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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002

 

A recepção de Dom Quixote no Brasil. Leituras do episódio XVII, 2ª parte

 

 

Maria Salete Toledo de Uzeda Moreira

Universidade de São Paulo

 

 

A história da recepção de um livro mostra as diversas leituras possíveis de um mesmo texto. Cada leitor tem uma rede de referências pessoais, que se mistura ao pensamento de uma época e de um lugar. A leitura de Dom Quixote por um homem do século XX é muito diferente da época em que o livro foi escrito. Desde a sua publicação, a história do tão famoso cavaleiro andante foi lida ora como comédia, outras vezes drama, ou uma mistura de gêneros.

Anthony Close, ao organizar a história crítica do livro de Cervantes, apresentou duas visões possíveis para interpretar-se uma obra literária. Uma delas busca no texto e em elementos de época uma compreensão histórica. A questão principal está centrada no leitor contemporâneo da obra e na mentalidade da época em que o livro foi escrito.

Outra leitura tenta adequar o sentido do texto à perspectiva mental do leitor moderno. É uma visão romântica da obra, pois transporta a personagem do século XVII a um novo tempo e tenta interpretá-la nesse novo contexto.

Alguns escritores brasileiros escreveram artigos sobre o livro de Miguel de Cervantes, Dom Quixote, nas primeiras décadas do século XX. Suas leituras, muitas vezes, eram mais interpretações do mito da personagem do que propriamente uma análise feita a partir do texto.

Podemos ver, por exemplo, em Olavo Bilac, de 1912 e San Tiago Dantas, de 1947, uma interpretação exageradamente romântica. O primeiro pede ao cavaleiro andante que inspire o povo brasileiro a lutar por uma pátria melhor. O outro, convida seus leitores a seguir o exemplo do herói apaixonado, que luta para conquistar sua amada.

Outros escritores, como José Veríssimo, em 1905, também destacaram o lado idealista de Dom Quixote. Ao mesmo tempo, o artigo apresenta outros aspectos interessantes da obra, como a idéia do romance como a epopéia do homem moderno e uma visão do texto enquanto sátira.

A leitura feita da obra de Cervantes no Brasil, muitas vezes, buscou na obra todo o sentimento de angústia e de mundos idealizados. A herança dos românticos alemães do século XIX ainda estava bem presente na visão da crítica literária brasileira. Muitos autores haviam lido Miguel de Unamuno, cuja interpretação de Dom Quixote foi muito particular. Para ele, Dom Quixote era um mito, salvador da Espanha em crise.

Para exemplificar as maneiras diversas de interpretação de uma mesma narrativa, veremos três possíveis leituras do capítulo XVII da segunda parte, o episódio dos leões. Primeiro, a recriação da história feita por Unamuno, que influenciou muito os leitores no Brasil. Depois, o ensaio de Brito Broca, que faz um comentário sobre o episódio. Tanto Unamuno, quanto Brito Broca fogem do texto original e tratam mais do mito e de seus grandes feitos. Por último, uma leitura que busca no texto marcas do tempo em que foi escrito.

No livro Dom Quixote, a aventura começa com as confusões de Sancho Pança. Ele havia comprado requeijões de uns pastores e guardou-os na celada de Dom Quixote. O cavaleiro estava conversando com o fidalgo do Verde Gabão, falando de seus inimigos visíveis e invisíveis. Pediu ao escudeiro sua celada, não percebeu o que tinha dentro e acabou com os requeijões escorrendo pelo rosto.

Depois de considerar o desastre mais um encantamento, Dom Quixote avistou um carro com bandeiras, trazendo bravos leões, segundo o condutor. Eles seriam entregues à corte, presente para a Majestade. Dom Quixote viu ali uma oportunidade de mostrar seu valor, sua coragem e seu destemor contra os encantadores. Desafiou o leoneiro a soltar os ferozes leões.

Apesar de Sancho e o fidalgo tentarem impedir a aventura, Dom Quixote viu-se como um cavaleiro andante e insistiu no desafio. Preparou-se para a batalha, pediu a Sancho que comunicasse o combate a sua amada Dulcinéia, tomou da lança e do escudo e pôs-se diante da jaula.

O leão espreguiçou-se, abriu a boca, bocejou, lavou sua cara com a enorme língua e deu meia volta. Virou-se para dentro da jaula e deitou-se.

O cavaleiro ficou indignado e pediu ao leoneiro que provocasse o animal para que pudesse com ele lutar. O leoneiro negou-se, mas enalteceu a coragem de Dom Quixote em desafiar seu inimigo. Segundo o condutor da carroça, o cavaleiro já teria mostrado sua coragem e o leão seria visto como covarde, por não enfrentar o perigo.

Dom Quixote pediu o testemunho do leoneiro para provar sua honra, diante de seus companheiros. Também quis que a partir daquele momento fosse chamado de Cavaleiro dos Leões e não mais o da Triste Figura.

Miguel de Unamuno foi um dos escritores que ajudou a divulgar a leitura romântica de Dom Quixote. Seu livro Vida de Don Quijote y Sancho, de 1905 é uma recriação das aventuras do cavaleiro. Unamuno não queria encontrar o sentido de Cervantes, mas sim uma filosofia do povo espanhol.

