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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Out. 2002

 

O esperpento em El adefesio, de Rafael Alberti

 

 

Joyce R. Ferraz

Universidade Presbiteriana Mackenzie

 

 

¡Adiós que me voy llorando
para siempre, de tu vera!

(Rafael Alberti)

Durante o último ano da Guerra Civil, quando a derrota republicana se fez inevitável, Rafael Alberti abandonou a Espanha e instalou-se em Paris. Um ano depois, devido à eclosão da Segunda Guerra, viu-se obrigado a deixar a Europa e refugiar-se na Argentina, onde viveu durante vinte e cinco anos. No exílio, Alberti dedicou-se não apenas à poesia, mas também à pintura, à política e ao teatro. Dessa intensa atividade resultaram mais de trinta livros, dos quais faz parte a trilogia dramática produzida entre 1940 e 1945 – El trébol florido, El adefesio e La Gallarda. El adefesio, tema deste trabalho, foi escrita em 1944 e encenada, no mesmo ano, em Buenos Aires, com a atriz espanhola Margarita Xirgu no papel de Gorgo. Mais de trinta anos depois, quando a morte do General Franco tornou possível o sonho de uma democracia espanhola, El adefesio estreou no teatro Reina Victoria de Madri, em 24 de setembro de 1976. Para essa montagem, Alberti alterou sensivelmente o texto de 1944 (cortou cenas, reduziu falas e modificou o final), com o objetivo de conferir maior dinamismo e dramaticidade à obra. Essa última versão é a que utilizamos e citamos no decorrer desse trabalho.

O drama desenvolve-se "en cualquier año de estos últimos setenta, y en uno de esos pueblos fanáticos caídos entre las serranías del sur de España, cruzados de reminiscencias mulsumanas" (Alberti, 1992, p.237). O cenário é a rica casa da velha Gorgo, cacique dessas terras e personagem central da trama. Gorgo - criatura cujo nome remete à mitológica Medusa e, por extensão, à imagem de uma mulher feia e perversa, - é a própria encarnação do poder absoluto ao qual submete, de forma inquestionável, todos aqueles que a rodeiam: as velhas comadres, Uva e Aulaga; Bión e os outros mendigos; a jovem sobrinha Altea e a criada Ánimas.

Após a morte do irmão, don Dino, Gorgo passa a ser a única detentora de um "vergonhoso" segredo familiar: o jovem Cástor, filho adotivo de Aulaga, é, na verdade, filho bastardo de don Dino. A velha harpia prometera ao irmão, em seu leito de morte, defender com silêncio e autoridade a honra familiar. Não contava, no entanto, com o irônico destino que fez com que sua inocente sobrinha, Altea, se apaixonasse pelo ignorado irmão, Cástor. Quando lhe chega aos ouvidos tal desgraça, Gorgo toma as barbas e a bengala do irmão morto e, assim, travestida com os símbolos da autoridade fraterna, submete as amigas - Uva e Aulaga - e, em seguida, investe contra a sobrinha. Os "três rebuços sinistros" unem-se em tribunal para julgar Altea. Seu crime? O amor, ou, como quer a tia: "¡Hombres!" Durante o interrogatório, transformado em violento processo inquisitorial, o ódio e a inveja das "velhas virgens" pela beleza e juventude da moça tornam-se evidentes. Sem saída, Altea confessa seu amor por Cástor e é condenada a vestir "un traje negro de vieja, largo, triste, irrisorio" (Alberti, 1992, p. 259) e a viver enterrada entre quatro paredes. A partir de então, Gorgo fará o que estiver ao seu alcance para impedir que o amor entre os sobrinhos se realize. Mais tarde, quando descobre, por meio de uma carta interceptada, que Cástor planeja raptar Altea, simula a noticia do suicídio do rapaz e faz com que a sobrinha acredite nela. Desesperada, Altea atira-se do alto de uma torre e morre. Gorgo, ao ver a sobrinha morta, revela às amigas o segredo e, assim, justifica seus esforços no sentido de evitar a relação incestuosa entre os irmãos e preservar o nome da família.

O enredo aparentemente simples - um drama familiar que termina em tragédia - ganha nova amplitude se observadas as relações da obra com as memórias de Rafael Alberti, conforme narradas em seu livro La arboleda perdida, e também com a história e a literatura espanholas coetâneas.

