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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002

 

A força criadora no 'episódio dos carneiros' em Cervantes e em Agostini

 

 

Sandra Regina Moreira

Centro Universitário FIEO

 

 

Em 1895, foi publicado pela primeira vez no Rio de Janeiro o jornal ilustrado Don Quixote (1895 - 1903) de Angelo Agostini. A publicação de Agostini comenta e satiriza diversos fatos cotidianos do Rio e do Brasil, utilizando como recurso de 'batalha' dois memoráveis personagens de Cervantes: Dom Quixote e Sancho Pança. A paródia é um dos elementos constitutivos do Don Quixote, apesar de não ser o único aspecto importante do jornal, já que o romance cervantino funciona como o meio que Agostini encontra para satirizar a situação sócio-política brasileira. Esse tom crítico é bastante evidente neste trabalho, dedicado ao estudo de um episódio cervantino parodiado por Agostini: o dos rebanhos (I, XVIII).

O encontro do cavaleiro com os dois rebanhos é um dos momentos que melhor revela toda a capacidade inventiva do cavaleiro, embriagado pelas leituras cavaleirescas. Apesar dos alertas de Sancho, Dom Quixote arremete contra os carneiros matando alguns animais; em contrapartida, acaba sendo atacado pelos pastores e o resultado de sua batalha é a obtenção do grandioso epíteto Caballero de la Triste Figura, sugerido pelo escudeiro no capítulo seguinte a partir da péssima feição de Dom Quixote.

 

1. Carneiros versus exércitos

- Señor, encomiendo al diablo hombre, ni gigante, ni caballero de cuantos vuestra merced dice parece por todo esto; a lo menos yo no los veo; quizá todo debe ser encantamento, como las fantasmas de anoche.
- ¿Cómo dices eso? – respondió don Quijote - ¿No oyes el relinchar de los caballos, el tocar de los clarines, el ruido de los atambores?
- No oigo otra cosa – respondió Sancho – sino muchos balidos de ovejas y carneros (I, XVIII, p. 232).

O capítulo XVIII da primeira parte começa com um diálogo entre Sancho e Dom Quixote: o escudeiro está bastante abatido, pois no capítulo anterior havia sido manteado na estalagem de Juan Palomeque, já que seu amo se recusara a pagar o que devia pela hospedagem. Os dois estão conversando sobre as últimas desventuras que viveram e Sancho começa a achar que a vida de escudeiro não é tão fácil como imaginara, já que ainda não haviam provado o gosto de uma importante vitória. É quando vêem surgir uma ''grande y espesa polvareda'' e o cavaleiro, cuja imaginação estava impregnada pelas leituras que fizera, acredita tratar-se de um exército; ao mesmo tempo, Sancho vê que se aproxima do outro lado outra ''polvareda''. Dom Quixote, então, crê que são dois exércitos inimigos, prestes a se enfrentarem.

A descrição que faz de ambos e sua convicção acabam por convencer Sancho de que se trata de uma luta entre o grande imperador Alifanfarón, da Taprobana, e Pentapolín del Arremangado Brazo, que, como cristão, não desejava entregar sua filha ao imperador de origem moura.

Cavaleiro e escudeiro vão ao alto de um monte, de onde podem observar quem mais participa da ''batalha''. Dom Quixote passa a elencar diversos nomes e títulos, alguns tirados dos livros que lera, outros inventados por ele. Decide, então, entrar na batalha contra o imperador mouro e é nesse momento que Sancho consegue distinguir as figuras entre a nuvem de pó e percebe que se tratam de carneiros e ovelhas, e não de exércitos. Seu amo, entretanto, não aceita a versão do escudeiro e parte em direção dos animais, cravando sua lança em todos os que alcança, o que desespera os pastores que acompanhavam os rebanhos. Estes começam a apedrejá-lo e quando o derrubam tratam de ir cada um para um lado, levando seus animais.

Sancho, que assistira a tudo do alto do monte, socorre seu amo, decidido a não mais acompanhá-lo logo que conseguisse a prometida ínsula. Para terminar a desventura de ambos, Dom Quixote pede a seu escudeiro que olhe como ficaram seus dentes e quando este o faz, o cavaleiro sente os incômodos efeitos do ''bálsamo'' que bebera; Sancho, repugnado, não consegue evitar a náusea que o toma e ambos terminam ''como de perlas''. Cansados, abatidos e famintos, cavaleiro e escudeiro encerram a ''aventura'' caminhando sem direção, esperando que a providência divina os auxilie de alguma forma.

