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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Out. 2002

 

O gótico e a picaresca se entrecruzam em cena cinematográfica do Auto da Compadecida de Ariano Suassuna

 

 

Suely Reis Pinheiro

Universidade Federal Fluminense

 

 

O paraibano Ariano Suassuna é um dos maiores representantes da forte e pura raiz popular da Arte e da Literatura nordestinas. Traz ele, em sua bagagem literária, histórias cheias de brasilidade com os folhetos e os repentes do Romanceiro.

Seguindo seu próprio arbítrio, o autor classifica seus tipos heróicos pertencentes aos ciclos cômico, satírico e picaresco, cujos personagens são variantes do pícaro ibérico de origem popular, dos graciosos do teatro de Calderón de la Barca e de Lope de Vega, do Sancho Panza e do Don Quijote. Tipos que se entrelaçam a outros da Literatura de Cordel, do Bumba-meu-boi, do Mamulengo, da oralidade, dos desafios dos Cantadores e dos autos populares religiosos publicados em folhetos no Nordeste.

Foi, portanto, a partir dessa raiz popular, que em 1955, Ariano Suassuna transpôs para o teatro uma obra teatral que recolhe e aglutina tradições espanholas e portuguesas, com raízes gilvicentinas, cervantinas e picarescas, o Auto da Compadecida. Originado do O Castigo de Soberba, um auto popular nordestino, com forte história de origem mora, com as raízes fincadas nesse mundo mítico mediterrâneo que é tanto peninsular como árabe-negro e, portanto, brasileiro e nordestino (SUASSUNA, 1973, p.163).

A aproximação de Auto da Compadecida com a picaresca é evidente, quando se observa a existência de personagens populares em seu papel anedótico pela linguagem, pela simplicidade, pela ingenuidade, pela astúcia e a fraude.

Ao contar a história de João Grilo e seu companheiro de trapaças e espertezas, Chicó, cheia de aventuras, para sobreviver à fome e à pobreza, Ariano Suassuna resgata a imagem do pícaro clássico, Lázaro de Tormes, cuja vida também esteve povoada do ''buscarse la vida''. A partir de sua morte, a alma deste nordestino, astuto y fraudulento, se vê perdida e roga pela misericórdia da Virgem diante das apelações do Diabo, que pede a justiça divina.

O autor recupera o conflito entre a Justiça e a Misericórdia com a cena do Auto da Compadecida e apresenta um contraste entre o espiritual e o carnal, segundo os preceitos da Idade Média, com o diálogo entre o pícaro João Grilo e o Tribunal Celeste.

Em 1999, o texto foi adaptado para a televisão pelo diretor Miguel Arraes e a seguir levado para as telas do cinema. É nesta bela adaptação que apontamos como Auto da Compadecida se faz eco de tais tradições peninsulares, privilegiando a cena que representa o Tribunal Celeste com a aparição da Virgem diante dos pecadores, retomando assim uma antiga tradição do teatro cristão.

Suassuna ao criar este Juízo Final, tão belamente mostrado nas telas do cinema, consegue fundir a este legado cristão, os intuitos de crítica social e do folclore nordestino em uma mesma cena, que rememora a sofrida vida do povo nordestino e que culmina com a compaixão da Virgem Santa para com a alma do pícaro João Grilo.

A riqueza policromática da cena do tribunal nos causa um deslumbramento pelo grande efeito pictórico, cujo efeito de oposição entre dois mundos lembra muito bem os pintores góticos que contrapõem à transparência luminosa das figuras sagradas, a espessura apagada e simples dos personagens terrestres.

Sabe-se que no auge da Idade Média, quando a Europa estava deixando para trás a lembrança da Idade das Trevas, dirigindo-se para uma nova e radiante era de prosperidade e confiança, surge o estilo gótico. O cristianismo entrava, então, numa fase triunfante de sua história.