Em meados dos anos vinte, o jovem Alberti, por motivos de saúde, trocou a agitada Madri pela tranqüilidade do pequeno povoado de Rute, encrustado na serra de Córdoba. Durante o período em que esteve nesse ''dramático pueblo andaluz (...), saturado de terror religioso'' (Alberti,1998,p.203), o poeta deixou-se impregnar por sua atmosfera obscura e supersticiosa e escreveu uma série de poemas que, anos mais tarde, integraria a sessão ''El negro alhelí'', do livro El alba del alhelí (1926). Entre os poemas de ''El negro alhelí'' destacam-se os de ''La Encerrada'', inspirados na história de uma jovem misteriosa, feita prisioneira em sua própria casa:

Tu padre,
es el que, dicen, te encierra.
Tu madre
es la que guarda la llave.
Ninguno quiere
que yo te vea,
que yo te hable,
que yo te diga que estoy
muriéndome por casarme. (Alberti, 2000, p.64)

Quase vinte anos depois de publicado ''El alba de alhelí'', as lembranças daquela terrível história da jovem prisioneira continuavam vivas na memória de Alberti, que decidiu aproveitá-las como pretexto em um drama teatral. Recorda o poeta:

Allí en el barrio alto, vivía una hermosa muchacha, conocida en el pueblo y los alrededores por el nombre de ''La Encerrada'', a la que solamente podía vérsela, siempre en compañía de alguien, tapado el rostro por un velo, durante la misa de alba. Muchas noches subía yo hasta su calle, paseándola de arriba abajo las horas muertas, en la inútil espera de adivinarla tras las ventanas y balcones, jamás abiertos, de su casa. Corrían sobre esta joven las más raras y hasta torpes leyendas, que todo el pueblo repetía, añadiendo cada cual lo peor de su imaginación. Tanto la madre como las tías que la custodiaban tenían el odio de los hombres, quienes soñaban con la muchacha, deseándola abierta y desvergonzadamente. También mi sueño se llenó de ella, naciendo en mí un sentimiento triste, un silencioso amor, una ansia acongojada de arrancarla de aquellas negras sombras vigilantes que así martirizaban su belleza, su pobre juventud entre cuatro paredes. (...) Sólo supe más tarde que ''La Encerrada'' (...), siguiendo una triste tradición muy antigua en su pueblo, se había suicidado. Las causas no me las dijeron, nunca llegaron hasta mí. Pero, con lo que sabía ya de ella y sus terribles guardianas, pude también, pasados casi veinte años, tejer mi fábula de amor y las viejas, a la que por todo el horror moral y físico que respira titulé ''El adefesio'' (Alberti, 1997, p. 205).

Talvez a verdadeira história da moça não fosse aquela disseminada pelo povoado, talvez fosse outra - menos poética quiçá, se não menos dramática. Mas, ali, naquele Rute, onde a repressão dos sentidos e dos sentimentos desencadeava os mais terríveis crimes e suicídios, a imaginação tinha que ser pródiga em lendas cheias de horror, mistério e tragédia. Um pouco de tudo o que Alberti viu, ouviu, adivinhou e sentiu naquele povoado sombrio está contido em parte de sua obra e, mais precisamente, nas páginas de El adefesio. No entanto, em nenhum momento o autor cita Rute como o espaço de ação da obra, provavelmente porque não lhe importava ressaltar o lugar em si, mas sim o clima de ''horror moral e físico'' que lhe era peculiar. Horror moral e físico que no ano de 1944 era extensivo a toda Espanha e não apenas aos povoados da serra de Córdoba. Visto dessa forma, fica evidente que, por detrás dessa "fábula de amor y las viejas", pulsa a história espanhola, mais precisamente, a história daquela primeira década de submissão à intransigente ditadura de Francisco Franco. Por outro lado, cabe ressaltar que o tempo da ação pode ser "qualquer ano dos últimos setenta", isto é, do período que vai de 1874 a 1944 e que compreende o golpe de estado à Primeira República, a Restauração bourbônica, a ditadura de Primo de Rivera, o golpe de estado à Segunda República, a Guerra Civil e os cinco primeiros anos da ditadura de Franco. Setenta anos marcados pela vitória das forças da direita conservadoras sobre as tentativas de democratização do país. Alberti sonhou com a República e lutou por ela, mas foi vencido e condenado a quase quarenta anos de exílio. Desterrado, continuou lutando pela liberdade política e social, enquanto esperava, um dia, tornar a casa. El adefesio pode situar-se, sim, em qualquer ano daqueles setenta, mas não há como fazer vistas grossas ao escárnio do poeta contra o ditador fascista que, aliado aos setores sociais mais conservadores e retrógrados, havia subjugado toda a "outra" Espanha.