Desde a famosa ''aventura'' dos moinhos de vento (I, VIII), cavaleiro e escudeiro não haviam enfrentado nenhuma outra situação tão cavaleiresca quanto esta, pois ambos voltam a caminhar a esmo pelos campos da Mancha, sujeitos ao imprevisto. E nesta ''aventura'' particularmente mais, já que primeiro enxergam apenas uma grande ''polvareda'', o que libera a imaginação de Dom Quixote. Além disso, a forma como começa a aventura permite que a curiosa loucura do cavaleiro manchego aflore com uma força criadora intensa: já que a origem da perturbação do cavaleiro está em sua crença de que era verdade tudo o que lia nos livros de cavalaria, ele procurará sempre uma outra explicação para a realidade que o cerca, pautada em sua experiência literária. Este é, provavelmente, um ponto essencial dentro da composição do personagem, pois Dom Quixote não alucina ou se guia pelo mundo dos sentidos, mas interpreta o mundo a partir das regras intrínsecas aos livros de cavalaria. Assim, sua maneira de entender a realidade que o cerca não é mais que ''un peculiar modo de rememoración literaria'', como diz Williamson1. Dessa forma, sempre que se encontrar diante de algo que lembre uma situação cavaleiresca, Dom Quixote irá agir segundo as convenções da cavalaria; se, entretanto, não houver nada que contenha traços daquela tradição, verá o mundo e a realidade como qualquer um a vê:

[...] pensó, sin duda alguna, que eran dos ejércitos que venían a embestirse y a encontrarse en mitad de aquella espaciosa llanura; porque tenía a todas horas y momentos llena la fantasía de aquellas batallas, encantamentos, sucesos, desatinos, amores, desafíos, que en los libros de caballerías se cuentan, y todo cuanto hablaba, pensaba o hacía era encaminado a cosas semejantes (I, XVIII, p. 228).

É, portanto, a partir da crença na verdade dos livros de cavalaria e das possibilidades que a nuvem de pó oferece que Dom Quixote vai imprimindo nomes e epítetos, cores e formatos à cena, alguns tirados de histórias que leu, outros inventados pelo cavaleiro. A forma como o faz é tão intensa que convence seu escudeiro de que realmente irá ocorrer uma batalha, ainda que este não consiga distinguir no meio da ''grande polvareda'' os cavaleiros que seu amo descreve: ''Estaba Sancho Panza colgado de sus palabras, sin hablar ninguna, y, de cuando en cuando, volvía la cabeza a ver si veía los caballeros y gigantes que su amo nombraba [...]'' (p. 232).

O elemento visual, no caso a nuvem de pó, é um fator importante para a imaginação do cavaleiro. No famoso episódio dos batanes (I, XX), por exemplo, um aspecto curioso é que toda a ''aventura'' se desenrola numa total escuridão e igualmente oferece inúmeras possibilidades cavaleirescas; entretanto, o medo, aliado à escuridão e aos temíveis estrondos, freiam a imaginação de Dom Quixote, que não consegue elaborar nenhuma possibilidade e se deixa levar pelas histórias e pela astúcia de Sancho.

Outra característica fundamental da loucura de Dom Quixote que se reforça nesta aventura é sua ''cegueira'' à realidade quando se convence de que esta encobre outro significado mais profundo. Diante do seu fracasso sempre há uma justificativa através da presença dos ''encantadores'', seres maravilhosos que o invejam e detestam e fazem com que sua ''realidade'' se transforme na ''realidade'' de Sancho para que não alcance a fama das grandes vitórias:

- No le decía yo, señor don Quijote, que se volviese, que los que iba a acometer no eran ejércitos, sino manadas de carneros?
- Como eso puede desparecer y contrahacer aquel ladrón del sabio mi enemigo. Sábete, Sancho, que es muy fácil cosa a los tales hacernos parecer lo que quieren, y este maligno que me persigue, envidioso de la gloria que vio que yo había de alcanzar desta batalla, ha vuelto los escuadrones de enemigos en manadas de ovejas (I, XVIII, p. 233-234).

