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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002

 

As narrativas arturianas nas crônicas peninsulares medievais

 

 

Juliana Sylvestre da Silva

Universidade Estadual de Campinas

 

 

O trabalho por mim realizado nos últimos meses e que ora se encontra praticamente em fase de conclusão está centrado na análise de fundamentos da literatura arturiana que podem ser encontrados nos primeiros textos historiográficos, em língua romance, da Península Ibérica.

Tais textos ajudaram a fundar um novo modo de encarar a história e sua escrita, na medida em que reconhecem suas línguas maternas como possíveis detentoras também de um saber documental, antes somente aceitável como verdadeiro quando redigido em latim. Por isso, além de sua notável importância histórica e literária, há que se considerar aqui também a importância lingüística destas obras, a saber, a General Estoria (1272-1284), de Afonso X, em Espanha, e o Livro de Linhagens (c. 1340), de Pedro de Barcelos, em Portugal. Porém, apesar da interessante contribuição para a constituição das línguas românicas da Península Ibérica, o trabalho, do qual ora apresento uma breve parte, se mantém atento a questões de ordem literária, conforme já foi dito anteriormente, em suas ligações com o discurso histórico.

Procurei aqui dar uma breve noção da investigação executada em minha dissertação, expondo inicialmente algumas considerações acerca desta bela e fundamental obra historiográfica, a General Estoria, produzida por aquele que, por seu interesse no conhecimento e na sua veiculação a um maior número de pessoas possível, obteve a alcunha de ''Rei Sábio''.

O intento de Afonso X ao idealizar a General Estoria era produzir uma completa história do mundo, o que ele mesmo explicita no seu prefácio à obra. Infelizmente, ainda que tenha trabalhado com muito empenho e com a ajuda de diversos colaboradores que com ele recolhiam, selecionavam, traduziam e compilavam todo o material aos quais conseguiam ter acesso, este rei acaba morrendo sem ver seu projeto finalizado. Ao que consta, Afonso X trabalhou na General Estoria desde 1272 até 1284, ano de sua morte. No entanto, ainda que tenha chegado até nós uma obra incompleta, não só pela morte do autor, mas pela não localização de todos os seus manuscritos, é inegável que se trata de um importante documento, tanto para os domínios de língua castelhana, que tem aqui a sua primeira obra historiográfica escrita em ''língua romance'', como para o conhecimento de outras obras das quais se valeram Afonso X e seus colaboradores.

A General Estoria tem início com a criação o mundo e vai dividindo a história, da mesma forma como inicialmente faz Santo Agostinho, em seis idades1. A obra contempla os vários saberes enciclopédicos, como a astronomia, a filosofia e as sete artes liberais, agregando este conhecimento à cronologia estabelecida pela Bíblia, pelos historiadores, poetas latinos e compêndios medievais dos poemas de Homero, além de aproveitar o conhecimento de autores árabes.

A escola historiográfica afonsina teve, segundo Gonzalo Menendez-Pidal (MENENDEZ-PIDAL, 1951, p. 363-380), dois períodos de trabalho. O primeiro período iria de 1250 a 1260 e o segundo de 1269 a 1284. No primeiro período, o trabalho se resumiria à tradução de textos – continuando o trabalho da chamada ''escola toledana'' - com a diferença de que os textos eram vertidos para o castelhano e não para o latim. As traduções se faziam principalmente a partir de textos árabes. Já durante o segundo período, a preocupação não era mais a simples tradução, mas a compilação das obras. A estes período pertencem, entre outros textos, a General Estoria.

Os ''trabalhadores intelectuais'' da corte de Afonso X se dividiriam em transladadores - aqueles que faziam a tradução do material selecionado; os ayuntadores - que compilavam os textos traduzidos e elaboravam uma nova exposição da matéria; e os capituladores - que dividiam a obra em suas partes expositivas e as rotulavam. O papel de Afonso X era o de formular a obra que deveria ser empreendida, ordenar quais os livros necessários que deveriam ser copiados, distribuir os tradutores e os compiladores e, em alguns casos, pedir a refacção das traduções quando estas não eram de seu agrado. O Rei Sábio também costumava escolher dentre os livros relacionados à matéria tratada aqueles que julgava melhores e os ''mais verdadeiros'' para a elaboração de seu projeto. Além disso, ele assinalava o plano que deveria se seguir na elaboração do texto e, após a obra composta, adicionava ou suprimia aquilo que julgava necessário, emendando, ele mesmo, a linguagem dos escritos2.