El adefesio, como o esperpento de Valle-Inclán, denuncia, por meio da sátira, da paródia e da crítica social e política, a arbitrariedade do poder tirânico. Gorgo - ou Gorgoja em alusão à ação destrutora das larvas do gorgojo sobre os cereais – encarna, nesse sentido, essa arbitrariedade e aparece como uma deformação grotesca da autoridade. O poder da velha sobre os demais personagens deve-se a uma necessidade individual justificada pela obrigação de fazer valer os desígnios do irmão defunto; seu poder, portanto, não é um direito, mas sim uma imposição pessoal, legitimada por uma entidade superiora: don Di(vi)no. Isso quer Gorgo fazer entender a suas comparsas ao aparecer com a bengala e as barbas do irmão morto:

(Golpes secos de bastón en el suelo. Iluminada por una palmatoria, doña Gorgo aparece en el marco de la puerta del fondo. Trae barbas de hombre. Aire de abatimiento)

UVA, AULAGA y BIÓN. – (Santiguándose) ¡Cruz, cruz, cruz!
GORGO. -- (Irguiéndose) ¡Halconera! ¡Mozcorra! ¡Pelanduzca! ¡Que tiemblen desde hoy los de esta casa! ¡Los que me conocéis y los que nunca me hayan visto! ¡Los que se mueven cerca, bajo la punta de este palo, y los que se hallen lejos! ¡Ay de los que se hallen lejos! (...) (Se quita las barbas). Pero ahora vuelvo a ser vuestra Gorgo. No os asustéis de mí hijitas. (Siempre con un gruñido semiburlón.) ... Vuestra Gorgo, vuestra Gorgoja, vuestra Gorgojilla, la única amiga que tenéis en el pueblo, en este empecatado pueblo de libidinosos... perturbadores de inocencias... ¡de borrachines! ¡Ja,ja! (Alberti, 1992, p.240/243)

Fica claro que, por detrás do discurso afetuoso e sedutor de Gorgo para com as amigas, esconde-se a mais sórdida hipocrisia: a harpia sabe jogar com as comadres a fim de mantê-las como aliadas contra a ameaça externa que rondava a casa e punha em perigo o nome de sua família.

Gorgo pode ser vista como a imagem grotesca de Franco, que, depois de haver comandado o golpe de estado e vencido a Guerra Civil, fabricou e consolidou uma imagem pública de legítimo defensor do Ocidente, caudilho enviado por Deus para salvar a Espanha da ameaça dos hereges e comunistas. Mas, como Gorgo, o generalíssimo não estava sozinho em sua empreitada, contava com o apoio das elites espanholas conservadoras, que, em defesa de seus interesses e privilégios, haviam pactuado com ele na luta contra os "inimigos da civilização, da família e da moral cristã". Pacto semelhante - de fidelidade e interesse – parece orientar também a fidelidade a Gorgo das decrépitas e bajuladoras comadres, Aulaga e Uva. Aliás, "aulaga", em espanhol, é o nome de uma planta usada para alimentar o rebanho, e "uva", claro está, remete-nos aos vinhedos. E como não associar essas velhas malignas aos latifundiários, que viram seus privilégios ameaçados pela República e apoiaram o golpe militar e o regime franquista?

No terceiro e último ato, presenciamos uma paródia da Última Ceia. Gorgo convida uma turba de mendigos para celebrar a noite da caridade e da santa esmola - parece que era costume entre as famílias do sul da Espanha oferecer, anualmente, uma refeição aos mendigos da cidade, pois referência semelhante encontramos na obra teatral De un momento a otro, do próprio Alberti. Bem sabemos que a esmola e a caridade, juntamente com lágrimas de arrependimento e demonstrações de preocupação pelo próximo, são formas de penitência cristãs e uma maneira de conseguir o perdão dos pecados. Gorgo, premeditadamente, subverte os preceitos católicos para se autopromover e assim, sublimar o seu poder. Antes de dar início ao banquete dos pobres, a velha coloca na cara as barbas do irmão - símbolo de sua autoridade - e surge em cena com uma bacia e uma toalha. A primeira reação dos mendigos é de assombro, mas logo a surpresa inicial converte-se em risos e em chacota, que dissimuladamente são tomados por ela como provação.

