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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002
Desastres do pós-guerra
Margareth Santos
Centro Universitário Nove de Julho
Fundação Armando Álvares Penteado
Ver a pintura como literatura em imagens ou ler a literatura como pintura em palavras é um pensamento recorrente que traz como ponto de partida célebre o ut picturas poesis, origem de tantas interpretações. Ao longo do tempo e de discussões acaloradas, a máxima de caráter preciso foi ganhando cada vez mais um valor metafórico, conceito este que ainda hoje se centra em uma preocupação que marca a arte contemporânea: a questão da linguagem.
Se a localizamos no âmbito da experiência estética, a linguagem posiciona a pintura não como ''ilustração'' da palavra e tampouco a literatura como simples plasmação visual, mas o que se estabelece é um vínculo entre ambas, o que se busca é revelar uma tensão, uma distância criativa entre as imagens e a linguagem.
E essa tensão a viu André Malraux que em uma de suas discussões, afirmou que com Goya nascia a arte moderna. Embora discutível, dada a impossibilidade de precisar este nascimento, tal afirmação se aplica com propriedade, pelo menos em alguns aspectos da obra do pintor aragonês, visto que sua obra contrasta com a produzida por outros artistas de sua época, não só pela sua variedade conceptual e brilho nas soluções plásticas, mas também pelo grau extremo de expressão que alcança, difícil de se conceber até então.
O grau de expressão alcançado por Goya em sua época se dá por meio de uma profunda consciência plástica e de tentativas de compreensão do mundo caótico que girava diante de si, o que gerou em suas obras um estado contraditório: uma sublime delicadeza unida a uma sublime brutalidade.
Em meio a esse estado contraditório é que busco discutir a incorporação da herança goyesca na literatura espanhola pós-guerra e seu signo de modernidade, que creio, encontra-se em pelo menos dois romances espanhóis desta época: Nada, de Carmen Laforet e Tiempo de silencio de Luís Martín-Santos.
A escolha destes romances se fundamenta na presença do traço plástico goyesco, não como arte plasmada em cenas narrativas, mas como uma plasticidade que se revela na tentativa de compreensão do mundo exterior e seus mecanismos no mundo pós-guerra, refletidos em personagens de visão estreita que recuperam no cotidiano um meio sem horizontes, de ilusões perdidas. Neste meio a linguagem incorpora procedimentos de construção da pintura de Goya, especialmente de dois conjuntos de obras Os Caprichos e Desastres da Guerra.
Friso que não se trata apenas de esmiuçar a arte de Goya, lançando um olhar ao passado e resgatá-lo no presente nem mesmo apontar para uma influência consciente ou não da estética goyesca na literatura espanhola do pós-guerra. Pretende-se mostrar que a escritura pode ser uma forma de arte e a arte uma forma peculiar de escritura e que ambas buscam não só a transmissão de conhecimento, mas também a produção do mesmo.
Nada
La sangre, después del viaje largo y cansado, me empezaba a circular en las piernas entumecidas y con una sonrisa de asombro miraba la gran estación de Francia...
É assim, entre excitação e assombro que se inicia Nada, o romance de Carmen Laforet, que traz como protagonista Andrea, jovem interiorana que vai a Barcelona para estudar. Entre os estímulos vitais do sangue que circula por suas pernas, a visão da estação de Francia e da multidão que por ali circulava, o espaço começa a penetrar-lhe por todos os sentidos, envolvendo-a, fazendo-se presente:
El olor especial, el gran rumor de la gente, las luces siempre tristes, tenían para mí un gran encanto, ya que envolvía todas mis impresiones en la maravilla de haber llegado por fin a una ciudad grande, adorada en mis ensueños por desconocida.
Olfativo e visual, o espaço público, animado pelos sentidos assombrados de Andrea, surge imperativo, carregado de grande poder de significação: trata-se de um mundo de ''ensueño''.
No entanto, este ''ensueño'' que traz consigo a marca do desconhecido e suas luzes, matizadas pelo ''siempre'' nos centra e antecipa a natureza de Nada: estamos diante de uma trajetória e da tentativa de resgate do período de um ano em que a personagem esteve em Barcelona, dividida entre o espaço público, ostensivamente encantador em um primeiro momento, e o privado: a casa da rua Aribau, onde viviam seus parentes e aonde chegava agora Andrea.
A caminho do que seria sua casa, o entrelaçamento do espaço externo às sensações de Andrea vai adensando-se:
Un aire marino, pesado y fresco, entró en mis pulmones con la primera sensación confusa de la ciudad: una masa de casas dormidas; de establecimientos cerrados; de faroles como centinelas borrachos de soledad. Una respiración grande, dificultosa, venía con el cuchicheo de la madrugada.