Afonso X, ao levar adiante seu projeto de escrever uma história do mundo em que fossem contempladas as mais diversas fontes, das mais diversas línguas e nações, não poderia destituir de sua historiografia a figura de outro importante rei: Artur. As menções feitas ao rei Artur pela General Estoria foram retiradas da obra de Geoffrey de Monmouth, a Historia Regum Britanniae (1135-1138), texto a que chamamos de ''fundador'' da Matéria de Bretanha, na medida em que dá a ela seus contornos mais específicos e que depois serão retomados pelas narrativas que mais tarde recuperarão o tema.

Há vestígios da obra de Monmouth em muitos momentos da General Estoria, desde a parte II até, provavelmente, a parte V, segundo Lloyd Kasten (KASTEN, 1970, p. 97-114). Nestes trechos em que a HRB está presente, ela aparece intercalada, muitas vezes, a outros títulos dos quais Afonso X se valeu para construir sua obra. Não há um uso contínuo da obra em determinado momento do texto, mas sim uma escolha de vários recortes, o que demonstra que havia um cuidado muito grande em respeitar um projeto de texto previamente pensado e organizado, ao qual as fontes iam servindo aos poucos, adaptando-se a ele e alternando-se umas às outras.

Infelizmente não foi possível o cotejo de uma edição completa da General Estoria, uma vez que ela ainda não foi publicada integralmente3. Das partes a que tivemos acesso, a segunda, em que se encontram os ''ancestrais'' de Artur e fundadores da Bretanha, ocupa um lugar de bastante importância dentro do contexto da obra, sobretudo do ponto de vista do uso dos elementos arturianos para a constituição do projeto historiográfico de Afonso X. Este trecho não se dedica explicitamente a relatar algum feito do rei Artur ou de sua vida, mas nos diz muito acerca deste monarca, sendo fundamental para a construção do personagem, pois tenta dar conta de um outro aspecto da vida do rei bretão: sua ligação com o mundo antigo como forma de atestar, mais uma vez, a sua grandiosidade.

Tal preocupação com a recuperação deste elo dos monarcas com a Antigüidade faz da HRB, além de ''fundadora'' da Matéria de Bretanha, importante instrumento de legitimação para alguns monarcas que retomaram aquele texto, incluindo o próprio Afonso X. Muito antes da General Estoria, em 1155, a obra de Monmouth, originalmente escrita em latim (língua que vai aos poucos deixando de ser conhecida por um grande número de pessoas), ganha uma versão francesa com o nome de Roman de Brut, executada pelo monge Wace. Tal obra inseriu-se em um contexto histórico bastante particular: a corte dos Plantagenetas, interessada em recuperar o ''passado glorioso'' do território do qual, naquele instante, tinha a supremacia. A aproximação entre a intervenção da corte Plantageneta que verte o texto latino para sua língua vernácula e a obra de Afonso X que traduz a Historia para o castelhano é interessante para compreender o amplo alcance que se desejava que tivessem estas obras junto ao público. A acessibilidade que se procurava conseguir ao traduzir tal texto para a língua dominada pela maior parte da população reflete um ambicioso projeto de divulgação de informações que, certamente, beneficiavam essas cortes então no poder. No caso dos Plantageneta já dissemos que o objetivo era reviver o passado glorioso de um país que estava a eles submetido naquele momento, e, portanto, demonstrar sua incontestável superioridade. Quanto a Afonso X, este também possuía motivos para exaltar a supremacia daqueles que possuem sua origem em uma linhagem antiga, como veremos a seguir.

Mas, antes de entrarmos na análise do trecho escolhido dentro da General Estoria, se faz necessário um breve retrospecto da história da ida de Brutus para a ilha de Bretanha. Segundo Monmouth, Brutus era neto de Enéias, portanto, filho de Ascânio. No momento de seu nascimento, faz-se a previsão de que Brutus mataria seu pai e sua mãe, profecia que se realiza quando a mãe de Brutus morre ao dar à luz e, após quinze anos, quando acidentalmente ele atinge seu pai com uma flecha mortal. Tendo se cumprido a cruel profecia, Brutus é expulso da Itália pelos seus parentes e, indo até à Grécia, lá encontra os troianos que se achavam submetidos pelo rei daquele país, Pandraso. Estes prisioneiros resolvem lutar por sua liberdade e, após a vitória conquistada, Brutus sai em busca daquela que ele chamaria de ''Nova Tróia''.

