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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002

 

A questão da memória individual em Retahílas

 

 

Luzimeire Lima da Silva

Universidade Santo Amaro
Universidade de São Paulo

 

 

Romance publicado em março de 1974, da escritora espanhola Carmen Martín Gaite (1925-1999), conta a história de Eulalia e Germán que por ocasião da morte de D. Matilde, avó de Eulalia, encontram-se em uma velha casa. É importante ressaltar a forma como Retahílas está escrito: temos um prelúdio com um narrador que explica a chegada de Germán na casa em Louredo. Após onze capítulos alternados, entre Eulalia e seu sobrinho Germán, atentando para o detalhe que é Eulalia quem começa e termina o que chamaremos de diálogo-monólogo. Que será precedido pela volta deste narrador, que insere Juana no ambiente onde tia e sobrinho passaram a noite, dando-lhe voz e encerrando a narrativa. É este mesmo narrador que fornece algumas características do ambiente no início e no final da obra.

Eulalia e o sobrinho reconstroem suas vidas através desta narrativa; fazendo o resgate de suas memórias individuais para recompor a história de suas famílias. Esse resgate não possui nenhuma obrigação com o resgate da memória de uma geração, o objetivo das personagens é contar para compreender suas próprias vidas. Para nós, é Eulalia que quer compreender a si mesma e para isso faz uso da interlocução de Germán. Sua intenção primeira é recompor sua história, por isso fala da família, para falar de si.

Eulalia passou mais de vinte anos fugindo de si mesma, a ida a Louredo serviu como um acerto de contas com o passado, ela precisava enfrentar seus monstros, sua relação mal resolvida com o ex-marido Andrés, as culpas por ter abandonado a companheira de infância, Juana, as discussões com a avó e por fim os problemas que tinha com o irmão Germán. Ela utiliza-se da memória individual, mas isto não a impede de apoiar-se na memória coletiva, sem confundir uma com a outra, às vezes, necessita confirmar suas lembranças com o sobrinho Germán, esta é uma das características da memória individual.

A memória individual é limitada no espaço e no tempo. Em Retahílas as lembranças de Eulalia recuperam o ano de 1889 – lembranças essas trazidas pelos devaneios da avó – até meados dos anos setenta, momento em que se dá o encontro no povoado de Louredo. É a memória individual confirmando suas lembranças com o grupo sem deixar de seguir seu próprio caminho.

Temos em Retahílas uma narrativa que se desenvolve em um tempo cronológico de mais ou menos doze horas. Mas o tempo que a narrativa resgata é muito mais amplo, pois as duas personagens-protagonistas, conseguem recuperar, através do uso da palavra, a história de seis gerações de seus familiares, sem perder a busca das histórias pessoais de cada uma delas. O tempo cronológico e o ficcional são diferentes, as personagens-protagonistas resgatam mais de cento e cinqüenta anos de história. A escritora utiliza a técnica da expansão pela palavra, ou seja, com uma palavra estende o texto, volta ao passado, fazendo um constante ir e vir.

O espaço físico mais importante é a casa no pequeno povoado de Louredo, onde toda a narrativa vai ser desenvolvida. Foi ali que a personagem Eulalia passou as férias durante a infância e adolescência, vivenciou fatos que deixaram marcas em sua vida, e por isso, essa casa é seu referencial. Para Germán o espaço mais importante era onde viveu com sua mãe, tanto para ele quanto para a tia, o mundo tinha seu início a partir das casas que os protegeram na infância e onde eles perderam as mães.

Outros espaços geográficos são citados: Grenoble, Paris, Barcelona, Madri, Índia, Indonésia. A ação é relatada pelas duas personagens-protagonistas que estão na sala de visitas da velha casa e através de ''flash backs'' fazem saltos a passados distantes, sobrepondo imagens e misturando recordações. Como já dissemos, é Eulalia que inicia o primeiro capítulo do livro, sobrepõe suas lembranças às da avó, conta a história de D. Matilde para poder contar a sua própria. Ela começa falando das ruínas em que se encontra a casa em Louredo, sua memória a leva de volta à infância e da palavra ruína passa aos livros da coleção Ilustración que lia quando era criança, imediatamente fala dos delírios da avó que volta à idade de quatorze anos para narrar um funeral. Mistura passado e presente, ao mesmo tempo em que está falando da infância, fala da viagem a Louredo e, de repente, de si mesma, da época em que morava em París com Andrés, narra um pouco de sua própria vida para logo retomar o discurso sobre a avó: ''Ella nació en setenta y cinco...''. (MARTÍN GAITE, 1995, p.19) É através da memória que a escritora, mostra sua habilidade em manejar o elemento temporal, que permanece aparentemente estático, mas na verdade tempo e espaço variam remetendo a personagem ao passado e ao presente.