GORGO -. Reíd. Chillad. Mofaos. Mi alma está preparada. Vuestros gritos y risas la iluminan, bañandola de gozo y delicias sin límites. ¿Qué pensábais? Venid a mí. (Alberti, 1992, p.296)

Gorgoja, humildemente, põe-se, então a lavar as mãos de Altea, de Ánimas, das comadres e dos esfarrapados, que se compadecem da bondade da harpia. Trata-se da apoteose do fingimento, da hipocrisia elevada ao expoente máximo. Nesse momento, a medusa prepara o ambiente para tornar verossímil sua definitiva mentira: a morte de Cástor. A falsa piedade de Gorgo simboliza, em certa medida, o efeito maligno do poder da Igreja, conforme denunciam as palavras que Altea dirige às três velhas, antes de matar-se:

ALTEA -. Sois unas asesinas. (a los pobres) Que estos pobres lo sepan. Mirad aqui a las tres. Podéis gritarlo por el pueblo, aullarlo desde las azoteas, pregonarlo por los caminos. (Bión y los cuatro mendigos, unos de pie y otros sentados, están inmóviles, como de piedra). ¿Qué hacéis? Andad. Andad. !Muerto! Colgado de un olivo por vuestras propias manos. Mostradlas. Que éstos las vean bien. Son las mismas que sirven para dejar caer una limosna y estrangular una garganta. (...) !... viejas funestas, viejas turbias, heladas, torturadoras, arrancadoras de la luz de mis ojos, de la alegría de mis años! (Alberti, 1992, p. 302)

O aparente objetivo de Gorgo era o bem estar de Altea. Em nome desse bem estar a velha destrói a sobrinha e aqueles que a amavam, Cástor e Ánimas. No final da peça, a noite de caridade converte-se em noite de horror. Depois de denunciar as harpias pela morte de Cástor, Altea se atira da torre e morre. No momento seguinte, ouve-se o grito desesperado de Cástor, que havia ido libertá-la. Os mendigos deixam a cena levando tudo o que havia sobre a mesa - comida e utensílios. O corpo de Altea é coberto com a toalha do banquete - à maneira de sudário , e apoiado num tronco - lembrando um "belo e estranho espantalho". Na torre, vê-se a sombra de Ánimas, fechando a sacada. As velhas, em volta da mesa vazia, fingem celebrar a noite da caridade, comendo e bebendo imaginariamente.

GORGO -. !Ánimas! !Atranca bien la verja del jardin! !Cierra con cien cerrojos todas las puertas y ventanas! !Qué no encuentre la soledad por donde irse de estos muros! (Ánimas desaparece) Solas nosotras, solas con Altea, a pudrirnos, al fin, entre estas paredes.(...) Ahora tú, hermano mío, me mirarás desde lo alto, satisfecho. Sucedió todo como tú deseabas. Nada se consumó. (Alberti, 1992, 0. 314-315)

Ao contar a verdade sobre o parentesco de Cástor e Altea às comparsas, Gorgo causa aquilo que a todo custo tentou evitar - a desonra da família - e, mais do que isso, precipita a morte sem sentido de Altea. Ainda que seus atos tenham terminado em desgraça e vergonha, ela os justifica em nome de um código de honra que tinha obrigação de cumprir.

Se, por um lado, o comportamento de Gorgo denuncia as conseqüências de um despotismo desenfreado, por outro enfatiza a falsidade da caridade no contexto de poder. O episódio da "noite de caridade e da santa esmola" evidencia uma hipócrita relação paternalista do poder eclesiástico e do proletariado rural para com os pobres. Os mendigos de El adefesio adoram Gorgo - ¡Ángel de la bondad!, ¡Patrona de los menesterosos!, ¡Fuente de los necesitados!, ¡Refugio de los desvalidos! - e são fiéis a ela, desde que, em troca, recebam seu quinhão. Quando se vêem privados do prometido banquete, não hesitam em roubá-la. A Igreja Católica, com seu fanatismo conservador, teve um papel chave no regime franquista, influenciando todas as dimensões do comportamento, tanto individual como coletivo, da sociedade espanhola.

No entanto, não é apenas a história que pulsa por detrás desse aparente drama familiar, a tradição literária e dramática também se faz sentir. Ao entitular sua obra de El adefesio - termo que significa "extravagância", "disparate", "coisa ou pessoa ridícula ou muito feia" -, Alberti, talvez, estivesse evocando os esperpentos de Valle-Inclán, já que esperpento quer dizer "pessoa feia", "desalinho", "absurdo". Em outras palavras, "adefesio" mantém vínculos com "esperpento" mas não é exatamente a mesma coisa.

