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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002

 

O monstro devorador

 

 

Vera Maria Chalmers

Universidade Estadual de Campinas

 

 

Apesar de ser o terceiro maior grupo de imigração para o Brasil, depois dos italianos e portugueses, na virada do século vinte, a imigração espanhola deixou poucas evidências escritas na imprensa operária militante. Os imigrantes espanhóis em São Paulo, Santos e no Rio de Janeiro não formaram comunidades distintas, bairros, profissões ou associações que os distinguissem da massa do proletariado estrangeiro, nas cidades ou no campo. Embora a cidade de São Paulo reunisse o maior número de imigrantes espanhóis, sua presença parece ter sido mais visível em Santos, onde eram o segundo grupo de imigração depois dos portugueses. As listas de deportações de militantes após as greves incluem sempre um grande número de ativistas espanhóis. Mas eles deixaram poucas marcas escritas, em jornais, revistas, panfletos ou programas de reuniões ou festejos. Os espanhóis eram os mais pobres entre os imigrantes e também eram quase sempre iletrados. A imigração que veio para o Brasil provinha do norte da Espanha, da Galícia, e de Andaluzia, predominantemente. As lideranças do movimento operário tornaram-se anarquistas aqui no Brasil, somente uns poucos militantes vieram na grande imigração. O combativo anarquismo espanhol teve pouca penetração através dos seus militantes e da produção escrita no Brasil, deste modo, ele não informa tampouco a atuação dos combatentes de origem espanhola. Por este motivo, os poucos registros escritos durante a grande imigração são preciosos, para o estudo da presença espanhola em São Paulo, Santos e Rio de Janeiro. Nos jornais militantes há uma produção esporádica escrita em castelhano ou traduzida para o português de autores espanhóis. Há ainda a referência a assuntos que dizem respeito à Espanha, como a execução de Ferrer, a qual ganha destaque na imprensa anarquista. Na literatura de cunho libertário publicada na imprensa militante a presença espanhola é muito dispersa. A famosa coletânea de contos, a "Dianamita Cerebral" não é quase divulgada pelas bibliotecas dos jornais. A importante Revista Blanca também não é divulgada e é pouco reproduzida ou traduzida para o português. A farta literatura libertária espanhola é pouco conhecida pelos brasileiros. O folhetim é quase desconhecido, a não ser pelo romance de Carlos Malato, Os Comuneiros, de assunto espanhol sobre o Siglo de Oro, ou o romance de José Rizal, No País dos Frades, passado nas Filipinas, sob o jugo espanhol, não há quase folhetim em tradução ou em Espanhol.

 

"Lo que dicen las máquinas" de F. Pi y Arsuaga

O conto de Fernando Pi y Arsuaga se inscreve na grande tradição romântica do folhetim de cunho anarquista. O conto, publicado em O Chapeleiro nº4, de 1 de maio de 1904 (BAETA LEAL,1999,p.240), constitui uma das raras testemunhas da presença da literatura anarquista espanhola na imprensa libertária brasileira. A narrativa, uma espécie de apólogo, merece a atenção dos estudiosos não só por suas qualidades literárias, mas pelo seu interesse como obra formadora da mentalidade anarquista. Fernando Pi y Arsuaga (1886-1912) é autor de peças moralizantes infanto-juvenís, reunidas na série, El Teatro de la infancia, compostas de um ato, freqüentemente em verso, publicadas em Madrid pelo Editorial Saturnino Calleja,em 1876. Pi y Arsuaga é ainda autor de Preludio de la lucha de 1886 e de outras obras como Quiere saber? Cuenta um cuento, de um livro de contos, Cuentos, e da novela histórica, El Cid Campeador. Foi diretor do jornal, La Autonomia (1869-99). O texto estudado, "Lo que dicen las máquinas" é uma prosa de ficção de caráter proselitista. O texto apresenta uma estrutura dramática que o aproxima dos monólogos para o teatro infantil. A narrativa em questão pode ser classificada como conto, embora não apresente as características do conto moderno, pois falta o recurso da economia de meios com vistas ao desfecho. Apresentá-lo como conto é uma designação provisória, que satisfaz certas afinidades que a prosa de ficção mantém com a forma do conto, tais como a existência de um enredo dramático. Mas , o mais correto é designá-lo como uma alegoria.