Aliados os detalhes o ''siempre tristes'' inicial e a ''respiración dificultosa'' forma-se uma bolha em meio ao deslumbramento, um gosto amargo, final, parece apontar para algo ainda indefinido, mas sem dúvida incômodo, pairando no ambiente, apenas revelado aos poucos na trajetória de Andrea em Barcelona.
Ao chegar na casa da rua Aribau, Andrea se vê frente ao que será seu espaço privado. Impactante já no primeiro momento, deste encontro virá uma constante do romance: o choque entre as luzes da cidade e o aspecto fantasmagórico e decepcionante de seus parentes:
En toda escena había algo angustioso, y en el piso un calor sofocante como si el aire estuviera estancado y podrido. Al levantar los ojos vi que habían aparecido varias mujeres fantasmales.
Casi sentí erizarse mi piel al vislumbrar a una de ellas, vestida con un traje negro que tenía trazas de camisón de dormir. Todo en aquella mujer parecía horrible y desastrado, hasta la verdosa dentadura que me sonreía.
A visão do espaço privado gera um confronto mudo e desconcertante: a realidade vista foge à regra, pois o privado se mostra arredio, desastrado e fantasmagórico, impossibilitando qualquer tipo de sensação confortável. Dessa forma, choca-se com o público, carregado de excitação.
Em meio ao turbilhão desatado pelo confronto desses dois espaços brotam descrições que se aproximam aos Caprichos de Goya e suas criações tétricas, envolvendo protagonista e leitor em um clima de pesadelo real, no qual uma escuridão caótica emerge e se alastra em meio à sujeira, dando vida distorcida e sufocante ao ambiente que a cerca.
Parecía una casa de brujas aquel cuarto de baño. Las paredes tinzadas conservaban la huella de manos ganchudas, de gritos de desesperanza. Por todas partes los desconchados abrían sus bocas desdentadas rezumantes de humedad. Sobre el espejo, porque no cabía en otro sitio, habían colocado un bodegón macabro de besugos pálidos y cebollas sobre fondo negro. La locura sonreía en los grifos torcidos.
O clima de pesadelo inserido em uma realidade assustadora nos remete aos ''sueños de la razón que producen monstruos''. Neles, razão e pesadelo se misturam, engendrando o absurdo como parte da realidade essencial dos moradores da rua Aribau. Uma realidade que se revelará paulatinamente à Andrea: na rua Aribau conviverá com uma família castigada duramente pela guerra; com os gritos insanos de seu tio Juan e sua mulher Gloria; por algum tempo com a hipocrisia de sua ditadora tia Angustias, sempre pronta a lutar pelo controle da casa com o sedutor Román e a imperativa fome que castigava a todos.
Pouco a pouco a memória de Andrea, mediadora entre o vivido e o narrado, vai revelando a nós os moradores e suas personalidades atormentadas, capazes de tomar e dominar os sentidos.
Perplexidade, mesclada à desilusão e assombro de Andrea, nos põe diante de um movimento constante de questionamento e reflexão, por meio do qual Andrea alcança e toca a face ambivalente do mundo, repleto de contradições e carente de soluções prontas, preestabelecidas, deixando para trás ilusões e esperanças ao chegar a uma compreensão de seu entorno.
Este mesmo movimento, de compreensão do entorno, vejo nos Caprichos de Goya, apresentados em público como um trabalho no qual buscava:
Exponer a los ojos formas y actitudes que sólo han existido hasta ahora en la mente humana, obscurecida y confusa por la falta de ilustración ó acalorada con el desenfreno de las pasiones.
Se observamos os epítetos que acompanham cada uma das estampas, concordamos com a idéia de uma representação mimética e moralizante do mundo com todos seus vícios e perversões, mas se nos detemos por mais tempo nas pequenas cenas, se nos aproximamos a tal ponto de meter o nariz neste universo e daí perceber seus detalhes, nossos sentidos captam algo que vai além das frases em forma de ''refranero''.
Vemos que o mimetismo não é tão exato e que as cenas revelam ambigüidades, e estas não permitem a limitação superficial de frases ''refraneras''.
O entrelaçamento irregular do real e do pesadelo traz à tona o reconhecimento de um mundo ambíguo e inquietante, no qual é preciso enxergar com olhos de lince o espaço obscuro que se revela diante de nossos olhos, espaço tão claustrofóbico como o da casa da rua Aribau.