Depois de muito navegarem, eis que chegam a uma ilha, com uma cidade deserta em que encontram um templo de culto à deusa Diana. A ela Brutus oferece seus sacrifícios, pedindo-lhe que ela lhe diga onde ele e seus companheiros poderão encontrar a terra em que a deusa deseja que vivam. Após realizar todo o ritual de culto à deusa, Brutus adormece e tem um sonho revelador. Nele, Diana lhe fala sobre a terra que lhes será consagrada, onde ela se encontra, como ela é constituída e nos versos finais de sua fala, a informação que para nós é a mais importante: que da prole daqueles homens nascerá uma linhagem de reis aos quais será submetida toda a terra4. Essa linhagem é a linhagem do rei Artur.

Tanto na Historia Regum Britanniae quanto na General Estoria, esta será a primeira vez em que se falará da poderosa linhagem que precedeu Artur e a ele deu origem, revelando uma outra face do poderio deste monarca, relacionada à sua ascendência no mundo greco-romano.

No que diz respeito não só aos fatos, mas também à perspectiva sobre a história adotada pela obra de Monmouth e seguida por Afonso X, está presente a questão da translatio imperii5, que não é incorporada à General Estoria por obra do acaso, mas dentro de uma tradição medieval que atendia às pretensões do Rei Sábio. Para entender seu significado, é fundamental pensarmos que a obra de Afonso X não se organiza como mera reunião de fragmentos de variadas obras às quais aquele rei teve acesso. É preciso ter em mente que também Afonso X se preocupou em recuperar o parentesco de seu povo com Roma, quando tentava demonstrar que o império godo, do qual dizia descender, se fazia merecedor de uma translatio imperii (GOMEZ-REDONDO, 1991, p. 18); ou seja, mais do que uma idéia em que Monmouth acreditava, a questão da translatio se mantém como uma forma de atestar o poder de que estes reis, tanto Artur, quanto Afonso X, seriam merecedores, dados seus parentescos com uma linhagem "clássica"6.

Assim, embora não tenhamos aqui clara nenhuma menção direta a Artur, há que se pensar no ideário que fundamenta esta descrição da ''fundação'' da Bretanha, sobretudo de seus agentes formadores. E é daí que se torna essencial a inserção de um personagem como o rei bretão na constituição de uma obra histórica como a de Afonso X. Artur não é descendente de qualquer nação, ele é um dos remanescentes daquele mundo troiano. Sua linhagem antiga já nos diz tudo sobre sua persistência, coragem e destreza em desbravar um mundo novo e fazer dele uma grande nação, como teria sido a região da Bretanha. Retomar este pensamento é reafirmar que o mundo antigo ''revive'' na Idade Média através daqueles que dele descendem e, como Artur, Afonso X seria um desses herdeiros e, portanto, digno de um império.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AFONSO X. General Estoria: primera parte (edição de Antonio Garcia Solalinde). Madrid: Junta para ampliación de estudios e investigaciones científicas - Centro de estudios históricos, 1930.

___________. General Estoria: segunda parte, tomos I e II (edição de Antonio Garcia Solalinde, Lloyd Kasten e Victor Oelschläger), Madrid: Consejo superior de investigaciones científicas - Instituto ''Miguel de Cervantes'', 1957-1961.

__________. General Estoria - Antologia (edição de Milagros Villar Rubio). Barcelona: Plaza & Janes, 1984.

CATALÁN, Diego. De Alfonso X al Conde de Barcelos - cuatro estudios: sobre el nacimiento de la Historiografía Romance en Castilla y Portugal. Madrid: Gredos, 1962.

CIRLOT, Victoria. La novela arturica: los orígenes de la Ficción en la Cultura Europea. Barcelona: Montesinos, 1987.

CURTIUS, Ernst Robert. Literatura Europea y Edad Media Latina, Vol. 1. México: Fondo de Cult. e Economía, 1995.

FARAL, Edmond. La Legénde Arthuriènne - Première Partie: les plus ancients textes: études e documents. Tome I: Des origines a Geoffrey de Monmouth. Paris: Champion, 1969.

