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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002

 

Alguns aspectos da religiosidade em La Celestina, de Fernando de Rojas

 

 

Teresa Cecília de Oliveira Ramos

Universidade de São Paulo

 

 

Abordar temas relacionados à religiosidade na obra La Celestina pode parecer em si uma proposta paradoxal, já que a história se desenrola em um contexto que poderíamos classificar de profano, em que a existência está limitada ao plano terreno e seus personagens em momento algum procuram recorrer ao transcendente como forma de solução ou consolo aos problemas e à realidade que enfrentam.

Poderíamos dizer que na obra de Rojas os personagens se movem no nível da existência e seus desejos e anseios têm sempre como referência a realização concreta no nível da realidade que enfrentam: riqueza para sair da pobreza; realização carnal do amor; continuidade da vida pela perpetuação, na figura dos filhos, da riqueza alcançada, por exemplo.

No entanto, a presença do que poderíamos chamar de uma ''cultura religiosa'' é evidente, seja nas expressões coloquiais do dia-a-dia (como uma saudação ou uma manifestação de surpresa), seja inserida entre as muitas ''fontecicas de filosofía'' que compõem a grande maioria dos diálogos, ou nas constantes citações bíblicas.

No início do segundo ato de La Celestina, por exemplo, ao ser indagado por Calisto se agira bem ao dar cem moedas de ouro a Celestina como adiantamento de seus serviços, Sempronio irá responder longamente. Citamos aqui um fragmento dessa fala:

Sempronio: [...] Allende remediar tu vida, ganaste muy gran honra. Y ¿para qué es la fortuna favorable y próspera sino para servir a la honra, que es el mayor de los mundanos bienes? Que ésta es premio y galardón de la virtud. Y por eso la damos a Dios, porque no tenemos mayor cosa que le dar; la mayor parte de la cual consiste en la liberalidad y franqueza. A ésta los duros tesoros comunicables la escurecen y pierden, y la magnificencia y la liberalidad la ganan y subliman. ¿Qué aprovecha tener lo que se niega aprovechar? Sin duda te digo que es mejor el uso de las riquezas que la posesión dellas. ¡Oh qué glorioso es el dar! ¡Oh qué miserable es el recebir! (ROJAS, 2001).

Neste fragmento, permeado de refrões e citações aristotélicas, Sempronio tenta demonstrar a Calisto que seu ato se situa num plano elevado. O que ele resumidamente argumenta é que o ato de seu amo foi um ato nobre, com o qual comprava e engrandecia sua honra. Em sua argumentação, Sempronio vai paulatinamente introduzindo novos dados que, colocados juntos, se tornam ambíguos. A honra é um bem mundano e cabe ao homem utilizar sua fortuna – os bens materiais – para adquiri-la. A comprovação da virtude desse ato está em que os bens mundanos, para que tenham valor, têm que ser compartilhados, o que justificaria a nobreza de Calisto ao ''dividir'' seus bens com Celestina. Toda essa argumentação, que até aqui se situa num nível de conduta humana, já seria em si irônica se pensarmos que na realidade Calisto está efetivando um ato de compra dos serviços de Celestina para a conquista de Melibea, o que em si não teria nada de nobre ou honroso. Mas a contraposição entre o enfoque de Sempronio e o real sentido dos atos implicados se faz ainda maior pela citação de alguns preceitos religiosos judaico-cristãos: o valor humano de saber dar sem esperar nada em troca (''qué glorioso es el dar ... qué miserable es el recibir'') e a muito ambígua frase ''Y por eso la damos [la honra] a Dios, porque no tenemos mayor cosa que le dar'', ou seja, a honra, uma qualidade mundana, que pode ser alcançada na direta proporção dos bens materiais que se possui, é oferecida a Deus, ou, pelo deslocamento dos conceitos, busca-se agradar a Deus por meio de um ato terreno e profano de compra, que ao fim e ao cabo seria o bem mais importante a ser oferecido a Deus, ou ao menos o único que nos é possível.

O que se está efetivando aqui é o esvaziamento de uma conduta moral religiosa, que baseia a salvação da alma nas boas ações do ser humano, com base num preceito de generosidade e amor ao próximo, pela utilização desses preceitos morais na defesa de uma atitude que significaria um rebaixamento de seus atores e sua inserção num contexto de interesses puramente materiais.

Essa breve análise busca evidenciar como em La Celestina seu(s) autor(es) utiliza(m) uma série de preceitos, que poderíamos genericamente denominar de ética ou filosofia moral, em grande parte baseados em doutrinas religiosas, deslocando-os de suas finalidades originais e adaptando-os a situações e contextos em que seu conteúdo é redefinido ou esvaziado. Esse deslocamento pode ser considerado um dos responsáveis pelo caráter paradoxal do texto e pela sua ironia.