Sem dúvida, essa "fábula del amor y las viejas" possui vários elementos esperpênticos, a começar pelo modo de distorção grotesca que caracteriza a representação das personagens. Tanto nos esperpentos quanto em El adefesio, encontramos personagens que - por suas palavras, ações, gestos, acessórios ou físico - são reduzidas à categoria de fantoches ou marionetes, ou de animais. Não raro assemelham-se a bruxas, sombras ou criaturas infernais. Com esse procedimento expressivo os autores ressaltam a personalidade degrada de seres desprovidos de uma humanidade elementar.

(Apiñadas las tres oyen algo de GORGO, prorrumpiendo en una carcajada, tapada, con un gesto de asco las narices.) (Alberti, 1992, p. 258)

Essas figuras grotescas geralmente padecem de algum tipo de alienação provocada pela ignorância ou pelo egoísmo reinantes, por isso não se preocupam em discernir o justo do injusto, o correto do incorreto, pautando-se sempre pelo senso comum ou pelos seus interesses pessoais.

Nesse sentido, simbolicamente, a iluminação contribui para reforçar a mediocridade social. No ambiente esperpêntico os matizes de luz são claro-escuros, luzes trêmulas, penumbras... pouca luz, de forma a ressaltar silhuetas e sombras sinistras.

Como tres sombras, como tres rebujos siniestros, riendo, burlonas, hirientes, van y vienen alrededor de Altea que llora, baja, cubierta la cara por sus cabellos. (Alberti, 1992, p.258)

Contudo, o que mais aproxima El adefesio dos esperpentos é a crítica ao sistema sócio-político espanhol realizada com elementos paródicos e satíricos. Ressalte-se, porém que, apesar de esperpêntica, a obra de Alberti não é um esperpento. O esperpento deve ser considerado como uma estética desfigurada que transforma por completo a imagem aparente que temos da realidade, precisamente para mostrar-nos como ela realmente é, ou seja, absurda e grotesca. Sendo assim, nada no teatro esperpêntico de Valle-Inclán escapa ao processo de deformação. Em El adefesio, não acontece isso, nem tudo é deformado. Alberti contrapõe as figuras daninhas chefiadas por Gorgo às antagonistas Altea, Ánimas e Cástor. Altea, por exemplo, pode ser vista como a representação da Espanha devastada, e sua imagem quase chega à idealização.

Para finalizar, parece-nos importante mencionar a obra de García Lorca, La casa de Bernarda Alba, cujo tema também é a tirania, desta vez de uma mãe despótica sobre suas filhas. Bernarda, assim como Gorgo, simula a morte de Pepe, el Romano, o que provoca o suicídio de Adela. Lorca escreveu sua peça em 1936, mas ela só foi publicada e encenada - também em Buenos Aires, com Margarita Xirgú como Bernarda - em 1945, isto é, um ano depois de El adefesio. O próprio Alberti afirma não ter conhecido a obra antes de sua representação. Sendo assim, é pouco provável que Bernarda tenha influenciado na escritura de El adefesio, como querem alguns críticos. A semelhança entre as peças restringe-se à temática e deve-se, provavelmente, a uma visão bastante similar da vida espanhola e provinciana - haja vista que os dois escritores são andaluzes. Por outro lado, a técnica dramática de Lorca é bem mais convencional: ele exagera a realidade social, mas não chega a deformá-la. Alberti, por sua vez, usa uma técnica arrojada de tendência claramente expressionista, à maneira de Valle-Inclán.

Nossa intenção foi estabelecer algumas relações que julgamos pertinentes entre esse texto teatral de Rafael Alberti e as circunstâncias sociais e históricas que dialogam com a sua escrita. E estender esse diálogo às obras de Valle-Inclán e Lorca. Da análise dessas relações texto-contexto-texto e desses procedimentos intertextuais, acreditamos, muitos outros percursos proveitosos podem resultar.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBERTI, Rafael. La arboleda perdida, 1. Primero y Segundo libros (1902-1931). Madrid: Alianza, 1997.

_______________. Antología poética. Barcelona: Editorial Optima, 2000.

_______________. El adefesio. Madrid: Cátedra, 1992.

EDWARDS, GWYNNE. Dramaturgos en perspectiva. Teatro español del siglo XX. Madrid: Gredos, 1989.

RUIZ RAMÓN, Francisco. Historia del teatro español. Siglo XX. Madrid: Cátedra, 2001.

WEINGARTEN, Barry E. El adefesio de Rafael Alberti: obra esperpêntica. In. Gabriele, John P. (ed.) De lo particular a lo universal. El teatro español del siglo XX y su contexto. Frankfurt am Main: Vervuert / Madrid: iberoamericana, 1994.