GARCÍA GUAL, Carlos. Primeras Novelas Europeas. Madrid: Istmo, 1990.

KASTEN, Lloyd. The utilization of the Historia Regum Britanniae by Alfonso X. Hispanic Review: studies in memory of Ramón Menendez Pidal, Vol. 38, n. 05, nov. 1970, p. 97-114.

MENENDEZ-PIDAL, Gonzalo. Cómo trabajaron las escuelas alfonsíes. Nueva Revista de Filología Hispánica, 5 (1951), p. 363-380.

MONMOUTH, Geoffrey de. Historia de los Reyes de Britania (tradução em castelhano de Historia Regum Britanniae por Luis Alberto de Cuenca). Madrid: Ed. Nacional/Siruela, 5a. ed., 1994.

RICO, Francisco. Alfonso el Sabio y la General Estoria: tres lecciones. Barcelona: Ariel, 1984.

WACE. Roman de Brut: a history of the British. (tradução para o inglês moderno de Judith Weiss, acompanhada do texto original). Exeter: University of Exeter Press, 1999.

 

 

1 ''(...) los sanctos padres dela nuestra ley partieron en esta razon el tiempo del comienço del mundo fastal cabo em tres tiempos, maguer quelas edades dellos son seys (...).'' (General Estoria, I, ed. Solalinde, p. 426). Afonso X fala de três tempos: o tempo anterior à lei - pacto de Deus com Moisés; sob a lei - anúncio da boa nova de Cristo, a concepção; e do tempo sob a graça - Encarnação. A história, portanto, seria primeiramente subdividida em duas partes: antes e depois de Cristo, e, a partir dessa divisão, encontrar-se-ia subdividida primeiramente em três e depois em seis idades.
2 Para informações pormenorizadas sobre a metodologia de trabalho do Rei Sábio, ver artigo de Gonzalo Menendez-Pidal. Cómo trabajaron las escuelas alfonsíes. Nueva Revista de Filología Hispánica, 5 (1951), p. 363-380.
3 Desde 1930 há um projeto de edição de toda a obra, mas a morte de seu principal empreendedor, Antonio García Solalinde, interrompeu este trabalho que somente trinta anos mais tarde é retomado por Victor Oelschläger e Lloyd Kasten, que editam mais uma parte - a segunda - da obra. Na década de oitenta novos projetos de edição surgiram, mas somente se teve a publicação de alguns trechos inéditos e uma antologia (ver referência completa na bibliografia). Na década seguinte viu-se a publicação da terceira parte da General Estoria, com a promessa de, finalmente, concluir a edição da obra, fato ainda não ocorrido até o presente momento.
4 ''Hic de prole tua reges nascentur et ipsis/Totius terre subditus orbis erit''. GE, p. 272.
5 Amparada em uma idéia de fundamento agostiniano, a Idade Média divulga a noção da translatio imperii, segundo a qual o poder se ''transfere'' de uma nação para outra em determinados momentos da história (Ver Victoria Cirlot, La novela arturica: los orígenes de la Ficción en la Cultura Europea., p. 15). ''La misma idea de la translación implica ya que si la soberanía pasa de um reino al outro porque se ha abusado de ella. Ya en la Roma cristiana del siglo IV había surgido el concepto de la 'Roma Penitente'''. Ernst Robert Curtius, Literatura Europea y Edad Media Latina, Vol. 1. México: Fondo de Cult. e Economia, 1995, p. 53.
6 Ao longo da General Estoria não é só na evocação a Artur que se percebem as pretensões imperiais de Afonso X. Francisco Rico aponta em seu estudo (Alfonso el Sabio y la General Estoria, p. 114) o fato de o Rei Sábio incluir seu bisavô Frederico Barbarossa († 1190) ''el primero don Frederico, que fue primero emperador delos romanos (...)'' e seu tio, Frederico II († 1250), ''el segundo deste don Frederic, que fue este otrossi emperador de Roma que alcanço fastal nuestro tiempo, e los uienen del linage dond ellos e los sos, e todos los altos reyes del minde del uienen;'' entre os nobres descendentes da linhagem de Júpiter, ao lado de ''el grand Alexandre (...) los reyes de Tróia, e los de Grécia, e Enéias, e Romulo, e los cesares, e los emperadores;'' (GE, p. 200 - 201).