O episódio dos leões tem uma releitura, com destaque para a coragem do herói. O narrador explica durante o capítulo que os fatos apresentados por Cervantes não poderiam ser modificados, isto é, o leão realmente não enfrentou Dom Quixote. Mas a interpretação para a ação do animal poderia ser muito variada.

Há um questionamento sobre a versão do narrador de Dom Quixote, Cide Hamete Benengeli ou quem escreveu a façanha. Ele não teria entendido o que se passou.

'' No, no fue así, sino lo que en verdad pasó es que el león se espantó o se avergonzó más bien al ver la fiereza de nuestro Caballero, pues Dios permite que las fieras sientan más al vivo que los hombres la presencia del poder incontrastable de la fe. O ? no sería acaso que el león, soñando entonces en la leona recostada, allá en las arenas del desierto, bajo una palmera, vio a Aldonza Lorenzo en el corazón del Caballero?? No fue su amor lo que le hizo a la bestia comprender el amor del hombre y respetarle y avergonzarse ante él?'' (UNAMUNO, 1987, p.166)

A interpretação do episódio poderia ser livre, segundo o narrador. Mesmo que fugisse muito da intenção original do autor. Por que Unamuno precisou modificar tanto a história? Queria valorizar a figura de Dom Quixote, mostrando seu lado de coragem e de homem apaixonado que se entrega totalmente a busca de seu amor. Alonso, o Bom, é apresentado como sofredor, que preferia morrer nas garras do leão a ter seu coração partido de amor.

Dom Quixote é comparado por sua valentia a El Cid, grande herói espanhol. O cavaleiro deveria ser obediente aos sinais de Deus. O desafio do leão foi uma prova sobre sua fé, pois era a oportunidade para mostrar uma ação vitoriosa de Dom Quixote.

A leitura feita por Unamuno do livro de Cervantes é extremamente romântica. Recupera heróis ou santos espanhóis que ficaram famosos por sua valentia ou lutas por defender a pátria. El Cid , Inácio de Loyola são mitos da Espanha. Ao comparar Dom Quixote com eles, Unamuno criou um mito mais forte ainda. Além da fé, da coragem deles, Dom Quixote tinha outra força mais: o amor. Idealizado, inatingível, mas que movia o cavaleiro por suas aventuras. A salvação da Espanha estaria nas mãos das pessoas que seguissem o espírito de luta, a fé e o amor de Dom Quixote. Unamuno criou um mito, que será a base para muitas outras leituras posteriores.

No Brasil, o escritor Brito Broca escreveu em 1951, ''O engenhoso fidalgo Miguel de Cervantes'', publicado em Ensaios da mão canhestra. Neste texto, o autor apresenta a vida de Cervantes, a história de Espanha, comentários sobre aspectos literários e um levantamento de trabalhos e referências sobre o livro no Brasil.

Não há uma análise do livro; o pequeno comentário sobre o episódio dos leões, que aparece no texto serve para ilustrar uma leitura romântica da ação do herói.

Apesar de no texto não predominar a leitura do mito, neste episódio há um exagero na valorização dos atos de Dom Quixote. A cena é considerada como o ponto mais alto da exaltação do herói. Após vencer o Cavaleiro dos Espelhos, Dom Quixote teria aumentado a confiança nele mesmo. Com essa força, decidiu lutar não mais contra inimigos imaginários; agora poderia enfrentar animais verdadeiros. Sua forte demonstração de coragem faz com que o leitor se identifique com a personagem, pois todos já tiveram medo um dia.

Depois do episódio, Dom Quixote não vai conseguir mostrar outra vez sua valentia. Segundo o texto, a partir desse capítulo, o cavaleiro começa a declinar, pois seus sonhos correspondem cada vez menos à realidade.

O desafio contra os leões mostrou um herói brigando como um cavaleiro andante, ao mesmo tempo que na realidade os animais continuaram a dormir. Brito Broca não vê apenas o ideal; aponta também o declínio da personagem. Não aparece o lado cômico e nem se comenta a conversa de Dom Quixote com o leoneiro, para que ele seja testemunha de sua vitória.

O texto de Brito Broca termina de uma maneira muito curiosa. O autor, como se fosse um leitor de novelas de cavalaria, que torcia por seus heróis e esperava sempre pela continuação de suas aventuras, sugere que após a morte de Dom Quixote, Sancho deveria sair pelas estradas de la Mancha, para ''reconduzir, num pacto de fidelidade, o facho que Dom Quixote, vencido, deixou cair por terra, na corrida para as estrelas.'' (BRITO BROCA, 1981,p.116)

Os dois autores vistos acima trabalharam mais com a idéia do herói vencedor, que mostra sua coragem diante dos inimigos. Há uma exaltação de suas qualidades e o mito passa uma esperança para o leitor de todos serem capazes de vencer, se seguirem os passos do tão ilustre cavaleiro.

