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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002

 

Perlas y aljófar: sobre o significado das oposições estruturais no Quixote I

 

 

Heloísa Pezza Cintrão

Universidade de São Paulo

 

 

Numa das histórias intercaladas do Quixote I, chamada por Cervantes de ''o conto do cativo'', parte substancial do relato consiste na narração da fuga do cativeiro e retorno à pátria de um ex-soldado espanhol prisioneiro dos mouros em Argel durante muitos anos. Sua fuga tem sucesso graças à importante ajuda da árabe Zoraida. Ela o ajuda porque, após um chamado de fé da Virgem Maria, havia decidido sair de seu país para viver entre os cristãos.

Nessa pequena ficção dentro do livro, vários traços de construção narrativa vão indicando que o mundo mouro no qual o protagonista-narrador vive sua aventura de libertação parece estar traçado para representar algo mais do que o mundo histórico do cativeiro de Argel, cativeiro que havia sido experimentado pelo próprio Miguel de Cervantes.

Um índice importante nesse sentido está na construção das personagens: por um lado, nos diferentes graus de hibridação critão-mouro que todos apresentam quando enfocados isoladamente, por outro lado, em um tipo de oposição subliminar que os vincula em pares opostos quanto a seus valores e opções de (inter)ação no mundo, dentro de uma mesma moldura temática. Essa moldura temática comum é a da dualidade mundo-espírito, em permanente oposição dentro desse conto.

Começaremos com esses dois aspectos da construção de personagens dentro do conto do cativo. Falaremos de outros índices dessa oposição em algumas imagens construídas dentro do mesmo conto, que parecem ser significativas quando relacionadas à construção de personagens, e terminaremos procurando estender dessa análise mais detida a uma das questões estruturais bastante discutidas pela crítica cervantina: a convivência de estruturas narrativas idealistas e realistas, ou das formas novel e romance, romance e romanesco, dentro do Quixote I e de toda ficção de Miguel de Cervantes.

 

Argel: mundo mouro ou de renegados cristãos vs. cristãos cativos?

O conto do cativo trabalha com uma quase absoluta predominância de personagens híbridas quanto à sua religiosidade e/ou quanto à sua nacionalidade. Os dois importantes chefes militares do mundo do cativeiro, Uchali Fartax e Azan Agá, são renegados italianos. O renegado murciano, que tem importante participação para viabilizar a fuga do cativo e de Zoraida, é uma das personagens que recebe mais destaque no conto. Ele faz um duplo trânsito religioso: primeiro do cristianismo à religião muçulmana, para depois voltar ao cristianismo. Zoraida, por sua vez, é uma muçulmana que se converte ao cristianismo.

As personagens que não se compõem com esse tipo de hibridez cultural ou religiosa em sua caracterização ficam restritas ao cativo e a seus companheiro de cativeiro (todos espanhóis cristãos), a cativa cristã que havia educado Zoraida, Agi Morato, pai de Zoraida, e o apenas mencionado Arnaute Mami. Entre elas, todas as personagens cristãs participam da hibridez em outro sentido: são pessoas imersas, contra a sua vontade, numa cultura alheia e hostil. Quanto aos mouros, embora o cativo não forneça este dado em sua narração, Agi Morato e Arnaute Mami foram personagens históricas e eram ambos renegados do cristianismo. As personagens que o conto do cativo nos apresenta movendo-se no espaço mouro de Argel são, ou renegados cristãos, ou os cristãos que eles mantêm cativos e oprimidos.

 

Enseadas e cabos, perlas y aljófar: discernimento por pares de opostos

Outro dado que marca fortemente a caracterização de personagens são os vínculos que se estabelecem entre a caracterização de várias delas, que parecem constituir pares confrontados, caras opostas, estar construídas para que se estabeleça um contraponto entre umas e outras, de maneira a mostrar posicionamentos muito diferentes em situações éticas, morais ou religiosas muito semelhantes.