E de nada adiantam os protestos ou alertas do escudeiro, que são tomados por Dom Quixote como ignorância dos assuntos cavaleirescos ou simplesmente como medo do provável perigo envolvido nas ''batalhas'': ''el miedo que tienes [...] te hace, Sancho, que ni veas ni oyas a derecho'' (p. 232). No famoso episódio dos moinhos de vento acontece exatamente a mesma coisa: Dom Quixote crê que os moinhos são gigantes e ignora os apelos de seu escudeiro, tomando-os como o medo que este sente diante do ''perigo''; após o mal resultado e diante da reação de Sancho, afirma que o maligno Frestón – o mesmo ''encantador'' que ''desaparecera'' com sua biblioteca - havia transformado os gigantes em moinhos para tirar a glória da vitória que certamente alcançaria2. Este é um dos traços mais conhecidos e discutidos com relação à composição do cavaleiro. Dom Quixote, envolvido por sua imaginação, não consegue ver a realidade como Sancho, que, em contrapartida, se guia pela realidade empírica que o rodeia. Da mesma forma, como diante do famoso e ambíguo ''baciyelmo'', temos no diálogo entre cavaleiro e escudeiro a questão do perspectivismo3: a realidade ganha diversos sentidos, dependendo da forma como é vista. A grande comicidade do texto, aliás, provém do jogo entre realidade e fantasia, já que é por esse viés que entram os conflitos entre cavaleiro e escudeiro e o tema da paródia dos livros de cavalaria.

Outra questão fundamental dentro deste episódio é a forma dura como a ''aventura'' termina para Dom Quixote: este é apedrejado pelos pastores e tem, além de duas costelas feridas, a perda de diversos dentes, o que piora seu aspecto e lhe rende o epíteto Caballero de la Triste Figura, atribuído por Sancho após a vitória de Dom Quixote sobre os ''encamisados'' (I, XIX). Dom Quixote se compraz disso, pois era comum nos livros de cavalarias que os grandes cavaleiros ganhassem algum epíteto após conquistar importantes vitórias, como Amadís de Grecia, chamado também de Caballero de la Ardiente Espada. No caso de Dom Quixote isso parecia mostrar que seu destino de cavaleiro estava se cumprindo. Entretanto, o título é irônico, pois como o próprio Sancho deixa evidente, faz referência à péssima aparência de seu amo, que sem os dentes ficara ainda pior. Além disso, a vitória sobre os ''encamisados'' não é um grande feito.

No fim do episódio dos carneiros, a situação do cavaleiro e do escudeiro piora ainda mais e do cômico chega aos limites do grotesco: o bálsamo que o cavaleiro havia fabricado e bebera durante a ''batalha'' com os carneiros faz o único efeito possível e este vomita sobre Sancho, que em seguida vomita sobre o amo. Se o início da ''aventura'' fora marcada pela imaginação criativa do cavaleiro, seu fim se pauta por uma dura realidade, cuja crueldade marca muitos dos passos da dupla manchega e se acentua na segunda parte do Quixote, como na aventura ''cerdosa'' (II, LXVIII). Nesta, a violência contra a dupla é desmedida e, inclusive, gratuita, pois ambos são literalmente atropelados por centenas de porcos que surgem de repente. A cena é tão rápida que os dois apenas escutam o tropel que se aproxima e não têm tempo de reagir. Diante do resultado, Dom Quixote se conforma, pois crê que é uma punição por sua derrota diante do falso Caballero de la Blanca Luna, alguns capítulos antes (LXIV). Nessa aventura, ao contrário do que acontecera no encontro com os carneiros, não há nenhum traço da força inventiva da imaginação do cavaleiro, aqui torturado pelo ''encantamento'' de Dulcinéia (II, X) e por sua recente derrota.

O episódio dos carneiros, em suma, traz para o leitor um dos momentos mais intensos da capacidade criativa de Dom Quixote, que age a partir da experiência obtida pelas leituras dos livros de cavalaria. Para tanto, necessita apenas de algum elemento que lhe permita reconhecer possibilidades cavaleirescas: nesta aventura, é a grande nuvem de pó que o faz imaginar exércitos e, inclusive, imprimir, nomes e cores à cena que não vê. A força de sua descrição é tanta que, por um breve momento, convence até mesmo seu escudeiro, que só percebe a realidade ao distinguir os balidos dos animais.

 

2. Carneiros versus conspiradores

Sancho Pança – Não ha duvida, o patrão está doido varrido! Não ver que os taes conspiradores não passam de uns timidos carneiros?!
(Don Quixote, 11/04/1896).

Agostini faz uma paródia desse episódio no Don Quixote através de uma ilustração central publicada no número 58 (11/04/1896): nela podemos ver o cavaleiro com a lança empunhada no meio do rebanho, que julgava ser de conspiradores contra a paz e o progresso brasileiros. Sancho, num canto, observa parado a cena e julga que seu patrão está ''doido varrido'' por não perceber que se tratam de carneiros e não dos tais conspiradores. No entanto, o leitor pode visualizar diversos rostos de importantes políticos e militares nos animais. Nesta cena, o que é verdade e o que é ilusão?

