como ''...toda crítica baseou-se no ponto de vista de que se tratava de uma sátira do romance de cavalaria'' HAUSER. Maneirismo, p. 407, justificando, sob este ponto de vista o episódio dos moinhos: ''... los molinos se han convertido, en la mente de Don Quijote, en gigantes porque en los libros de caballerías abundan estos seres de monstruosas proporciones, muchas veces, llamados ''jayanes''. RIQUER. Aproximación al Quijote. P.98, como de um leitor do séc. XXI quando em novo ''abrir-se'', a obra pode fazer emergir novo ''mundo'', como este que nossa leitura propõe.

Nessa nova emergência, a obra de Cervantes pode indiciar o monstro da ''técnica'' que, do mesmo modo que ''... la esencia de la técnica moderna, se ocultó por mucho tiempo'' aos nossos olhos desavisados mas que na salvaguarda da fala de Dom Quixote; ... ves allí, amigo Sancho Panza, donde se descubren treinta o poco más, desaforados gigantes, con quien pienso hacer batalla y quitarles a todos las vidas, con cuyos despojos comenzaremos a enriquecer; que ésta es buena guerra, y es gran servicio de Dios quitar tan mala simiente de sobre la faz de la tierra'' ; agora pode emergir.

Considerando dois pontos de vista; no que se refere à obra, concluímos que no ponto terminal de um itinerário em que a figura de Platão marca o ponto de partida no longo caminho de dominação metafísica, caminho esse também percorrido pelo Humanismo; nesse ponto encontra-se o homem metafisicamente determinado que ''...não pode mais que errar (entendido o sentido do termo ''errância'' em Heidegger) através dos desertos da terra devastada, perambulando por um mundo sem nenhuma transcendência, destituído de qualquer divindade'' . MICHELAZZO p. 167

Não seria Quixote esse homem que em sua ''errância'' nos convida a percorrer os caminhos da metafísica na ''errância'' que definiu o destino historial do homem moderno?

Se avaliamos o pensamento de Heidegger, aqui veiculado, segundo o ponto de vista do autor, concluimos que Cervantes, vítima do empobrecimento lamentável que sofreu o entendimento da história para o pensar do homem moderno, tornando-se ''o simples resultado da informação, esquecendo-se o processo e o vigor do processo'' CASTRO. O acontecer poético, p.38 só depois de muito lutar para deixar impresso seu nome na historiografia, consegue tornar-se ser histórico e ascender, conquistando glória e fama. Isso só lhe foi possível por pertencer ao grupo daqueles ''certos mortais'', a que se refere nosso filósofo. Só assim, depois de ter atingido ''o mais fundo no abismo da indigência e do infortúnio, que chegaram em primeiro lugar ao perigo'' HEIDEGGER. Língua de tradição e língua técnica, p.63, tocado pela ''poiesis'', no ''aberto da Linguagem'', pode promover a viragem.

 

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