Uchali Fartax e Azan Agá são renegados do cristianismo que conseguiram destaque social, poder e riqueza no mundo muçulmano, apesar de uma origem humilde. Ao mudar sua religião, mudaram também sua condição social de origem, e as duas coisas aparecem interligadas neles: sua ascensão social e material é conseguida às custa de sua queda espiritual, levando em conta o ponto de vista cristão do conto. Outra personagem que muda de religião, desta vez protagonista, faz o caminho inverso: Zoraida é uma muçulmana de origem que escolhe ser cristã. O renegado murciano afirma que, ao fazê-lo, ela saiu ''de las tinieblas a la luz, de la muerte a la vida y de la pena a la gloria''1. Sua ascensão espiritual é conseguida às custas de sua queda social e material: a rica filha de uma das personagens mais eminentes de sua terra natal chega à Espanha apenas com a roupa do corpo.

Outro contraponto implícito importante é feito entre Zoraida e a Cava Rumia. Esta personagem histórica é apenas mencionada no conto, no momento em que os fugitivos já estão no mar e são obrigados, pelos ventos e pela turbulência do mar, a ancorar um pouco nas costas da Barbaria. Eles ancoram em uma enseada que fica ao lado do promontório chamado de la Cava Rumia pelos mouros. O narrador explica que cava quer dizer ''mala mujer'', que rumia significa ''cristiana'', e que o cabo havia recebido esse nome porque era tradição entre os mouros dizer que ali estava enterrada a ''mala mujer cristiana'' por quem a Espanha se perdera. Trata-se de uma referência à filha do conde dom Julián. Dela, a tradição popular contava que havia orientado os mouros para a conquista da Espanha com o objetivo de se vingar de dom Rodrigo, último rei godo, que a havia enganado. A Cava entra, portanto, no conto, como outra personagem que transita entre o mundo cristão e o mouro, e que, por motivos parecidos aos de Uchali Fartax, para conseguir uma vingança, trai os cristãos. Em seguida à referência à Cava, o narrador conta que:

Diose orden, a suplicación de Zoraida, como echásemos en tierra a su padre y a todos los demás moros que allí atados venían, porque no le bastaba el ánimo, no lo podían sufrir sus blandas entrañas, ver delante de sus ojos atado a su padre y aquellos de su tierra presos.

Enquanto a Cava havia traído seu povo por motivos pessoais, Zoraida se empenha em não deixar os de sua terra expostos a serem levados como cativos, empenha-se por não ser responsável por essa traição. O espaço do conto parece materializar o contraponto entre as duas mulheres, suas atitudes opostas. Os fugitivos ancoram numa enseada, uma parte de mar que entra na terra. Diz-se que essa enseada ''se hace al lado'' do promontório da Cava Rumia. O promontório ou cabo é espacialmente uma oposição exata da enseada, um pedaço de terra que entra no mar. Esse ''s'' traçado por enseada e cabo colocados lado a lado transpõe espacialmente o sentido oposto da ação de Zoraida (na enseada) e a da Cava (no promontório) para com os de sua terra e origem e para com a religião cristã.

Na mesma passagem são traçados ainda dois contrapontos. Os cristãos fugitivos libertam os seus prisioneiros mouros. O tratamento dado por esses cristãos àqueles que eram considerados na época seus capitais inimigos constrasta, em primeiro lugar, com o tratamento que haviam recebido nos longos anos em que haviam estado cativos desses seus inimigos em Argel. Apesar de terem a oportunidade de se vingar, eles não o fazem. Tiveram que pagar por sua liberdade e, no entanto, dão de graça a liberdade aos que antes os mantiveram cativos. Na seqüência imediata, esses mesmos cristãos são capturados por franceses, cuja atitude para com eles é inversa, no que se refere à oposição cobiça-liberalidade: os franceses lhes roubam tudo o que podem. O narrador frisa a cobiça dos franceses e considera que esses piratas os tratam ''como si fueran nuestros capitales enemigos''. Esses confrontos mostram, por um lado, atitudes opostas para com os inimigos, por outro, atitudes opostas quanto à cobiça de dinheiro.