Um leitor do século XVII tinha outras referências para ler Dom Quixote. Ele havia lido as novelas de cavalaria, tão famosas em seu tempo e podia reconhecer os valores importantes para os cavaleiros. Os combates aconteciam como forma de provar a verdade e de conquistar a honra da pessoa. Com as vitórias nos duelos, os cavaleiros podiam seguir na luta contra as injustiças do mundo.

Cervantes apresentou o episódio dos leões de uma maneira cômica, pela própria figura do cavaleiro, sujo de requeijão, enfrentando feras, que preferem dormir a lutar. Os animais, símbolos do perigo, da força, aparecem como gatinhos inofensivos. E Dom Quixote tem uma aparência contrária ao ideal da cavalaria.

A aventura contra os leões não era uma ilusão de Dom Quixote. Os leões estavam ali e poderiam estar famintos realmente. Sorte de nosso cavaleiro, que as feras não agiram como outros animais que aparecem na literatura de cavalaria. Estes leões de Cervantes não eram como os exagerados dragões que ameaçavam antigos cavaleiros. Também não tiveram que lutar contra heróis como Palmerín de Oliva, Palmerín da Inglaterra, que venceram as feras.

No episódio, Dom Quixote vê a possibilidade de provar sua verdade diante de testemunhas. O Cavaleiro do Verde Gabão, que assiste à cena, não tinha certeza da loucura de Dom Quixote. O desafio aos leões foi uma maneira encontrada pelo cavaleiro para mostrar sua obediência às regras da cavalaria. A vitória no combate mostraria a força e a honra do herói. Ele ganharia fama e poderia seguir em sua luta contra as injustiças do mundo.

Mas o que vemos é um cavaleiro sem adversários. Como ser visto pelos outros como uma pessoa honrada, se para um cavaleiro o importante é vencer seus inimigos e servir aos fracos? Dom Quixote atua como um vitorioso, mesmo que não seja realmente. O importante é como ele é reconhecido pelas testemunhas do episódio. A honra, a fama são qualidades que os outros podem atribuir-lhe . Mesmo apresentando elementos cômicos na cena, também aparecem informações que causam admiração. È o herói sem inimigos, mas que parece vitorioso.

A história da recepção deste livro é muito rica, pois os leitores foram atualizando os sentidos do texto de acordo com suas épocas. Para os alemães, Dom Quixote representou o espírito do movimento romântico. A visão idealizada da personagem correspondia à necessidade de um povo, que procurava por um símbolo para suas idéias. O cavaleiro apaixonado, em luta constantes por seus ideais, virou mito. Saiu da Alemanha e ganhou a leitura de muitas pessoas. No Brasil, pudemos ver que muitos autores escreveram mais sobre o mito romântico do que sobre a obra de Cervantes.

Como os leitores do século XVII receberam esse livro? Eles viviam uma realidade mais próxima das histórias de Dom Quixote. Os cavaleiros não mais existiam, mas suas lembranças eram recentes. O livro Dom Quixote recupera uma Espanha gloriosa, não por meio de ações vitoriosas, mas sim por representações dos valores que eram considerados importantes para a sociedade. A defesa da honra, tão importante para os antigos cavaleiros andantes, continua sendo objetivo de Dom Quixote, não nas batalhas heróicas. O fidalgo Alonso passa a representar ser outro, para ser considerado adequado numa sociedade em transição.

O leitor encontra na literatura o mundo de seus heróis. Ele pode fazer apenas uma leitura apaixonada, viver as aventuras de suas personagens prediletas e torcer por elas. Pode também buscar novos sentidos para uma obra, ser co-autor de acordo com a mentalidade de seu tempo. Pode acreditar nas loucuras de Dom Quixote e rir delas. Pode esperar que o cavaleiro venha salvá-lo e sair a procura de Dulcinéias. Ou pode encontrar no texto, marcas deixadas pelo autor, que recuperam parte do pensamento da época em que o livro foi escrito.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BILAC, Olavo. Conferências Literárias. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1930.

BRITO BROCA. Ensaios da mão canhestra. São Paulo, Ed. Polis/INL, 1981.

CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Ed. Francisco Rico, Barcelona, Instituto Cervantes, 1998, 2ª ed.

CLOSE,A. '' La crítica del Quijote hasta ahora'' in Cervantes. Madrid, Centro de Estudios Cervantinos, 1995.

______The Romantic Approach to Don Quixote – a Critical History of the Romantic Tradition in Quixote Criticism. Cambridge, University Press, 1978.

______'' Las interpretaciones del Quijote'' in Don Quijote de la Mancha. 2ª ed. Ed. Francisco Rico. Barcelona, Instituto Cervantes, 1998.

RIQUER, Martín de. Aproximación al Quijote. Salvat Editores, 1970

SAN TIAGO DANTAS. D. Quixote – um apólogo da alma ocidental. Brasília, Ed.UNB,1997

UNAMUNO, Miguel. Vida de Don Quijote y Sancho. Madrid, Alianza Editorial, 1987

URBINA, Eduardo. Principios y fines del Quijote. Maryland, Scripta Humanística, 1990