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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002
Os signos da representação teatral: Calderón de La Barca
Sônia Regina Nogueira
Universidade Estadual de Londrina
No século XVI, o gênero dramático, na Espanha, brota sob a proteção eclesiástica, numa época de crise geral, que se caracterizou pelo clima de austeridade e repressão imposto pela igreja católica, em tempo da Contra-Reforma. Sendo assim, vemos que o homem, em face da situação pungente em que vivia, tenta conciliar a glória e o valor humano, despertado pelo Renascimento, com as idéias de submissão perante Deus. As preocupações, geradas por essa conjuntura, influenciaram as formas artísticas, produzindo a peculiar arte barroca.
Já final do século XVI, com a construção de lugares específicos para a representação, a dramaturgia passa a gerar recursos econômicos. Em conseqüência disso, ocorre uma abertura maior com relação ao público, tanto que, no século XVII, os espetáculos se estendem à massa e o teatro é apreciado por muitos, destacando-se entre as outras artes. O escritor, diante dessa abertura, modifica sua atividade criativa, buscando conciliar a preferência do público com as exigências da classe dominante. O Estado também exerceu grande poder, ao lado da Igreja, e esta propagava a idéia do fogo eterno para todos os que não seguissem seus preceitos. A Igreja desempenhava o papel de mediadora entre o divino e o humano; era essencial impor suas leis, coibir atitudes consideradas desregradas e libertinas, fortalecendo, ao mesmo tempo, dessa forma, seu poder. Aliás, historicamente, a Igreja também saía de um grande período de libertinagem. A Contra-Reforma estava imbuída da missão de melhorar os costumes eclesiásticos e religiosos, de forma a elevar o nível da disciplina moral. Segundo José Luis Sirena, a literatura dramática ''no pone jamás en duda los fundamentos del orden social [...] se busca que el espectador llegue a creer en la validez de su sistema social de valores y encuentre una justificación digna de su manera de vivir.'' (1982, p.91)
As representações que mais se destacaram foram as obras de Lope de Vega, que define, com grande propriedade, as fórmulas do teatro nacional espanhol. No entanto, outros dramaturgos ocuparam um lugar fundamental na história do teatro do Século de Ouro, entre eles, Calderón de La Barca. Como afirma Díaz-Plaja suas obras são intensas e a presença de Deus em todos os atos da vida humana é a característica de seu teatro. A vida terrena ''no es más que una ''representación'' en la que Dios asigna el ''papel'' que ha de hacer, en este mundo, cada humano.'' (1958, p. 247)
O teatro de Calderón de La Barca marca duas formas bem distintas de estilo, uma que continua e aperfeiçoa o sentido realista do drama de Lope de Vega, com uma técnica concisa e perfeita, a outra, considerada a mais original, inclui as comédias religiosas, filosóficas e os autos.
Calderón de La Barca foi o grande dramaturgo religioso e o auto sacramental é o gênero que melhor sintetizava a doutrina católica. Como as festas de Corpus Christi eram fundamentais para a confirmação da fé cristã, a igreja se empenhava para manter seus dogmas como forma de negação à Reforma. Os autos comemoravam justamente a eucaristia e eram apresentados no dia de Corpus Christi.
Su apoteosis triunfal religiosa halla el lugar adecuado en la pompa solemne de los autos, mientras que su formación, hondamente escolástica, le da el contenido más preciso, más sabio y matizado que el género y los asuntos requerían.(...) Calderón recoge una herencia teológica, como la tradición de un teatro escolar, para convertirla en animada y suntuosa poesía dramática en los autos. (CALDERÓN DE LA BARCA, 1958, p. XXIV)
São nos autos que encontramos a lei do contraste próprio do Barroco. Seus personagens são antagônicos e se percebe uma oposição entre o plano sério da ação e um certo aspecto de comicidade, como verificaremos no auto sacramental El gran teatro del mundo. Sua divisão em partes é perfeita e apresenta cinco momentos que se superpõem.
É conveniente, portanto, ressaltar que toda reflexão sobre o teatro esbarra na problemática da representação. A relação produção literária e representação concreta nos coloca diante de muitas contradições e confusões. O que realmente pertence ao texto e o que pertence à representação? Será que o que é específico da arte teatral se concretiza na representação?