Uma análise textual que busque definir as características da obra que a tornam paradoxal deve partir de sua estrutura baseada no diálogo. Carlos Fuentes, ao destacar a importância do diálogo na obra, nos diz: ''La novedad, moralmente azarosa y fugitiva, estéticamente firme, convencida y convincente [...] es perceptible en su estructura. Suceden pocas cosas en La Celestina; los hechos son escasos; pero una vez acaecidos, o mientras suceden, son objeto de un intenso comentario por parte de los personajes; La Celestina, por primera vez en una narrativa [...] va más allá de la exposición del hecho para convertir el hecho en reflexión, interpretación, exaltación, burla y resumen de sí mismo'' (FUENTES, 1976, p. 46). É nesse discutir os fatos, analisar os outros, tentar entender a si mesmo, numa busca constante por entender e dominar a realidade, que os diálogos assumem seu papel motor da trama e a transformam a todo instante, imprimindo uma mutabilidade constante.

Poderíamos tentar entender a construção dos personagens em La Celestina com base no diálogo amparando a análise em três níveis facilmente discerníveis: a contraposição entre o que dizem e como atuam; a contraposição entre o que dizem para seus diferentes interlocutores dentro do texto; e a contraposição entre o que dizem e como são interpretados. Para Stephen Gilman, essas contraposições relativizam as afirmações, que se transformam em ''excusas y racionalizaciones'' (GILMAN, 1978, p. 359). Mas talvez mais do que a busca de uma justificação de seus atos por meio do discurso, ou de uma tentativa de entender-se a si mesmos, que pode ser notado principalmente nos câmbios de posição ou atitudes de alguns personagens, como Pármeno ou Melibea, o diálogo assume seu caráter prioritário dentro da obra por ser utilizado como arma de convencimento: mais do que utilizar seu discurso para explicar ou analisar, os personagens colocam o discurso a serviço do convencimento do outro para a obtenção de seus objetivos. Assim, tudo que é dito pode ser relativizado e assumir um caráter distinto que se adequa às condições do momento. As argumentações baseadas no senso comum, seja na figura de dogmas religiosos ou regras morais, são citadas e manipuladas para adequarem-se a uma lógica voltada para a justificação da obtenção de objetivos determinados. No caso específico deste trabalho, e como buscamos salientar pelo fragmento citado, os preceitos morais judaico-cristãos são utilizados pelos personagens para atender a uma argumentação cuja finalidade inverte o sentido original daquilo que é dito.

A consciência dos personagens se forma, nesse processo, de acordo com a situação e o debate do momento, o que nos leva à mutabilidade do que é dito por cada personagem diante de seus diferentes interlocutores ou diante das diferentes argumentações ou reações destes ao que é dito.1 Nesse processo, o que foi dito pelo mesmo personagem antes pode assumir um caráter completamente diferente – ou contraditório – do que é afirmado posteriormente a outro personagem.

Do ponto de vista das manifestações religiosas na obra, esse processo de adequação do que é dito aos interesses mais imediatos pode assumir um sentido literal e condizente a sua acepção original, ou pode resultar no esvaziamento dos conteúdos religiosos da forma como são elaborados pelas doutrinas e a sua ressignificação dentro de um novo contexto. Daí a relativização do que é afirmado, a possibilidade de diferentes interpretações e a criação da ambigüidade, e a ironia que o contraste entre o plano ideológico utilizado pelos personagens e o plano concreto de suas ações e interesses provoca.

Se até aqui os mecanismos utilizados por Rojas visavam esvaziar e subverter os princípios morais e religiosos existentes e predominantes na sociedade espanhola do período, burlando-se desses preceitos e da teoria a eles subjacentes, e para isso utilizando a paródia e o riso na concepção de sua obra, podemos dizer que no último ato, mais conhecido pelo nome de ''planto de Pleberio'', a ordem é novamente subvertida, dessa vez introduzindo, juntamente com a morte dos principais personagens e o suicídio de Melibea, o contraponto da tragédia.