Tais espelhamentos são característicos do conto todo. Uchali Fartax é caracterizado com algumas semelhanças com o capitão cativo, no que se refere à sua história de vida. Ambos passaram anos remando nas galeras turcas e permaneceram cativos durante quatorze anos. Pelos dados que o conto nos dá, podemos supor que devem ter sido capturados mais ou menos com a mesma idade (por volta dos vinte e dois anos). Mas essas coincidências os opõem quando vemos que Uchali Fartax renega depois de quatorze anos, para poder se vingar de uma bofetada que lhe dera um turco, enquanto que, durante o mesmo período de tempo, em Argel, o cativo luta por manter acesa sua esperança de liberdade e por fim a atinge. Mostram atitudes opostas quanto às humilhações do cativeiro e quanto à manutenção da fé religiosa e da esperança de liberdade.

Uchali Fartax renega e ainda contribui para conduzir outros cristãos pelo mesmo caminho, como faz com Azan Agá, a quem captura com vinte anos e seduz com regalias a ser um de seus pincipais garzones. O caso da sedução de Azan Agá não é um caso isolado, segundo se entende quando o cativo comenta que, ao morrer, Uchali Fartax deixara divididos seus escravos entre ''seus renegados''. A morte de Uchali Fartax aparece mencionada logo de entrada no conto, e podemos supor a perda de sua alma, se considerarmos suas possibilidades de salvação de acordo com os preceitos cristãos. Em contraponto com ele, no sentido de angariar renegados para a religião muçulmana, está a cativa cristã que educa Zoraida no cristianismo desde criança, que morre como cativa e da qual a moura nos revela que ''sé que no fue al fuego, sino con Alá''. São atitudes opostas quanto à firmeza das convicções religiosas e quanto ao tipo de proselitismo, o modo como este é levado a cabo, e o final a que conduz em cada um dos casos. O resultado do proselitismo materialmente sedutor de Uchali Fartax é principalmente o poderoso e rico renegado Azan Agá, que a cada dia tortura e mata cristãos em Argel. O resultado do proselitismo espiritualmente desinteressado da cativa cristã é uma Zoraida pobre e totalmente voltada à religiosidade, e que dá liberdade a vários cativos cristãos, no conto.

Outros contrapontos poderiam ainda ser mencionados. Os já expostos parecem suficientes para indicar sua importância dentro da estruturação de personagens no conto. Eles parecem estar a serviço de um tipo de trabalho de discernimento feito com base em confrontos de pares de opostos, especialmente necessário nesse mundo híbrido, em que é necessário ir discernindo o que está misturado e confuso em um mesmo espaço, onde as linhagens se confundem, o prestígio social é duvidoso, os interesses podem levar a uma inversão dos valores que protagonizam o conto: a virtude e a verdadeira espiritualidade.

Ao descrever a primeira visão que tem de Zoraida no jardim de Agi Morato, o cativo começa falando das muitas pérolas com que a moura estava enfeitada: ''más perlas pendían de su hermosísimo cuello, orejas y cabellos que cabellos tenía en la cabeza''. Ele descreve os demais adornos de ouro e brilhantes e volta a insistir nas pérolas: ''las perlas eran en gran cantidad y muy buenas''. Logo se detém em considerações sobre a valorização das pérolas entre os mouros. Nesse momento, ao falar das pérolas, fala também do aljófar, aquelas formações de mesma origem, mas irregulares ou pequenas, e menos estimadas em joalheria. Menciona perlas y aljófar lado a lado duas vezes, considerando, na última vez, que ''hay más perlas y aljófar entre moros que entre todas las demás naciones''. A estruturação ficcional do mundo do conto do cativo parece ter um ponto em comum com o que o narrador diz do mundo mouro, se o entendermos em um sentido menos literal. No conto, abundam, misturadas e lado a lado, perlas y aljófar, e os confrontos entre personagens são chave para ir explorando as diferenças entre as enseadas e os cabos, as perlas e o aljófar, os espíritos bem formados e os deformados.

 

A fuga de Argel e a libertação do cativeiro: o estreito caminho da virtude

No conto do cativo, constrói-se um romanesco mourisco para tematizar uma história de salvação pela fé cujo trajeto passa pela libertação do vicioso mundo mouro por meio do discernimento entre uma espiritualidade despojada e entendida como oposta aos interesses do mundo. O cenário de inimizade entre mouros e cristãos parece funcionar como representação da oposição vícios e virtudes.