Convém esclarecer que, em uma análise, não podemos ficar limitados a pensar no teatro somente como representação, pois o texto tem sua existência, está no interior da representação sob forma de voz. A diferença reside no modo de como efetuar uma leitura de um texto teatral, pois no seu interior encontramos os elementos textuais da representação. Diante de tal questão, resta-nos indagar sobre esses elementos diferenciadores e caracterizadores do texto teatral.
O texto literário dramático apresenta peculiaridades próprias, decisivas, onde texto e representação marcam suas diferenças, entre as quais destacaremos o diálogo e as didascálias. Os diálogos podem constituir-se como signos verbais e, ao mesmo tempo, como signos não verbais, quando se refere ao espaço cênico. Já, com as didascálias, temos a indicação de como caracterizar um personagem, é a voz do autor que pode ser implícita ou explícita. As didáscalias ''...designan el contexto de la comunicación, determinan, pues, una pragmática, es decir, las condiciones concretas del uso de la palabra. En resumen, las didascalias textuales pueden preparar la práctica de la representación.'' (UBERSFELD, 1993, p. 17) Elas fazem parte contextual do texto e podem estar reduzidas a um espaço mínimo.
O jogo diálogos/didascálias, como afirma Lygia Rodrigues V. Peres, permite um percurso para a apreensão dos diversos fios que compõem a tessitura dramática, cabendo ao leitor/espectador desvelar e revelar os condutores da expressão de uma época, de uma sociedade. (1993, p. 69)
Outra característica relevante é que a matéria de expressão do texto teatral é lingüística enquanto que a da representação pode ser lingüística e não lingüística. Assim, a mensagem verbal que está no interior do sistema da representação é a voz. Ela comporta duas espécies de signos: os signos lingüísticos, componentes da mensagem lingüística e os signos acústicos(voz, expressão, ritmo, tom). A eles se unem outros códigos que seriam os signos não verbais (códigos visuais, musicais, etc).
La representación teatral constituye un conjunto (o sistema) de signos de naturaleza diversa que pone de manifiesto un proceso de comunicación en el que concurren una serie compleja de emisores, una serie de mensajes y un receptor múltiple presente en un mismo lugar. (UBERSFELD, 1993, p. 20)
O texto de teatro, para existir, precisa de um espaço físico para a concretização da representação. As descrições funcionais direcionadas à prática da representação, geralmente estão presentes nas didascálias. É ela que nos indicará o lugar, os nomes dos personagens e como deverão ocupar-se no espaço teatral e as indicações de gestos e movimentos que permite imaginar o modo da ocupação do espaço. Às vezes, a noção de espaço pode estar presente também nos diálogos.
É interessante observar que na leitura do texto teatral temos que considerar a existência de dois espaços. Segundo Anne Ubersfeld,
se trata de un lugar doble: la dicotomia escenario-sala, poco perceptible textualmente es capital en la relación texto-representación. El lugar teatral es lo que pone frente a frente a actores y espectadores en una relación que depende estrechamente de la forma de la sala y de la forma de la sociedad. (1993, p. 111)
O espaço cênico representa uma simbologia dos espaços socio-culturais. Assim, diríamos que o signo escênico, ou seja o conjunto de signos espacializados, possui uma natureza icônica, não arbitrária porque mantém uma relação de semelhança com aquilo que quer representar.
Este espaço teatral sempre estará ocupado por uma série de elementos que Anne Ubersfelfd nomeou como objeto. O objeto pode ser o corpo dos personagens, os elementos de decoração e os acessórios e são apresentados nas didascálias ou nos diálogos.
O texto teatral nos apresenta também dois tempos distintos, o da representação em si e o da ação representada, mas a sua determinação não é muito clara nem no texto nem na representação. Isso ocorre porque no texto sua indicação é vaga e na representação, elementos tão importantes como o ritmo e as pausas são difíceis de serem percebidos. Nas didascálias e no discurso dos personagens encontraremos indicações do tempo e a progressão da ação.