Talvez o primeiro ponto que mereça destaque é a referência usada pelo ilustrador para criar a imagem apresentada: Agostini parte não apenas da aventura em si, mas também da ilustração feita por Doré para a mesma. Comparando-se as imagens, podemos perceber sua semelhança: Sancho está observando as loucuras de seu patrão, enquanto este ataca os animais, envolvido por uma grande nuvem de pó. Temos, portanto, um duplo referencial para a criação da imagem.

Por outro lado, a paródia ao texto de Cervantes e à ilustração de Doré serve como instrumento para a crítica de Agostini ao exército, que publicara, no dia 21 de março de 1896, uma moção política responsável por um mal-estar entre a população e alvo de críticas mordazes por parte do ilustrador. Agostini viu nessa moção uma ameaça ao poder legalmente constituído, e dedicou a ela os editoriais dos números 56 (28/03/1896) e 57 (04/04/1896), diversas colunas nesses e em outros números e algumas ilustrações, entre as quais esta que nos interessa diretamente, cujo título é ''Effeitos da famosa moção''. Transcrevemos abaixo a moção militar, que nos dará melhores elementos para a análise da ilustração.

Os officiaes de terra e mar, reformados e honorarios, profundamente sensibilisados com os perigos e ameaças de que é objecto a propria existencia da Republica, cujas instituições pretendem mais uma vez grupos facciosos subverter, resolveram em sessão do Club Militar firmar o presente pacto de solidariedade para a resistencia a todo o transe contra qualquer tentativa de mudança do regimen de governo, que tem creado a prosperidade e a grandeza dos Estados da confederação brasileira.
Declaram que essa resistencia é sem limites, conscios de que é preciso livrar de uma vez a nossa patria de tão audazes perturbações, como as que têm provocado contra a sua paz e socego os trefegos ambiciosos, que teimam em felicitar-nos novamente com uma fórma de governo cujo passado foi apenas causa da pobreza e retrogradação do Brasil.
Como ultima expressão de seus sentimentos, as corporações armadas declaram que os destinos da Republica acham-se identificados com a propria honra militar.
Esta attitude das classes armadas será levada ao conhecimento de todos os camaradas das differentes guarnições e districtos, afim de chamal-os a cooperar na obra da salvação das instituições, lembrando-lhes apenas que a orientação da conducta dos militares é: - Tudo pela Patria contra os máos cidadãos que procuram cevar suas torpes ambições na ruina da liberdade (Don Quixote, 28/03/1896).

Nesse mesmo editorial, intitulado ''O espantalho sebastianista'', Agostini, além de publicar integralmente o texto da moção, expõe sua opinião sobre a atitude do exército e sobre a ameaça monarquista que estaria rondando o país. Diz ele que é natural que os republicanos estivessem apreensivos, pois lhe parecia estranho e fora de hora que o exército fizesse demonstrações públicas de extremo nacionalismo que mais pareciam ameaças do que avisos, principalmente porque usavam como pretexto um inimigo cuja força lhe parecia ridícula: a restauração da monarquia. Se a ameaça restauradora era incipiente, por que o exército faria pública tal moção? Agostini crê que se tratava de uma tentativa de pressionar o governo, já que não eram raras as hostilidades de determinados segmentos à presidência de Prudente de Moraes. Além disso, segundo ele, se houvesse realmente alguma ameaça, esta teria sido exposta no final da Revolução Federalista, e o próprio presidente teria tomado alguma atitude com relação aos tais conspiradores. A ameaça monarquista não passaria, dessa forma, de ''pura e simplesmente um espantalho''. Com relação às classes militares, estas deveriam, na opinião do ilustrador, ficar dentro da Constituição e professar os princípios legítimos republicanos, além de defender a nação, conforme era sua obrigação, sem ostentar publicamente programas políticos ou veladas ameaças ao poder legalmente constituído. Portanto, defender a República, segundo Agostini, não seria mais do que ''o seu dever e têm por missão nobilissima cumpril-o na hora solemne do perigo, jamais dictal-o aos poderes constituidos da nação, que tambem sabem ser fieis ás leis da honra. E tudo o que não fôr isto, ainda com as intenções mais patrioticas, será incorrecto, prestar-se-ha a interpretações alarmantes e constituirá um perigo nacional'' (Don Quixote, 28/03/1896, p. 2).

É interessante notar que não foram todos os periódicos que viram essa moção como uma ameaça velada das forças militares: a Revista Illustrada, por exemplo, que por tanto tempo estivera sob a direção de Agostini (1876-1888), depois que passou a ser dirigida por Julio Verim mudou bastante seu posicionamento político. No número 711, de março de 1896, a ilustração da capa faz uma homenagem ao exército e à sua atitude, vista como de heróica defesa nacional.