Sobre Uchali Fartax, logo no início do conto o narrador abre um parêntese para explicar seu nome. Começa explicando que se tratava de um nome tomado de características pessoais desse seu amo, segundo o costume turco, e que significava renegado tiñoso. Diz que só havia, entre os turcos, quatro sobrenomes de linhagens, e que os demais nomes eram dados a partir de defeitos do corpo ou virtudes da alma. Esse comentário nos interessa especialmente aqui por explicitar a dualidade corpo-alma ao mesmo tempo em que mostra as associações corpo-defeitos e alma-virtudes, e chama a atenção para uma preocupação com vícios e virtudes associada à escolha de um nome de personagem, a algo que lhe atribui fortemente uma identidade.

Nas personagens desse conto esboça-se um confronto entre mundo material/terreno/social, por um lado, e espiritual, por outro. Sua caracterização sugere uma interligação de idéias algo complexa entre linhagem, espiritualidade, ascensão social, virtudes e vícios que, ao que tudo indica, é muito semelhante às idéias expostas por dom Quixote à sobrinha e à ama em certa passagem do Quixote II. Reproduzo parte dessa fala de dom Quixote abaixo, pela importância que parece ter para pensar sobre a estruturação e interligação de temas do conto do cativo. Em certo momento, no Quixote II, dom Quixote é abertamente repreendido pela sobrinha por causa da ambição de se tornar um cavaleiro famoso tendo nascido um simples fidalgo humilde. Ele responde:

[...] cosas te pudiera yo decir cerca de los linajes que te admiraran, pero por no mezclar lo divino con lo humano no las digo. [...] a cuatro suertes de linajes [...] se pueden reducir todos los que hay en el mundo, que son estas: unos, que tuvieron principios humildes, y se fueron estendiendo y dilatando hasta llegar a una suma grandeza; otros, que tuvieron principios grandes, y los fueron conservando y los conservan y mantienen en el ser que comenzaron; otros que aunque tuvieron principios grandes, acabaron en punta, como pirámide, habiendo disminuido y aniquilado su principio hasta parar en nonada [...]; otros hay, y éstos son los más, que ni tuvieron principio bueno ni razonable medio, y así tendrán el fin, sin nombre, como el linaje de la gente plebeya y ordinaria.
De los primeros, que tuvieron principio humilde y subieron en la grandeza que ahora conservan, te sirva de ejemplo la Casa Otomana que de un humilde y bajo pastor que le dio principio, está en la cumbre que le vemos. [...]
[...] es grande la confusión que hay entre los linajes, y [...] solos aquéllos parecen grandes e ilustres que lo muestran en la virtud, y en la riqueza y liberalidad de sus dueños. [...]
Al caballero pobre no le queda otro camino para mostrar que es caballero sino el de la virtud, siendo afable, bien criado, cortés, y comedido, y oficioso; no soberbio, no arrogante, no murmurador, y, sobre todo, caritativo [...], y no habrá quien le vea adornado de las referidas virtudes que, aunque no le conozca, deje de juzgarle y tenerle por de buena casta.[...]
Y sé que la senda de la virtud es muy estrecha, y el camino del vicio, ancho y espacioso. Y sé que sus fines y paraderos son diferentes, porque el vicio, dilatado y espacioso, acaba en muerte, y el de la virtud, angosto y trabajoso, acaba en vida, y no en vida que se acaba, sino en la que no tendrá fin.2

Uchali Fartax e Azan Agá, com sua ascensão rápida às custas da perda da alma, parecem tematizar, ao mesmo tempo, a confusão de linhagens, uma inversão de valores entre mundo material e espiritual, a duvidosa honra de ser poderoso e rico. Fazem, em uma construção mais puramente figurativa, uma mesma interligação desses temas feita por dom Quixote no fragmento mais puramente temático do Quixote II . Especialmente, parecem figurativizar a idéia de que ''el camino del vicio es ancho y espacioso''.

As mesmas idéias estão presentes na trajetória de Zoraida, só que em sua face inversa, em exato contraponto com os que haviam sido amos do cativos durante o cativeiro de Argel. Os protagonistas do conto, Zoraida e o cativo, parecem figurativizar fundamentalmente a idéia de que ''la senda de la virtud es muy estrecha''.

