2, v.2Las fronteras de la narrativa en ''El Quijote de la Mancha''Terra e verso de Espanha em Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto author indexsubject indexsearch form
Home Pagealphabetic event listing  





An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002

 

Canção popular e franquismo

 

 

Regina Célia de Lima e Silva

Universidade Federal Fluminense

 

 

O pós-guerra, que começou no ano de 1939 e deu início à ditadura franquista, foi um período conhecido pela extrema precariedade de recursos para o povo espanhol. A fome fez com que surgissem as conhecidas ''cartillas para la comida'', cartelas utilizadas pelo povo para o recebimento de comida, além de promover a expansão do chamado ''estraperlo'', espécie de mercado negro. A ordem era economizar e citando Carmen Martín Gaite: ''Lo más importante era el ahorro, tanto de dinero como de energías: guardando todo, no desperdiciar, no exhibir, no gastar saliva en protesta ni críticas baldías, reservarse, tragar.'' (MARTÍN GAITE, Carmen, 1987, p.13)

O regime era mantido pelo Exército, pela Falange e pela Igreja. Estes eram os pilares em que Franco se apoiava para que seus objetivos fossem alcançados.

Os espanhóis calaram-se. A censura entrou em ação. Tanto a imprensa como os espetáculos eram controlados. A Radio Nacional era a transmissora oficial de todas as informações nacionais e internacionais, sendo que as emissoras privadas não tinham nenhuma autonomia e seus diretores eram designados pelo governo.

Mesmo diante de uma situação de total vigilância, na literatura ainda se conseguiu com que a jovem Carmen Laforet tivesse publicado seu significativo livro ''Nada''.

Como disse anteriormente, a Igreja foi um dos pilares para o regime de Franco e a instauração de uma monarquia católica tradicional um de seus objetivos.

O ano de 1945 foi marcante para o triunfo católico e ''apoteótico'' para o NC, nacional-catolicismo. Para Franco, catolicismo e Espanha são praticamente uma coisa só e ele se julga salvador do mundo.

A influência da Igreja consolidava-se cada vez mais e a participação de membros do Opus Dei junto à política reforçava tal poder. A presença onipotente da Igreja moldando comportamentos podia ser sentida em todos os âmbitos e como afirma Rafael Calvo Serer:

''La presencia de la Iglesia es una realidad en la vida española en todas partes: en el hogar y en la escuela, en la oficina y en la calle, en la fábrica y en el cuartel, en la Universidad en los espetáculos, en las diversiones, en las relaciones íntimas.'' (CALVO SERER, Rafael, 1953, p.290)

Podemos imaginar a sociedade espanhola não só no imediato pós-guerra, mas em anos posteriores completamente silenciada, controlada. Ignacio Aldecoa definiu muito bem aquele período:

''Si la situación económica del país era penosa, a las privaciones materiales de todo orden, alimentos, ropas, zapatos, utencilios, a la escasez y el racionamiento se unía la privación intelectual. [...] Vivíamos encerrados en nuestros propios problemas nacionales: el miedo, el desconcierto, la desesperación de la posguerra. La Universidad, reprimida, mezquina, anémica, acobardada, reflejaba la situación del país.'' (ALDECOA, Ignacio, 1991, p.17-18)

Pensar esta questão também nos faz imaginar um momento em que o rádio era o meio de comunicação mais importante, junto com o cinema. Através deles o povo mantinha um certo contato com o mundo, mesmo que seu país se encontrasse praticamente isolado deste. Dessa maneira me deterei à questão da diferença entre a utilização das canções, no caso especifico as de tema religioso, como instrumento de repressão e a forma como eram recebidas pelo povo que as consumia. Ainda que se tentasse controlar os meios de comunicação, o poder de penetração do rádio era inegável e, ao mesmo tempo, que a Radio Nacional transmitia algum poema de Bécquer, podia-se ouvir, em outras rádios, músicas como Tatuaje. Esta canção, que falava de um marinheiro e um amor perdido, foi interpretada por Concha Piquer e fez um grande sucesso entre os anos quarenta e cinqüenta. Como não faria sucesso uma canção com este tema numa época em que o espanhol havia perdido tantas coisas, como um amor, a dignidade, alegria? Temas semelhantes tinham grande alcance por expressarem o que não podia ser dito por um povo reprimido. Manuel Vázquez Montalbán faz um comentário sobre Tatuaje que pode explicar melhor esta situação:

''La cantaban con toda el alma aquellas mujeres de los años cuarenta. Aquellas pluriempleadas del hogar y de los turnos en trabajos fabriles afeminados. La cantaban para quien quisiera oírlas a través de sus ventanas de par en par. Era una canción de protesta no comercializada, su protesta contra la condición humana, contra su propia condición de Cármenes de España a la espera de maridos demasiado condenados por la Historia, contra una vida ordenada como una cola ante el colmado, cartilla de Abastos en mano y así uno y otro día, sin poder esperar al marino que llegó en un barco, al que muy bien hubieran podido encontrar en el puerto al anochecer.'' (VÁZQUEZ MONTALBÁN, Manuel, 1986, p. 43)