Ao efetivar a sua lamentação diante do corpo morto da filha Melibea, Pleberio irá desenvolver um questionamento sobre o sentido da vida, sobre a impotência dos atos humanos e as reviravoltas da fortuna. Ao ver frustrar-se a única possibilidade de continuidade da riqueza que construíra, representada pela figura de sua única herdeira, Pleberio indagará a razão de ser do mundo, das ações dos homens, sujeitos aos caprichos da fortuna e do destino, fatores arbitrários que o homem não pode dominar e que Pleberio considera sempre implacáveis. O ''planto'' de Pleberio transforma a seqüência de mortes dos personagens, que poderiam ser interpretadas como uma punição à sua má conduta – e portanto possuírem um caráter estritamente moralizante e didático, concorde com grande parte da produção literária da época –, em uma destruição total de toda e qualquer possibilidade em todos os níveis da existência. O discurso de Pleberio é um questionamento sobre o sentido da vida, um questionamento pessimista porque não encontra respostas e trágico porque a única coisa que consegue constatar é a destruição total. Um ponto de vista que poderíamos considerar no mínimo heterodoxo dentro do contexto predominantemente cristão da época, principalmente por destruir qualquer possibilidade de esperança de continuidade da vida num nível transcendente. Como salienta Mario González:

[...] é inegável que [Pleberio] pensa de maneira diversa. Seu lamento final pela filha morta deixa claro que ele chora, basicamente, a inversão da ordem que o deixa sem herdeira; sua única transcendência estava cifrada em deixar para alguém as torres construídas, as honras adquiridas, as árvores plantadas e os navios fabricados [...] é evidente que chama a atenção a ausência de qualquer sentimento cristão no lamento de Pleberio. [...] não há menção de nenhuma outra vida, no além, para sua filha, nem de condenação eterna que, como suicida, lhe auguraria o pensamento cristão [...] (GONZÁLEZ, 1996, p. 20).

Poderíamos perguntar, para finalizar esta breve exposição, que fatores no contexto histórico, social e pessoal de Rojas poderiam estar refletidos em sua obra resultando na expressão de uma visão de mundo tão heterodoxa. E também nesse ponto as díspares interpretações da crítica nos levam a constatar a amplitude de possíveis leituras do texto, desde aquela feita prioritariamente por Stephen Gilman, mas também importante nas análises de outros autores, como Américo Castro e Carlos Fuentes, de que Rojas, como descendente de conversos, estaria expressando por meio da ironia uma postura crítica em relação a uma sociedade que então excluía os judeus e conversos de seu convívio; ou então o ponto de vista defendido por Marcel Bataillon, para quem a obra possui um cunho didático cristão, com a punição por meio das mortes; ou ainda a leitura baseada num contexto humanista, em que os dogmas religiosos, tanto cristãos, na figura da escolástica, como judaicos, com base numa interpretação estrita da Torá e do Talmude, são combatidos, conduzindo ao mundo da cultura grega e romana antigas para a elaboração de uma nova filosofia moral.2

Quando falamos em religiosidade estamos nos referindo aqui a uma ética e a uma filosofia moral baseadas em princípios religiosos. Ainda que esses fatores possuam seu cunho eminentemente prático, de regras a serem aplicadas na vida e conduta cotidianas e terrenas, eles nunca perdem de vista a referência a uma concepção de mundo que inclui o transcendente ou um nível divino. Qualquer uma das três correntes prioritárias de interpretação acima descritas podem ser consideradas válidas, mas talvez nenhuma delas seja capaz de dar conta do sentido dessa obra, que supera e aí sim transcende seus significados, deixando La Celestina novamente e sempre aberta à busca de novos sentidos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BLANCO AGUINAGA et alii. Historia social de la literatura española. Madrid: Castalia, 1981, vol. 1.

DI CAMILLO, Ottavio. Ética humanística y libertinaje en La Celestina. In: LÓPEZ-RÍOS, Santiago (ed.). Estudios sobre la Celestina. Madrid: Istmo, 2001.

Fuentes, Carlos. Cervantes o la crítica de la lectura. México: Joaquín Roriz, 1976.

GILMAN, Stephen. La España de Fernando de Rojas. Madrid: Taurus, 1978.

GONZÁLEZ, Mario. Celestina: o diálogo paradoxal. Cuadernos de Recienvenido, n. 2. São Paulo: Universidade de São Paulo, FFLCH, 1996.

ROJAS, Fernando de (y ''antiguo autor''). La Celestina. Tragicomedia de Calisto y Melibea. Edição e estudo de Francisco Rico. Madrid: Crítica, 2000.

 

 

1 Um exemplo marcante dessa mutabilidade do argumento é o diálogo de convencimento entre Celestina e Melibea. As respostas e reações de ambos os personagens sofrem alterações constantes de postura de acordo com as respostas e reações, por sua vez, do interlocutor.
2 ''Todo apunta, por un lado, a la manera distinta que los humanistas tuvieron de percibir el mundo, conscientes, sobre todo, de vivir en una nueva época y, por otro, a la necesidad de procurarse nuevos modelos de conocimiento y de experiencias intelectuales, más apropriados a las exigencias culturales de su tiempo. De ahí el afán de recuperar el pensamiento de los antiguos, transmitido a través de sus escritos'' (Di Camillo, 2001, p. 584).