Dizíamos que "Lo que dicen las máquinas" se inscreve na grande tradição romântica, em seus desdobramentos na passagem do século dezenove para o vinte, não como Escola Literária, mas como visão do mundo tal como a define Michel Löwy (LÖWY;SAYRER,1993,p.17), isto é, como estrutura mental coletiva específica de certos grupos sociais. Apesar das dificuldades em definir o romantismo por seu caráter contraditório, a um tempo revolucionário e contra-revolucionário, os autores destacam como característica fundamental da visão de mundo romântica o anti-capitalismo. Como se trata de um fenômeno histórico sua gênese está menos na reação à Revolução burguesa de 1789, do que na resposta à transformação mais lenta e profunda, de ordem econômica e social, que é o surgimento do capitalismo. As manifestações do que a História da Literatura nomeia como Pré-Romantismo já estão presentes a partir da metade do século dezoito. As primeiras manifestações românticas ocorrem na Inglaterra, país onde as relações capitalistas se desenvolvem mais cedo, e na França com Rousseau. O movimento do Sturm und Drang e o Werther de Göethe acusam já um Romantismo de importância. Os autores discutem a delimitação do fenômeno da visão romântica anti-capitalista, ao afirmarem que nem 1848, nem a virada do século vinte marcam o seu desaparecimento ou a sua marginalização. E na virada do século vinte, traços românticos se evidenciam nas idéias de Ruskin e de William Morris. O conceito de romantismo anti-capitalista se aplica para designar o conjunto das formas de pensamento, nas quais a crítica à sociedade burguesa se faz com referência ao passado pré-capitalista. A nostalgia do passado está estreitamente ligada à recusa do presente capitalista. O passadismo romântico também é uma perspectiva do futuro, pois a imagem de um futuro sonhado para além do capitalismo é uma visão nostálgica de uma era pré-capitalista. O passado idealizado não é necessariamente a Idade Média , mas pode ser o do mito da Idade de Ouro, que informa a criação da Nova Jerusalém. O sentimento de perda é um dos principais componentes da visão de mundo romântica. A principal perda é a do vínculo do indivíduo com a sociedade, que fundamenta a subjetividade romântica. O individualismo é produto da sociedade burguesa. Mas a subjetividade romântica se rebela contra a sociedade fundada no valor de troca. Os valores éticos, sociais e culturais dos românticos se chocam com o mercantilismo das relações burguesas. Em sua oposição à sociedade, o indivíduo volta-se para a natureza, como cenário dos seus sentimentos mais íntimos. A natureza é o refúgio do indivíduo solitário. A aspiração à recriação da integração do homem no universo é a recusa do isolamento do indivíduo no capitalismo. O que os românticos buscam são os valores que se perderam no capitalismo: a integridade do indivíduo e sua ligação com a sociedade.

Com base na visão de mundo que discutimos acima, Michel Löwy e Robert Sayre estabelecem uma tipologia dos diversos romantismos em função de sua relação com o capitalismo. Conforme explicam os autores, não se trata de uma tipologia política, mas sim de uma caracterização que também considera os aspectos ecnômico, social e político. Trata-se de tipos ideais no sentido weberiano, que podem ser encontrados combinados ou fundidos na obra de um autor. Diz-se que um tal pensador pertence a um determinado tipo, quando este constitui o elemento dominante em seu pensamento. Na economia deste ensaio, não trataremos de expor todos os tipos exemplificados pelos autores. Mas, sim, procuraremos discutir a relação que os autores estabelecem entre Anarquismo e Romantismo em sua tipologia. Em poucas palavras, os autores resumem este tipo de Romantismo libertário ou anarquista, o qual se inspira nas tradições coletivistas pré-capitalistas dos camponeses, artesãos ou operários qualificados, para travar a luta contra o capitalismo e o Estado moderno. O que na opinião dos autores distingue esta corrente de outras parecidas é a oposição ao Estado e a aspiração a uma federação descentralizada de comunidades locais. E citam como exemplos os seguintes pensadores: Proudhom, Bakunine, Elisée Reclus, George Sorel, Gustav Landauer, Oscar Wilde, Strindberg. Os estudos literários, a meu ver, apesar da opinião contrária de Löwy, exploram com mais profundidade e rigor as características do Romantismo. A classificação da visão do mundo delineada por Löwy e Sayre é restrita demais e sua contribuição mais importante é estabelecer a relação entre Romantismo e anti-capitalismo, que abre perspectivas novas para o estudo do movimento romântico, na política e na literatura. A tipologia weberiana é redutora como toda classificação sumária e serve a este estudo por explicitar o conteúdo das relações entre Anarquismo e Romantismo, que interessa ao escôpo deste trabalho. Na citação dos autores anarquistas românticos, a tipologia estabelecida não explicita as razões da inclusão destes nomes na lista de autores e também deixa de lado uma série enorme de pensadores e escritores que caberiam na classificação. A referência, portanto é sumária e não é desenvolvida uma argumentação explicando os motivos da escolha drástica. Apesar das limitações desta obra de Michel Löwy e Robert Sayre de caráter de divulgação científica, a pesquisa acentua a sua contribuição para a análise dos textos anarquistas, principalmente do conto estudado, e do exame da dívida do Anarquismo para com o Romantismo literário e político.