O monte Tangaraño é outro espaço de muita importância na narrativa, é para lá que Eulalia foge quando entende que a avó está para morrer. A fuga significa distanciar-se da responsabilidade de herdar as lembranças da avó, a neta tem claro que Dona Matilde não resistirá muito. Mas o refúgio no monte, lugar onde brincava quando criança, significa relembrar sua infância. Sobe o monte com o desejo de esquecer a história da herança, mas percebe que é inútil. Em meio a todas as lembranças que invadem sua memória, ela tem o pressentimento da morte e mais tarde dirá ao sobrinho: que encontrou um homem montado em um cavalo preto, visão que imediatamente associará com a morte que vai ao encontro da avó. Enquanto subia o monte Eulalia troca as lembranças recentes da avó, pela lembrança da morte de sua mãe, começa a recordar seu passado: sua infância e adolescência.

Sua memória leva-a aos tempos da guerra civil, quando ela e a mãe iam às escondidas levar víveres e roupas para dois homens republicanos que estavam refugiados no Tangaraño. Eulalia-menina viveu a experiência de encontrar os refugiados no monte como se fosse uma das novelas que lia, a criança não tinha conhecimento suficiente para pensar no perigo daquela situação, para ela, mãe e filha, iam ao monte para fazer piquenique com os republicanos. Percebemos que mesmo citando um fato que faz parte da memória coletiva, Eulalia trata o tema de maneira individual. Quando diz: ''y ella les daba noticias que yo no entendía de la marcha de la guerra,''(MARTÍN GAITE, 1995, p.26), logo após fala isoladamente dos dois homens, como se eles não tivessem nada a ver com o que acontecia na Espanha, naquela época, nem mesmo o fato da guerra civil ter dividido sua família parece relevante para Eulalia.

Com uma narrativa que segue a linha das lembranças, Eulalia falava do Tangaraño e do susto que passou lá, volta a falar da herança guardada dentro do velho baú de madeira que D. Matilde insistiu em trazer de Madri, ou seja, o representante de suas memórias que deixará como herança a Eulalia quando morrer. Seguindo o tema da herança menciona os livros que levará a Madri, neste instante recorda-se de suas primeiras leituras, quando era criança, sua memória se fixa especificamente em uma tarde em que a avó a surpreende com uma fotonovela nas mãos: ''Era antes de la guerra tendría yo ocho anos, pero qué bien me acuerdo, levanté los ojos y comprendi que los suyos llevaban un rato espiándome'' (MARTÍN GAITE, 1995, p.32). É após a intromissão da avó, que a menina declara ter aprendido a colocar uma barreira entre suas coisas e a dos outros: ''Leer desde aquel día se convertió progresivamente para mí en tarea secreta y solitaria''; (MARTÍN GAITE, 1995, p.34). Por estas afirmações é possível perceber que a ficção teve um papel fundamental na vida de Eulalia. Ela conta ao sobrinho que esperava ansiosa a chegada do verão para refugiar-se na biblioteca da casa da mina. Por isso, aquela casa significava evasão para a menina e para a adolescente Eulalia. A leitura é a principal responsável por sua formação, pois segundo revela, vivia oprimida entre a fragilidade da mãe e a tirania da avó, encontrando nos livros uma maneira de refugiar-se de tudo e de todos. Com este ir e vir de sua memória Eulalia conta sobre a compra da casa de Louredo, retoma o discurso inicial quando falava sobre a ruína a que estava reduzida a velha casa da mina, dizendo que o dinheiro para comprá-la veio da América, trazido pelo avô que lá fez fortuna e na volta à Espanha aproveitou a falência dos marqueses de Allariz, tornando-se dono da casa e casando-se com D. Matilde. É importante pensar que a base aqui é a ruína, a destruição, a casa foi comprada porque os marqueses de Allariz também estavam em ruína. A narradora-protagonista começa e termina o capítulo falando da ruína, primeiro a da casa em Louredo, depois do estado em que se encontra D.. Matilde, à beira da morte, para falar do próprio estado em que se encontra. A velhice da casa da mina denota sua própria velhice.