Como nos Caprichos, vemos que em Nada, muito do que parece ser não o é. À medida que avança o texto, o leitor se dá conta de que a visão ostensivamente idílica da cidade vai dissipando-se e entrelaçando-se à fantasmagoria do espaço privado. O espaço público que parecia tranquilizador e luminoso, pouco a pouco revela-se tão fantasmagórico e lúgubre como o espaço privado da rua Aribau.
A fusão clímax desses espaços nos chega pelos impulsos irracionais que movem, deformam e transformam os moradores da rua Aribau em personagens de ''caprichos'', ''disparates''. Como na cena em que Juan, à procura de sua mulher Gloria, pelas ruas de Barcelona, se atraca com um bêbado que acidentalmente cai sobre ele:
Encima de aquel infierno-como si sobre el cielo de la calle cabalgaran brujas- oíamos voces ásperas, como desgarradas. Voces de mujeres animando a los luchadores con sus pullas y sus risas. Alucinada, me pareció que caras gordas flotaban en el aire, como los globos que a veces dejan escapar los niños.
(GOYA Y LUCIENTES, Francisco de Goya. ''Todos caerán'' y ''Corrección'' in Los Caprichos.
Madrid, Central Hispano, 1998 pp.19,46.)
A plasticidade dessa cena aponta para as estampas goyescas, o entorno noturno, plasmado em imagens que, devido a deformação e animalização revelam um mundo ao revés, no qual a mímesis também se inverte, criando imagens complexas e ambíguas que se equilibram no tênue fio de um pesadelo perigosamente real.
O brilhante espaço público se converte em um obscuro objeto de desejo que atrai, mas não consuma a satisfação radiante do passado idílico.
Essa insatisfação não revela apenas o espaço em si, mas também todos os desdobramentos e descobrimentos de Andrea na passagem para o mundo adulto, o que se revela com toda sua contundência e desilusão.
Cai por terra a recorrente e onipresente polarização entre público e privado. Ao deter-nos nas cenas que se desdobram diante de nossos olhos e meter o nariz em suas imagens, invadimos a narração munidos dos cinco sentidos atentos e desvelamos o parecer para tocar, ainda que levemente, o ser.
Ao reconhecer a face inquietante dos espaços, conectá-los e revelá-los em sua ambivalência, ultrapassamos a linha da visão memorialista em Nada para alcançar a idéia de um romance de passagem, no qual arma-se um pêndulo entre a experiência vivida e a narrada.
Tiempo de silencio
Entre a experiência vivida e narrada está o silêncio e o silencio é uma das possibilidades da fala, nos aponta Heidegger. Na narração de Tiempo de silencio há muitos tipos de silencio, um deles irônico, já que freqüentemente ''fala'' pelos que calam ao longo deste romance de hábil perspectiva narrativa, na qual muitos narradores nos contam a história.
Entre falar e calar, Luis Martín-Santos criou um romance que se firmou como marco na literatura espanhola de pós-guerra e separou, definitivamente, a novela realista e objetiva, muitas vezes com traços de protesto, para inaugurar uma forma mais intelectual e subjetiva de narrar.
Neste novo modo de narrar, a obra expõe claramente algumas de suas intenções temáticas: Cervantes, um quadro de Goya e os touros e toureiros. Por meio de associações de idéias as intenções se incorporam à narração principal: a história de um homem que tentou realizar-se como cientista e fracassou.
E é por meio da história de fracasso deste homem, Pedro, que se mesclam e se examinam outros fracassos. Histórias que são acompanhadas, estudadas com lupa, ainda quando se tratam de personagens secundários, como são os casos de Muecas e Dorita. A pluralidade técnica e estilística cria um efeito de individualidade, dando uma dimensão social e pessoal, ou seja, não estamos falando de tipos, mas sim de entes individualizados, estes vistos por vários ângulos.
Em um destes ângulos, destaca-se a descrição explícita de um quadro de Goya:
¿Qué importa? Vamos a ver mi Goya.
El Goya de Matías era una gran reproducción a todo color pinchada con chinches en la pared de su cuarto con absoluto desprecio del mobiliario Imperio y de papel rosado que la recubría. El gran macho cabrío en el aquelarre, rodeado de sus mujeres embobadas, las recibía con un gesto altivo, con la enhiesta cabeza dominando no sólo a cada una de las mujeres tiradas por el suelo, sino también a cuanto inermes espectadores se atrevieran a fijar en el cuadro su mirada. (150)
(GOYA Y LUCIENTES, Francisco de. ''Aquelarre'' in Goya. Madrid, Museo del Prado, 1992).