A arte gótica, produzida principalmente com fins religiosos, revela em muitas de suas pinturas recursos didáticos que faziam o cristianismo visível para a população inculta, expostas com ícones para intensificar a contemplação e a prece. Imagens devocionais, os ícones, geralmente entronizavam as figuras de Cristo e de Nossa Senhora. Grandes mestres góticos criaram imagens de grande pureza e força persuasiva e espiritual. Assim é o quadro cinematográfico que ora apresentamos: com suas belíssimas vestes, as imagens narram pictoricamente uma intensa espiritualidade em que se vê um Cristo negro entronizado, ladeado pela Virgem e por anjos vindos do céu. No quadro do Tribunal Celeste, com a aparição do Cristo negro, Manuel, forma bem portuguesa de Emmanuel, código semântico de Jesus está conosco, junto à Virgem Maria, a Compadecida, se configura um exemplo gótico dos retablos espanhóis: se pinta, com as imagens dos santos, um mural de cor, de brilho, de auréolas góticas douradas, indicadoras de santidade, de pedras preciosas e vestimentas luxuosas que se contrapõe a um outro composto pelas figuras simples e opacas dos personagens da terra.

A figura de Cristo é representada de maneira régia e peremptória e com sua voz suave ele ordena que seja feita a sua vontade. E a Virgem Maria, que desliza pela cena, muito bela, habitando ao mesmo tempo, o mundo da terra e o mundo do céu, nos lembra, com sua graça, as figuras singelas de magistrais artista góticos.

Toda a delicadeza da cena se vê contrastada pela aparição do barulhento diabo, com suas intervenções irônicas e vingativas, na esperança de se apossar das almas dos mortos. À maneira do pintor Bosch e suas cores flamejantes do inferno, surge, em cenas iniciais do tribunal, na porta do inferno, o fogo imenso, aterrador e devorador de homens.

O espectador atento sabe ler, na belíssima, alegórica e inusitada cena, quando Jesus dá aos homens uma nova oportunidade de salvação, um tom didático que alerta sobre os pecados. Assim, João Grilo, com seu discurso cheio de picardia, é salvo pela intervenção majestosa e piedosa da Compadecida. Jogo de trevas e luz, contraste entre o profano e o sagrado, a cena em questão resgata, com seus entes sobrenaturais, a combinação entre o real e o fantástico, expressão bem completa do estilo naturalista gótico.

Reunindo, desta maneira, o mundo de hoje e de ontem, esta instigadora obra, faz uma releitura da redenção do homem por Cristo e a exaltação e adoração da Virgem Maria, nossa eterna Compadecida.

Suassuna com o Auto da Compadecida traz de volta, o que nos salta aos olhos, o Renascimento ainda cheio de influências da Idade Média com seu ponto de vista enfocado em direção ao muralismo e o colorido das minúcias dos vitrais góticos. No calor de fortes luzes e cores, se ilumina a cena do juízo universal, reveladora que diante da morte, a sátira social, a denúncia moral e a igualdade se podem harmonizar. Além do mais, se buscam o entretenimento e o deleite que se encontram nas obras picarescas, repletas de crítica às indulgências e às orações, com a conivência de um teatro alegórico, que personifica conceitos e instituições.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARRAES, G. O Auto da Compadecida. São Paulo: Globo Filmes, 2000.

BECKETT, Wendy. História da Pintura. São Paulo: Ática, 1997.

CAVALCANTI, Carlos. Conheça os Estilos de Pintura: da pré-história ao realismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

MENÉNDEZ PELÁEZ, Jesús. Historia de la Literatura Española. Volumen II: Renacimiento Y Barroco. León: Editorial Everest, S.A. ,1993.

REIS PINHEIRO, Suely. Carlitos: A Paródia Gestual do Herói. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo. São Paulo, 1995.

SUASSUNA. Ariano. A Compadecida e o Romanceiro Nordestino. In: Literatura Popular em versos. Estudos. R.J., MEC, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1973. V.1.

_________________ . Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: AGIR,1997.