O texto de Pi y Arsuaga faz de início o elogio da civilização industrial. Descreve o funcionamento da máquina a vapor, que se alimenta do fogo do carvão, que ferve a água da caldera, a qual comprime o vapor no embolo, o qual empurra a biela, que move o eixo e faz girar o poderoso volante; a correia sem fim põe em movimento outros eixos e outras rodas, outras correias e outras máquinas. A epopéia do trabalho se escreve com a revolução industrial: a indústria caminha, a produção aumenta, o operário trabalha. No primeiro movimento da breve introdução, a qual funciona como uma indicação de cena, os verbos incoativos exprimem a intensificação do movimento da máquina, que age como de motu proprio, como um monstro animado, porém fatigado. O imaginário já se projeta logo no início, ao descrever a produção industrial, a qual se completa como que propulsionada pela ação dos próprios elementos que a constituem. As conquistas da indústria são celebradas num primeiro momento como resultados da ação da máquina, sem a intervenção do homem: a indústria move o operário, espécie de apêndice do progresso da técnica. A frase enfática que fecha o parágrafo posterior salienta o poder da inteligência humana, que propulsiona a máquina. Mas a afirmação tem um sentido irônico como síntese do pensamento anterior que exalta a máquina em detrimento do operário, citado apenas no final do período anterior. ! Que hermoso poder el de la humana inteligencia! A su conjuro se multiplica el movimiento y surgen el calor la luz." A inteligência humana se contrapõe ao poder mecânico da máquina, por ela criada. No modo de produção capitalista as relações sociais de produção se exprimem na figura da máquina como um monstro que destrói os homens. Ao taxar de monstro a máquina, o imaginário libertário mostra uma dupla face: de um lado a apreciação das conquistas da industrialização e de outro as consequências da exploração do proletariado (LITWAK,1981,p.105).

 