As lembranças de Eulalia seguem a linha do pensamento, e por isso não respeitam a linearidade, levam-na para infância quando ainda era amiga do irmão, e aos anos na universidade quando conheceu Lucía, também recordam-lhe seu ex-marido Andrés. Pela metáfora do fio, Eulalia tira coisas do fundo do poço da memória, e a maneira como o livro é apresentado - forma de diálogo-monólogo – nos sugere que o curso de uma conversa se dá desta maneira, enquanto falamos surgem outras idéias que ordenamos de uma maneira ou de outra.

O resgate da memória feito por Eulalia dá a ela uma racionalidade que não possuía no começo da narrativa, nota-se que a personagem não é a mesma. As transformações ocorridas acontecem pelo poder da palavra, pelas viagens realizadas entre passado e presente. Uma das mudanças é notada no momento em que está narrando os fatos ao sobrinho Germán, percebemos que adquiriu um outro modo de olhar, consegue enxergar sua vida sob uma outra perspectiva:

''Ahora puedes contarme que me echaste de menos, decirme lo que entonces querrías haberme dicho, ahora que es un lujo porque has puesto distancia entre la herida y tú, a eso nunca te puede ayudar nadie, o aprendes solo o te hundes'' (MARTÍN GAITE, 1995, p.185).

Quando a personagem começa a narrar notamos que está no fundo do poço, é a conversa com seu sobrinho, é exatamente através do ato de rememorar que consegue agir de outra maneira. Para Eulalia, ao contrário do que pensava Germán, aquele era o momento justo. A morte da avó havia criado o tempo exato, pois para ela nada acontecia a ''destiempo''.

Enquanto Eulalia conversa com Germán, observamos nela uma vontade de poder voltar no tempo e uma grande nostalgia do passado. Quando fala com o sobrinho sobre a questão de ter ou não filhos, percebemos neste momento de auto-reconhecimento que descobre ser tarde demais, seu tempo já passou, verifica-se que: ''a medida que pasa el tiempo piensas si no habrás perdido irremesiblemente algo fundamental'' (MARTÍN GAITE, 1995, p.214). No seu caso, tanto a possibilidade de ter um filho que poderia tr a idade de Germán, quanto a possibilidade de refazer seu casamento eram coisas totalmente irrecuperáveis.

A personagem Germán, por sua vez, começa seu monólogo pegando a ponta do fio que deixou a tia – esta estrutura será mantida até o final da narrativa - e como ela, também faz um constante vai-e-vem através de suas lembranças, assim, fala de uma foto de Eulalia e Lucía quando jovens e passa à sua infância recordando-se da morte da mãe, do casamento do pai com a instrutora Colette. Germán também transita entre passado e presente, estava falando de sua infância e de repente trata de um passado mais recente: horas atrás, quando a tia voltou do monte Tangaraño e encontrou-o em casa a sua espera. Quando a vê desconhece o que aconteceu com a tia, e ela, por sua vez, não sabe como Germán foi recepcionado por Juana, os dois estão assustados: uma viu a morte a cavalo; o outro um espectro que perambulava pela casa.

Para ele, esta era uma oportunidade de falar de suas desilusões, de contar sua história, de retornar a casa onde havia pronunciado a primeira palavra e acima de tudo rever a tia Eulalia, que tanto admirava:

''Para mi este de la abuela ha sido el primer pretexto de fuste, aunque, a ver si me entiendes, es desde luego el que menos puede tener que ver con el argumento de mi propia vida, pero en cambio tiene que ver con la vida de la casa, y yo soy de la opinión que las cosas hay que verlas en su salsa; a mi que se muera una señora de cien años con la que no he tenido apenas tratos me deja en sí bastante indiferente como comprenderás,''(MARTÍN GAITE, 1995, p.65).