Passaremos, neste momento, a destacar do auto El gran teatro del mundo alguns signos que pertencem à representação teatral. Os personagens passam pelo processo de construção que faz parte da própria representação teatral: determinação e distribuição dos papéis e do vestuário, para depois passar à ação do ato de representar. Assim, visualizamos o comportamento de cada um diante do papel representado e o resultado final de acordo com as ações praticadas. Observa-se, portanto, que o teatro se realiza dentro do teatro, a representação dentro da representação. ''La vida es una comedia; el mundo, un teatro; los hombres representantes; Dios, el autor; a Él le toca repartir los papeles, y a los hombres representarlos bien.'' Este pensamento de Quevedo sintetiza muito bem o auto El gran teatro del mundo, pois oferece o tema da vida humana como uma comédia, da qual só serão valorizadas as boas obras, garantindo a verdadeira existência depois da morte.
No primeiro momento do auto El gran teatro del mundo, Deus, o autor, mantém um diálogo com o Mundo e determina tudo o que se realizará. Os signos da representação estão presentes na didascália inicial com a apresentação dos personagens e a entrada do Autor no palco:''Sale el Autor con manto de estrellas y potencias en el sombrero'' (CALDERÓN DE LA BARCA, 1958, p.203)
''Manto de estrellas y potencias'' constitui-se em um signo celestial e caracterizador do Autor que cria tudo, mas que também é personagem. É o teatro dentro do teatro. Na sua réplica, aparece uma didascália implícita quando chama ao Mundo : ''y por llamarte de una vez, tú el Mundo.'' (ibid., 203)
Com as réplicas do Autor, detectamos através de signos verbais e não verbais que sua intenção é de fazer uma festa, determinando os papéis ''... yo el Autor, en un instante / tú el teatro y el hombre el recitante.'' (ibid., p.204) Esse ''tú'' se refere ao Mundo, um personagem, que, ao mesmo tempo, exercerá a função de diretor do espetáculo, cumprindo o seu papel de acordo com as ordens do Autor.
como parte obedencial,
que solamente ejecuto
lo que ordenas, que aunque es mía
la obra el milagro es tuyo'' (idem)
Na réplica, a seguir, do Mundo, temos o signo espacial ''dos puertas'' que funcionará como entrada e saída dos personagens, e os signos verbais e não verbais ''la cuna'', que metaforicamente se referem ao nascimento, e ''el sepulcro'', que simboliza a morte: ''ya previno mi discurso / dos puertas: la una es la cuna / y la otra es el sepulcro'' (ibid., p.206)
No final desse primeiro momento temos na réplica do Mundo uma didascália implícita, pois anuncia a entrada dos personagens.
¡ venid, mortales, venid,
a adornaros cada uno
para que representéis
en el teatro del mundo! (ibid., p.207)
No segundo momento, o Autor começa a distribuição dos papéis, primeiramente observamos isso através de uma didascália ''Da su papel a cada uno'' (idem), e na seqüência, com os diálogos, apresenta as características de cada personagem.
Rey - Honores gano.
[ ...]
Autor - Haz, tú, al rico, al poderoso. (idem)
[ ... ]
Autor - Tú has de hacer al labrador.
Lab. - ¿Es un oficio o beneficio?
Autor - Es un trabajoso oficio.
[ ... ]
Autor - Tú la discreción harás.
[ ... ]
Haz tú al mísero, al mendigo.(ibid., p.208)
Depois, cada personagem em sua réplica vai pedindo o que lhe convém, de acordo com o papel a desempenhar na representação ao Mundo. Eles têm consciência dessa representação: ''Enséñale el papel, y toma la púrpura y corona , y vase.'' (ibid., p.209) Através dessa didascália explícita, o rei recebe púrpura e coroa, símbolos do poder e riqueza.
Hermosura recebe a beleza e as cores das flores, símbolos da vaidade feminina. Essa informação está presente no diálogo com o Mundo: ''Her. – Pródiga estoy de colores / Servidme de alfombras, flores; / sed cristales, mis espejos.'' (idem)
O rico recebe tesouros, símbolo da riqueza: ''(Dale joyas).''(idem)
Discreção ganha a oração e o jejum, símbolos da religiosidade: ''Mundo - Discreción tan religiosa / tome ayuno y oración.'' (ibid., p.210)
Ao lavrador é dada uma enxada: ''(Dale un azadón.)''(idem)
O pobre não recebe nada e pede ''Solo remiendos te pido''.(idem) Sua pobreza é tão grande que o Mundo o deixa sem roupas: ''Desnúdale.'' (idem)
Todos os objetos que permitem uma identificação com alguma característica dos personagens estão presentes no diálogo que se mantém com o mundo.