Ainda que a pretensão do governo fosse a de controle das massas, ele não pode controlá-las de maneira absoluta, pois a leitura que o povo teria das canções seria diferente da desejada. A música era uma válvula de escape para os problemas. Manuel Vázquez Montalban aborda essa questão em seu livro ''Crónica Sentimental de España'':

''La mitología del racionamiento y de las restricciones está presente de una manera obsesiva en los años cuarenta. La sentimentalidad colectiva se identifica con una serie de signos de exteriorización: las canciones, los mitos personales y anecdóticos, las modas, los gustos y la sabiduría convencional. Todos estos signos exteriores son cultura popular y están configurados por los medios de formación de la cultura de masas. En los años cuarenta, la radio, la enseñanza, los cantares callejeros y rurales, la prensa, la literatura de consumo se aprestaron a despolitizar la conciencia social. Lo consiguieron casi totalmente e introdujeron el reinado de la elipsis, tácticamente convenido, para expresar lo que no podía expresarse. También el temple popular era elíptico y, en la dificultad de llamar al pan pan y al vino vino, a veces hay que buscar la clave en un acento, en un tono, en un silencio entre dos palabras. '' (VÁZQUEZ MONTALBÁN, Manuel, 1986, p.35-36)

Em seu livro ''Cancionero General del franquismo'', Manuel Vázquez Montalbán fez um estudo, ou melhor, um registro das canções consumidas entre 1939 e 1954. Sua classificação serve, segundo ele, para mostrar como a cultura de massas era porta-voz das necessidades de expressão subcultural. Os temas em que agrupa as canções são: o erotismo, a religião, os paraísos terrestres, o irracionalismo, a juventude, a família, a sabedoria convencional, o ritmo como condicionante absoluto, heroísmo e machismo, tipologia feminina e a exaltação de Madri.

Foram catalogadas onze canções religiosas cujos títulos são: Don Pedro de Castilla; Mi escapulario; Plegaria guadalupana; Amor, amor, amor; Santa María; Su primera comunión; La novia; La canción del tamborilero; Canta con nosotros; Catedral de Winchester e finalmente El ángel de la guarda.

As canções aqui estudadas têm várias coisas em comum. Uma delas é a presença de algum costume ou tradição religiosa. Em Don Pedro de Castilla uma jovem busca o convento para manter sua honra, comportamento que coincide com o da época. Carmen Martín Gaite toca nesta questão em ''Usos amorosos de la postguerra española'':

''La que se metía monja lo hacía porque le daba la gana. Y además la gente no hablaba mal de ella, ni se burlaba, ni la compadecía. Los padres o el novio podían llorar porque la echaban de menos. Pero más bien se la admiraba.'' (MARTÍN GAITE, Carmen,1987,p.37)

A religião era assim a guardiã da castidade e o noivo passa a ser alguem abstrato.

Algumas canções exaltam santos como Plegaria guadalupana e Santa María, além deles, Deus é quase sempre mencionado. Talvez por isso mesmo Vázquez Montalbán tenha incluido Amor, amor, amor, que fala de um amor, que ainda parecendo profano pode muito bem ser entendido como amor a Deus. Este tipo de exaltação a Deus nos lembra a literatura mística e as poesias de Santa Teresa de Jesús e de San Juan de la Cruz, em que a divindade é tratada de forma apaixonada, quase humana. Num trecho do poema Cántico espiritual de San Juan de la Cruz, podemos observar o tratamento íntimo dispensado a Deus:

''[Canciones entre el alma y el Esposo]
[Esposa]
¿Adónde te escondiste,
Amado, y me dejaste con gemido?
Como el ciervo huiste,
Habiéndome herido,
Salí tras ti clamando, y eras ido.''
(PEDRAZA JIMÉNEZ, F. B., 1991, p.82)

Na canção Plegaria Guadalupana podemos identificar novamente este tratamento íntimo com relação à Virgem de Guadalupe: ''Patroncita mexicana-ah, / hoy traigo otra petición, / haz que mi patria esté salva-ah, / de la maligna ambición.'' (VÁZQUEZ MONTALBÁN, Manuel, 2000, p.257). Neste caso, a utilização de diminutivo e dos verbos em segunda pessoa mostram o grau de aproximação entre o intérprete da canção e a deidade.