Por esta citação temos a certeza de que o importante para Germán era reencontrar Eulalia, a morte de dona Matilde não possuía um significado particular para ele. É importante lembrar que mesmo sendo 'convidado' por Juana, não entra no quarto para ver a velha senhora, nem mesmo pergunta sobre seu estado. Passa o tempo todo esperando que Eulalia volte do monte e, quando ela chega, aproveita cada segundo de sua companhia. Germán passa do relato da chegada da tia a casa, de como foi recepcionado, a uma festa de fim de ano e menciona a ex-namorada Ester, utilizando a técnica da expansão pela palavra, faz estes saltos na narrativa, mudando ainda para a separação de Eulalia e Andrés e dos conflitos entre o pai e Colette.

O encontro na velha casa da mina é momento de fazer contas com o passado tanto para Germán quanto para Eulália, é exatamente por isso que os argumentos da madrasta para fazê-lo mudar de idéia, suas dúvidas no aeroporto de Madri não o impedem de chegar a Louredo. Tia e sobrinho finalmente haviam encontrado o interlocutor ideal. Como disse a própria Martín Gaite em seu livro La búsqueda de interlocutor y otras búsquedas, ''En resumen: que si el interlocutor adecuado no aparece en el momento adecuado, la narración hablada no se da.''(MARTÍN GAITE, 1982, p.25). E Germán explica isso a tia quando retoma a importância de poder contar e ter para quem contar, recorda à Eulalia que se não tivesse atravessado meia Espanha para passar a noite com ela, a história do encontro com a morte no Tangaraño não teria nascido, porque segundo Germán, as pessoas contam histórias para fazer com que se tornem reais, para acreditar nelas, pois: ''lo que está bien contado es igual a que se fuera verdad, que más da la verdad que la mentira''.(MARTÍN GAITE, 1982, p.58) Sabemos que a questão da interlocução é recorrente na obra de Martín Gaite.

Para nós, foi exatamente esta falta de diálogo que deteriorou a relação dos integrantes da família Orfila. Não permitindo a Germán manter um relacionamento com a namorada Ester. Esta mesma falta de interlocução fez com que o casamento de Eulalia e Andrés chegasse ao fim, pois ela queria forçadamente fazer dele seu interlocutor ideal, mas não conseguiu.

No ir e vir das lembranças Germán narra a conversa que teve com o amigo Pablo, reforçando este tema da interlocução ideal. Germán conta que estava deitado na praia olhando as estrelas, lembrando de Eulalia quando Pablo se aproxima e sua memória o transporta à infância:

''una escena completamente olvidada, ya ves, del año en que murió mamá, me la trajeron las estrellas, porque aquella noche también estuve mirando las estrellas con los ojos muy abiertos hasta que empecé a cerrarlos, a ratitos, a dormirme de puro gusto de sentir tus manos en mi pelo,''(MARTÍN GAITE, 1995, p.87)

Germán volta ao presente para explicar ao amigo Pablo quem era Eulália, começam a falar da viagem que Pablo fez à Indonésia e passam a viagem de Germán a Londres, retomam a questão do fio narrativo e passam toda a noite em claro falando do ato de saber contar. Com o pretexto do fio conta como soube da notícia da morte da avó.

As lembranças da mãe são muito fortes para Germán. Após a morte de Lucía, ele a substituiu por Eulalia, que nunca estava por perto, passou toda a infância e parte da adolescência fazendo o papel de guardião da memória da mãe. Germán conta sobre a última visita de Eulalia à casa dele, presta tanta atenção nela, que depois de tantos anos, consegue descrever o que vestia e até o que falava: ''también hablaste de la situación política, de como encontrabas España'' (MARTÍN GAITE, 1995, p.179). Temos aqui outra lembrança importante que poderia ter repercussão coletiva, mas Germán faz a citação e como a tia, muda de assunto. Como já dissemos anteriormente as personagens não têm nenhuma intenção, ou compromisso com a memória coletiva, não pretendem resgatá-la, se apóiam nela, mas retornam sempre à memória individual.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MARTIN GAITE, Carmen. La búsqueda del interlocutor e outras búsquedas, Barcelona, Destino, 1982.

______________________. Retahílas, Barcelona, Destino, 1981.