Na literatura espanhola da época de Cervantes é freqüente encontrar a idéia de que ''a vida é guerra''. O percurso de libertação dentro dessa vida-guerra do conto do cativo é também um percurso de discernimento que leva à escolha do caminho das virtudes, de acordo com um sistema de pensamento cristão. Nesse sentido o conto do cativo nos dá uma pista sobre a estrutura ficcional variada do Quixote I: mais que uma indecisão entre a valorização de formas narrativas realistas ou idealistas, o que parece haver é um profundo senso de decoro literário e um uso engenhoso desse decoro, que leva a discutir a questão de que a vida é guerra e de como se livrar dos erros e pecados mundanos, numa narrativa mourisca, especialmente vinculada à temática da guerra religiosa e repleta do sentido de não cristandade que implica o pecado. O mundo mouro que retrata, mais que mouro, é o mundo híbrido de corpo e espírito, corrompido pelo pecado original, mas no qual há uma libertação possível no plano espiritual.

 

Contrapontos entre dom Quixote e o capitão cativo

O conto do cativo é uma das histórias idealistas intercaladas na paródia realista que caracteriza as aventuras de dom Quixote e Sancho. É uma das mais extensas e destacadas ''ilhas romanescas'' dentro do Quixote I. Sua relação com a linha narrativa paródica principal do livro parece ir estabelecendo também alguns contrapontos. Voltando a nos centrar na construção de personagens, em muitos aspectos o capitão cativo se mostra como uma contra-cara de dom Quixote. O tipo de paralelo contrastivo entre o começo de sua história (''En un lugar de las montañas de León'') e o começo da história de dom Quixote (''En un lugar de la Mancha de cuyo nombre no quiero acordarme'') nos dão uma primeira indicação nesse sentido. Há um confronto entre espaço geográfico elevado, nobre e identificado com precisão, e um lugar geográfico apresentado de forma pouco nítida, irônica e depreciativa talvez, cujo nome não merece ser lembrado ou evocado. É o mesmo tipo de espaço simbólico que vimos na associação da Cava Rumia com o promontório e dos fugitivos cristãos com a enseada. O humor e a crítica feita implicitamente, por meio desse humor, a dom Quixote, na linha narrativa paródica, parecem ser bastante coerentes com um tipo de contraponto romanesco levado a cabo no conto do cativo. Muitas vezes, Dom Quixote parece dar uma espécie de exemplo valorizado negativamente de modo de agir no mundo, frente ao qual o cativo entra como um exemplo valorizado positivamente. Dom Quixote almeja a um heroísmo individual, enquanto que o conto do cativo, do começo ao fim, sugere um heroísmo colaborativo e coletivo (marcado inclusive no longo espaço em que narração se faz em primeira do plural, nosotros). Dom Quixote, baseado em suas leituras, acredita que sozinho venceria um exército inteiro. O capitão cativo insiste várias vezes em que poucos não podem vencer a muitos. Dom Quixote freqüentemente é dogmático em suas opiniões. Isso fica especialmente claro na maneira absoluta e impositiva como trata a afirmação da beleza de Dulcinéia frente aos mercadores de Toledo. O capitão cativo fala da beleza de Zoraida com o cuidado de frisar a parcialidade de suas opiniões com um insistente parecer: ''a mí me pareció [ser la más hermosa que hasta entonces había visto]'' e um ''a mí me parecía que tenía delante de mí una deidad del cielo''. O capitão cativo é modesto quanto a seu valor pessoal: ''yo me hallé en aquella felicísima jornada [Lepanto] ya hecho capitán de infantería, a cuyo honroso cargo me subió mi buena suerte, más que mis merecimientos''. Dom Quixote carece, na maior parte das vezes, dessa modéstia. São freqüentes, na primeira parte, monólogos de dom Quixote semelhantes aos que se seguem: ''Dichosa edad y siglo dichoso aquel adonde saldrán a luz las famosas hazañas mías, dignas de entallarse en bronces, esculpirse en mármoles y pintarse en tablas, para memoria en lo futuro''. Estes e outros dados que não teremos espaço para mencionar aqui vão mostrando uma interligação de idéias entre as aventuras paródicas de dom Quixote, que foram acontecendo desde o início do Quixote I, e o romanesco do conto do capitão cativo.