O monstro devorador

Conforme O Capital, o emprêgo da máquina pelo capital, como qualquer outro desenvolvimento da força produtiva do trabalho tem por objetivo baratear a mercadoria e encurtar o tempo de trabalho do trabalhador para si mesmo, aumentando o tempo que ele dá gratuitamente para o capitalista. A maquinaria é meio para produzir mais valia (MARX,1971,p.424). A imagem da máquina monstruosa devoradora de homens é produzida pelas repercussões do instrumental de trabalho sobre o trabalhador. O sistema orgânico de máquinas da fábrica torna supérflua a força física do trabalhador como força motriz. Como conseqüência, a maquinaria devora a força de trabalho do operário adulto e de sua família, atraindo para a esfera do trabalho na máquina as mulheres e as crianças. O trabalho obrigatório para o capital substitui o tempo livre da criança e o trabalho doméstico. Ao repartir o trabalho do homem adulto por todos os membros da família a máquina desvaloriza a força de trabalho do operário. Deste modo, sem distinção de sexo ou de idade os trabalhadores são lançados no mercado de trabalho. O monstro mecânico do imaginário popular não escolhe suas vítimas, ele as alcança onde elas estão, na família ou no trabalho. Subjugados pela máquina, homens, mulheres e crianças submetem-se à voracidade do capital. O imaginário da máquina como monstro tem origem no capital. A revolta dos luddistas no começo do século dezenove exprime a longa luta travada desde o século dezessete contra a máquina pelos trabalhadores. A muito custo a destruição da máquina foi substituída por outras formas de luta. Foi preciso tempo e experiência para o operário atacar não os meios diretos de produção, mas as relações sociais de produção. Sob o capitalismo, a máquina é inimiga do trabalhador. O imaginário da máquina monstruosa permeia o discurso militante do operariado. No conto estudado, "Lo que dicen las máquinas", o consenso imaginário se organiza em narrativa construindo o mito, que se reporta ao vestígio arcaico simbólico da devoração por um monstro. A imaginação simbólica aparece como sistema de "forças de coesão" antagonistas. O antagonismo entre o operário e a máquina emerge dessas estruturas discursivas do imaginário como recursos retóricos inerentes à narrativa, tais como o símile baseado numa antinomia que constrói a imagem do estômago do operário como concorrente da fornalha da máquina. A imagem da máquina monstro parece escapar do puro determinismo sociológico, como uma grande constante, que é imediatamente compreendida como símbolo. No mito heróico da criação do novo homem difundido pela literatura libertária, a prova iniciática da morte simbólica pela devoração pela máquina propicia uma nova vida, a sociedade acrática. Abole-se a axistência histórica para reintegrar a situação germinal. O estado primordial equivale também a uma morte: mata-se a existência profana, já usada, para obter uma existência não contaminada pelo tempo. O mito da máquina monstro é uma cosmogonia. O ser devorado pela máquina, o operário, é a prova da criação de um novo mundo, não contaminado pela exploração do trabalho. Assim, elimina-se a existência histórica do capitalismo para gerar a Revolução.

A argumentação persuasiva do conto serve-se do pensamento racional sobre a máquina como meio de produção e sua relação com o operário para construir a imagem da devoração pelo monstro. O sentido próprio, que conduz o conceito da exploração do trabalho não oculta o símbolo, mas é apenas um caso particular do sentido figurado, isto é, um símbolo restrito. À hipotipose que descreve o monstro no início do texto segue-se o símile que solda os contrários: a fome do operário é comparada à voracidade da máquina. O motivo da devoração se exprime pela metonímia do forno e do estômago. A sintaxe da argumentação lógica exprime uma retórica persuasiva que também se impregna do consenso imaginário. Não há ruptura entre o racional e o imaginário. A aproximação dos contrários no símile é obra do mito que exprime o antagonismo da máquina e da força do trabalho na imagem da força motriz que movimenta a máquina e que move o trabalhador. Graças ao automato que constitui a máquina o trabalho repetitivo e sem interesse transforma o operário num mecanismo. O trabalhador é engulido pela voracidade da máquina. Para renascer um outro homem ele precisa passar por uma espécie de morte simbólica pela mecanização, para aliando-se à máquina derrotar o capital. O mito expressa a união dos contrários, o operário e a máquina, dissociando a máquina e o capital. A distinção entre o meio de produção e as relações sociais é fundamental para a eficácia do discurso retórico que sustenta a operação simbólica. O modo de produção capitalista precisa ser derrotado para restabelecer entre a máquina e o homem uma relação fecunda. A proposição da narrativa não é a luta isolada contra a máquina, mas contra a máquina sob o capital. Ao recuperar a memória do mito da devoração por um monstro (ELIADE,s/d) , o texto mobiliza no leitor não apenas o pensamento racional da lógica persuasiva, mas também as imagens associadas à máquina, ampliando o alcance da compreensão dos acontecimentos narrados. O texto anarquista mobiliza os elementos arcaicos de um sonhar libertário na construção da utopia.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ELIADE, Mircea. Mitos, sonhos e mistérios. Lisboa: Edições 70, s/d

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KLEIN, Herbert. A imigração espanhola no Brasil. São Paulo: Ed. Sumaré, 1994

LITWAK, Lily. Transformación industrial y literatura em España (1895-1905). Madrid: Taurus, 1980

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MEYER, Marlyse. Folhetim - uma história. São Paulo: Cia das Letras, 1996