Retomando a questão do poder da Igreja e de Franco, havia uma preocupação dos dois em restaurar a moral, os bons costumes, a família, o comportamento irrepreensível, principalmente da mulher. O próprio Papa afirmava que a Espanha havia sido escolhida por Deus para cumprir este papel:

''La nación elegida por Dios como principal instrumento de evangelización del nuevo mundo y baluarte inexpugnable de la fe católica acaba de dar a los precursores del ateísmo materialista de nuestro siglo la prueba más excelsa de que, por encima de todo, están los valores de la Religión y del espíritu.'' (PETSCHEN, Santiago,1977, p.13)

Por que não utilizar o rádio também como propagador de suas idéias? Uma canção como Su primera comunión é o retrato perfeito de divulgação de princípios religiosos e da família.

''Para un padre y una madre
no hay alegría mayor
que ver hacer a sus hijos
la primera comunión.''
(VÁZQUEZ MONTALBÁN, Manuel,2000,p.260)

Em um país onde havia ''penúria econômica'', secas rigorosas, fome, enfim, inúmeras dificuldades o rádio entrava como paliativo para os males. A música servia de evasão, trazia uma certa esperança e os ritmos dançantes a sensação de uma felicidade que na verdade não existia.

Uma sociedade de consumo começava a delinear-se incentivada pelas rádios que não só tocavam músicas com temas religiosos, mas outros que em contrapartida valorizavam o romance, a juventude, o erotismo. O cinema trazia outras realidades e atores como Clark Gable incorporaram-se aos sonhos das mocinhas reprimidas, mas que ostentavam desafiadoramente seus sapatos ''topolinos''.

Letras fáceis, de rápida memorização, de temas simples e que tratavam da sentimentalidade fizeram este tipo de música popular. Esta música fazia parte de uma subcultura que tinha como atrativo a rápida satisfação do prazer. O problema é que, como diz Vázquez Montalbán, esta subcultura ''es susceptible de toda clase de manipulaciones por parte del poder''. E ele ainda acrescenta que: ''Las huellas digitales de las manazas de la represión quedan sobre la cera blanda de los boleros, sobre el papel de bagazo de los tebeos supercontrolados, en los vodeviles más imbéciles o intrascedentes''. (VÁZQUEZ MONTALBÁN,Manuel, 2000, p.3)

Mesmo cientes do problema da manipulação das massas pelo governo franquista, não podemos deixar de constatar que as canções consumidas na ditadura foram o registro de uma época; que de certa maneira elas preencheram os silêncios da sociedade espanhola. Além de servirem de meio de evasão eram também transmissoras do pensamento do povo, mesmo que de maneira indireta. Citando novamente Vázquez Montalbán, ele diz que,

''Estamos en presencia de una filosofía de la vida cínica [...] Las canciones populares, porque las cantaba el pueblo, reflejaban unas creencias que, curiosamente, nada tenían que ver con la superestructura moral que circulaba como una nube inmensa sobre la geografía ibérica. '' (VÁZQUEZ MONTALBÁN, Manuel, 1986, p.41-42)

As canções religiosas tanto podiam servir ao governo como tentativa de moldar comportamentos, quanto ser interpretadas como uma linguagem metafórica para as verdades que não podiam ser ditas. Ao escutar La novia poderíamos muito bem pensar que o noivo ao qual se refere a canção seria Deus; em La canción del tambolirero, imaginaríamos que um salvador é esperado, alguém que acabe com os sofrimentos infringidos pela ditadura; em Canta con nosotros a interpretação poderia ser o de uma convocação a uma revolução contra o governo; El ángel de la guarda remeteria à questão da vigilância exercida pela ''Falange''; enfim, poderíamos tentar fazer inúmeras interpretações das canções, não só religiosas, mas das de outros temas, e notaríamos significados ambíguos ou mensagens subliminares.

O que importa aqui, como conclusão, é que, provavelmente no caso das canções o tiro tenha saido pela culatra e as intenções do governo franquista não tenham sido alcançadas. O poder engana-se ao pensar que pode manipular consciências e a grande força do povo está aí, mesmo que ele não a perceba.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALDECOA, Ignacio. Cuentos. Ed. De Josefina Rodríguez de Aldecoa. Madrid: Catedral, 14ª ed., 1991

BOTTI, Alfonso. Cielo y dinero. El nacionalcatolicismo en España (1881-1975). Madrid: Alianza Editorial, 1992

MARTÍN GAITE, Carmen. Usos amorosos de la postguerra española. Barcelona: Editorial Anagrama, 5ª ed., 1987.

PEDRAZA JIMÉNEZ, F. B.,RODRÍGUEZ CÁCERES, M. La literatura española en los textos: de la edad media al siglo XIX. Colección Orellana, Brasília: Embajada de España, 1991.

Pio XII, 16 de abril de 1939. Cit. Por Santiago Petschen: La Iglesia en la España de Franco, Sedmay, 1977.

SERER, R. Calvo. La Iglesia en la vida pública española desde 1936. Arbor, 1953.

VÁZQUEZ MONTALBÁN, Manuel. Crónica sentimental de España. España: Espasa Calpe, 1986.

________. Cancionero general del franquismo (1939-1975). Lumen, 1972.