O terceiro momento é o da representação da comédia da vida. O Autor observa o desenvolver da ação. O Mundo através de uma didascália implícita anuncia o começo da representação: ''(....) ¡ Abrase el centro / de la tierra, pues que dentro / della la escena ha de ser!'' (ibid., p. 210-211)
Na didascália que segue, há vários signos espaciais descrevendo o ambiente e um signo sonoro: ''Con música se abren a un tiempo dos globos: en el uno estará un trono de gloria, y en él el Autor sentado; en el otro ha de haber representación con dos puertas: en la una pintada una cuna y en la otra un ataúd.'' (ibid., p.211)
Todos entram pela porta do berço, que simboliza o nascimento: ''Salen la Hermosura y la Discreción por la puerta de la cuna.'' (idem)
Nas réplicas dos personagens, sempre há a indagação de como agir ou proceder com os bens recebidos e eles são lembrados do motivo de estarem ali representando: ''Obrar bien que Dios es Dios.'' (ibid., p.212) Tal afirmação é constante na obra, como um aviso, uma orientação a todos os personagens que querem a salvação depois da morte.
A seguir o pobre pede ajuda a todos e só recebe um não de cada um, só Discreción que representa a religião católica, lhe oferece pão, símbolo da eucaristia:
Pobre – Limosna de pan, señora,
Era fuerza hallarla en vos,
porque el pan que nos sustenta
ha de dar la Religión. (ibid, p.214)
Depois se ouve uma voz que é anunciada através de uma didascália, representando a morte e cobrando de todos as boas ações, praticadas ou não: ''Canta una voz triste dentro, a la parte que está la puerta del ataúd.'' (ibid., p.215)
No quarto momento, o Mundo faz o papel da morte que vem tirar, de todos, o que receberam. Acaba a comédia da vida.
No quinto momento, os personagens aparecem diante do Autor para saber se conseguiram desenvolver bem seu papel na representação da vida. Aquele que soube usar bem seu livre-arbítrio será recompensado com a participação na ceia da Eucaristia.
Através de uma didascália explícita, temos os signos sonoros ''música'' e objetos presentes no cenário ''cálice e hóstia'' que simbolizam a ceia eucarística: ''Con música se descubre otra vez el globo celeste, y en él una mesa con cáliz y hostia, y el Autor sentado a ella.'' (ibid., p.221)
O texto de Calderón é tão rico em elementos que pertencem à representação que, aqui, nos limitamos a apontar só alguns. Outra observação interessante é, com relação ao léxico selecionado pelo autor, que aqueles mais atraentes como a beleza, a grandeza e o poder aparecem como algo efêmero, passageiro e falso, enquanto que os menos atrativos, como desengano e a penitência aparecem como os que garantem a salvação.
Com relação ao léxico, notamos também um número muito grande de palavras que pertencem ao mundo teatral: comédia, representação, farsa, papel, Autor, vestuário, etc. Isto evidencia o caráter de alegoria da obra: comedia = vida, representar = viver.
Evidenciou-se, portanto, que os elementos da representação estão presentes e fazem parte do texto teatral. Não podemos desprezá-los em uma análise e, principalmente para um diretor teatral é de suma importância destacá-los para uma montagem. O texto teatral constitui-se, pois em um processo de interação entre texto e representação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CALDERÓN DE LA BARCA. Autos sacramentales. Madrid: Espasa-Calpe, 1958 (Clasicos Castellanos).
DÍAZ-PLAJA, G. Historia de la Literatura Española- siglos XII – XX. Buenos Aires: Ciordia, 1958.
KOWZAN, T. El signo y el teatro. Madrid: Iberia, 1997.
PERES, L.R.V. ''A Cenografia e o Maravilhoso no Teatro de Calderón de La Barca'' In: Anuário brasileño de estudios hispánicos. Brasilia, DF: Consejería de Educación de la Embajada de España, 1993.
SIRERA, J. L. El teatro en el siglo XVII: ciclo de Calderón. Madrid: Playor, 1982.
UBERSFELD, A. Semiótica teatral. Murcia, Catedra, 1993.