Exagerado ou não, o que nos importa nesta discussão é que em sua ilustração Agostini imprimiu uma segunda leitura da ''aventura'', pois apesar de Sancho achar que seu ''patrão'' enlouqueceu de vez, podemos ver em alguns dos carneiros os rostos de políticos daquele período. Da esquerda para a direita, temos as caricaturas de alguns dos Ministros do governo de Prudente de Moraes: Ministro da Viação e Indústria, Ministro da Marinha, Ministro do Interior e Justiça, Ministro da Guerra, Ministro da Fazenda e o Ministro das Relações Exteriores. Todos são alvos de crítica em outras ilustrações de Agostini, como a do número 57 (04/04/1896), na qual o caricaturista não os poupa de uma sátira mordaz, mostrando-os como uma carga a mais que o presidente precisa suportar.

Na aventura cervantina, o ponto central é o jogo entre aparência e essência, realidade e fantasia. É a partir desses opostos que a ação passa, como vimos, da fantasia criadora de Dom Quixote à dura realidade. Na paródia criada por Agostini, o que é realidade e o que é fantasia? O cavaleiro, ao contrário do herói manchego, não cria com palavras uma inusitada aventura romanesca, capaz de fazer com que Sancho fique ''colgado de sus palabras''; os conspiradores sebastianistas não são fruto de sua exaltada imaginação. Sua luta é, dessa forma, contra os criadores do mal-estar popular, contra os lobos disfarçados em peles de cordeiro e dispostos a enfraquecer o governo legalmente constituído, seja pela pressão militar, seja por sua incompetência e corrupção. Portanto, a crítica aos ministros, demais políticos e aos militares é clara: estes, em lugar de trabalhar pela prosperidade da nação, trabalham em benefício próprio, deixando com que a corrupção e a desmoralização tome conta do poder público. A ameaça, de fato, não vem de monarquistas conspiradores com manias de restauração: o que se deve temer é a ameaça velada do exército, que sob o comando do Ministro da Guerra publica uma moção capaz de gerar inquietação em todos os setores da sociedade, particularmente num momento como aquele, em que a economia passava por graves dificuldades e qualquer boato poderia gerar grandes conflitos. Confirma-se a ironia do ilustrador: os membros do governo, em lugar de ajudar, atrapalham.

Se é ilusão a existência da ameaça de conspiradores sebastianistas, é verdade que há determinadas pessoas trabalhando contra o progresso do país. Se os conspiradores são apenas os ''timidos carneiros'' representados no número 58 (11/04/1896), talvez seja questão de ver qual é a realidade em que devemos crer: se a de Don Quixote – que vê lobos escondidos entre os carneiros -, ou a de Sancho, que enxerga apenas animais inofensivos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Edições do Quixote consultadas:

RICO, Francisco. Barcelona: Ed. Instituto Cervantes, 1998. 2 v.

ALLEN, John Jay. Madrid: Cátedra, 1994. 2 v.

Periódicos consultados:

Don Quixote, Rio de Janeiro, 1895 a 1903.

Revista Illustrada, Rio de Janeiro, 1880 a 1896.

 

 

1 CERVANTES, M. de. Don Quijote de la Mancha. Ed. del Instituto Cervantes. Dirigida por Francisco Rico. Bercelona: [s.n.], 1998. Volumen complemantario, p. 55.
2 ''- ¡Válame Dios! - dijo Sancho -. ¿ No le dije yo a vuestra merced que mirase bien lo que hacía, que no eran sino molinos de viento, y no lo podía ignorar sino quien llevase otros tales en la cabeza?
- Calla, amigo Sancho - respondió don Quijote -, que las cosas de la guerra, más que otras, están sujetas a continua mudanza; cuanto más, que yo pienso, y es así verdad, que aquel sabio Frestón que me robó el aposento y los libros ha vuelto estos gigantes en molinos por quitarme la gloria de su vencimiento: tal es la enemistad que me tiene [...]'' (I, VIII, p. 146).
3 Cf. HAUSER, Arnold, Maneirismo. São Paulo: Ed. Perspetiva, 1993.

 

 

EFFEITOS DA FAMOSA MOÇÃO

Sancho Pança – Não ha duvida, o patrão está doido varrido! Não ver que os taes conspiradores não passam de uns timidos carneiros?! Don Quixote, 11/04/1896.

 

[DOM QUIXOTE ENTRE OS CARNEIROS]

Dizendo isto, se intrometeu pelo tropel das ovelhas.
Doré, 1863.