O quadro em questão é Aquelarre, que se encontra no Museu Lázaro Galdino. Pintado para o palácio dos duques de Osuna, a tela apresenta uma visão um pouco satírica e agradável em seu conjunto na discussão do tema das superstições. Nele, vemos a combinação de montanhas azuladas com o céu matizado de cinza, e contra esse fundo, um grupo de bruxas que rodeiam a imensa figura do diabo com um ar jocoso traz sobre seus chifres uma coroa de folhas, que nos lembra a iconografia de Baco. E este bendiz uma jovem que se aproxima oferecendo-lhe seu filho, junto a velhas que fazem o mesmo com crianças esqueléticas.
Em Tiempo de silencio o que se destaca é a figura do macho cabrío, descrito por Matías como
Le grand bouc, el gran macho, el gran buco... En el que tener dos cuernos no es sino reduplicación de la potencia. Allí con ojo despierto, mirando a la muchedumbre femelle que yace sobre su regazo en ademán de ausparishtaka y en de las que los abortos vivos parecen expresar en súplica sincera la posible revitalización por el contacto de quien (...) se complace en depositar la pezuña izquierda benevolentemente sobre el todavía frío ya escuálido (...) cuerpo del raquitismus enclencorum de las mauvaises couches reduplicativas(...). (151)
Embora destaque os ''cornos'' como grande elemento fálico, potente e dominador e veja neles um verdade latente na relação masculino/feminino, Matías mantém o caráter narrativo da cena, na qual o macho cabrío concentra elementos empíricos e ilustrativos.
No entanto, à medida que a obra avança e seus personagens vão fracassando ou mostrando-se como fracassados, a anedota dá lugar a uma densidade dramática que deixa de lado a descrição para alcançar um caráter arquetípico que ao mesmo tempo universaliza e individualiza os sentimentos dos personagens: abandona-se a descrição exterior e se chega a uma complexidade plástica e narrativa interior.
Esta complexidade aparece, por exemplo, na cena em que Pedro está dentro da prisão, ali
tras lo que nuevo serpenteante corredor, ahora subterráneo, con luces de neón simuladoras del día, del que ya las paredes berroqueñas son desnudamente hijas directas de la tierra(...) La próxima boca da paso a una garganta escalonada y tortuosa a través de la que, sin carraspeo alguno, la ingestión es ayudada por los movimientos peristálticos del granito cayendo así—tras nuevas rejas— en la amplia plazoleta gástrica donde se iniciara la digestión de los bien masticados restos (202-203).
A prisão adquire contornos humanos, mas não externos e sim internos, são órgãos de digestão, são as paredes manchadas em que se pode desenhar mentalmente.
Dibujar la sirena con la mancha de la pared. La pared parece una sirena. Tiene la cabellera caída por la espalda. Con un hierrito del cordón del zapato que se le ha caído a alguien al que no quitaron los cordones, se puede rascar la pared e ir dando forma al dibujo sugerido por la mancha. (209)
Mas a sugestão vem de sua própria mente, da liberdade da ''pincelada'' com o cadarço do sapato, liberdade que ainda crê ter, embora dentro de uma prisão, a liberdade de pensamento, de expressão, algo sem dúvida sugestivo, que nos remete às gravuras em água- forte dos Caprichos e Desastres da Guerra e à Quinta do Surdo, casa em que Goya pintou nas suas paredes visões densas e repletas de liberdade. Ainda que estivesse preso a um regime persecutório de Fernando VII, o aragonês pode expressar sua liberdade pelo movimento de seu buril e pela visão tétrica das Pinturas Negras .
Da mesma forma, podemos dizer que tanto Nada como Tiempo de silencio vão caminhando do exterior ao interior, do tópico ao arquétipo, de ruas madrilenas repletas de gente à uma prisão plena de pensamentos e desenhos raspados em uma parede manchada, a um banheiro de paredes tinzadas y grifos torcidos. Desfaz-se a polarização entre o público e o privado.
A visão se estreita, o horizonte perde amplitude, o espaço encolhe e as ilusões se perdem. E nesse ponto a parede suja da prisão na qual está Pedro se encontra com as paredes manchadas da calle Aribau, que por sua vez reverberam as imagens das paredes da Quinta do Surdo não só em tema, mas sobretudo esteticamente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GOYA Y LUCIENTES, Francisco de . Goya. Madrid, Museo del Prado, 1992
GOYA Y LUCIENTES, Francisco de. Los Caprichos. Madrid, Central Hispano, 1998.
LAFORET, Carmen. Nada, Barcelona, Seix Barral, 1996.
MARTÍN-SANTOS, Luis. Tiempo de silencio, Barcelona, Seix-Barral, 2001.