 

A paródia e o romanesco no Quixote I: incongruência ou mais contrapontos?

Digamos, em linhas gerais, que a paródia e a sátira são formas literárias férteis para a crítica daquilo que se vê na sociedade e que se valoriza negativamente, enquanto que a forma romanesca é um terreno fértil para as utopias e aquilo que se valoriza positivamente.

O profundo senso de decoro literário, de adequação da forma ao conteúdo, que Cervantes mostra ao escolher um romanesco mourisco para tematizar a moura-vida-guerra-pecadora e a conquista da liberdade espiritual e da salvação dentro dessa vida, leva a crer que ele pode saber bem que está fazendo algumas críticas precisas ao constuir uma paródia dos livros de cavalaria protagonizada por dom Quixote e intercalá-la com outras histórias romanescas. Acompanhando uma linha de idéias e um sistema de pensamento que confronta reiteradamente o que é com o que deveria ser, a forma literária vai se aproximando ou se afastando do romanesco, de acordo com um senso de decoro literário: é um romanesco bastante típico ao tematizar as questões de elevação espiritual, na parte da fuga de Argel, é uma paródia ao criticar certas noções de dignidade pessoal, de conquista fama individual, valorizadas negativamente, para criticar crenças de solução por meio de atitudes autoritárias e violentas, na linha narrativa paródica das aventuras de dom Quixote.

Enfim, se as conclusões tiradas aqui sobre o conto do cativo são pertinentes, indicam uma importância grande do romanesco num sistema de desenvolvimento de idéias que se relacionam, por sua vez, com idéias levantadas desde o início do livro pelas aventura de dom Quixote, como crítica , e que se contrapõem a essa crítica como um tipo de dever-ser. Segundo isso, a questão da convivência na obra de Cervantes de formas realista e idealistas do começo ao fim deixa de poder ser abordada adequadamente do ponto de vista de uma evolução do autor de um tipo a outro, ou de poder ser colocada como intrigante por visões críticas que consideram sua convivência incompatível com as críticas que são feitas aos livros de cavalaria dentro do Quixote. Em vez de dualidade, há no Quixote I e em Cervantes uma variedade de formas narrativas em correspondência com uma variedade de interesses de discussão de idéias sobre temas centrais de seu pensamento, um senso de decoro que leva a adotar variadas formas idealistas de sua época, de maneira engenhosa, para a figurativização de certos ideais, e as formas mais realistas e satíricas para a abordagem crítica da realidade. No Quixote I, elas parecem conviver vinculadas, em uma estruturação textual que sugere um pensamento que funciona por espelhamentos, contrapontos e confrontos de opostos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CERVANTES, M. de. Don Quijote de la Mancha I. J. J. Allen (ed.). Madri: Cátedra, 1994.

CERVANTES, M. de. Don Quijote de la Mancha II. J. J. Allen (ed.). Madri: Cátedra, 1990.

FRYE, N. Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1973.

FRYE, N. La escritura profana. Caracas: Monte Ávila, 1992.

MARTÍNEZ BONATI, Félix. La unidad del Quijote. In: HALEY, G. (ed.) El Quijote de Cervantes. Madri: Taurus, 1987. p. 349-371.

RILEY, E. Cervantes: una cuestión de género. In: HALEY, G. (ed.) El Quijote de Cervantes. Madri: Taurus, 1987. p. 37-51.

RILEY, E. ''Romance'' y novela en Cervantes. In: Cervantes, su obra y su mundo. Actas del I Congreso Internacional sobre Cervantes. Madri: EDI-6, 1981. p. 5-13.

SPITZER, L. Sobre el significado de Don Quijote. In: HALEY, G. (ed.) El Quijote de Cervantes. Madri: Taurus, 1987. p. 387-401.

WILLIAMSON, Edwin. El Quijote y los libros de caballerías. Madri: Taurus, 1991.

 

 

1 Todas as citações a partir da edição de Allen, 1994.
2 Quixote II, Cap. VI, pp. 70-72.