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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002

 

A literatura como discurso do corpo

 

 

Alai Garcia Diniz

UFSC

 

 

Na sociedade pós-industrial do século XXI as relações de presença convertem-se em relações de ausência e o que é corpóreo entra, por vezes, numa atmosfera de anacronismo para os setores da população que já têm acesso aos meios eletrônicos. Na economia mundializada este caráter impessoal e fantasmagórico perpassa as relações pessoais, profissionais e afetivas. Os vínculos sociais desancoram-se de seus contextos locais e os mecanismos desterritorializados exigem por parte dos sujeitos re-territorializações a partir de novas práticas culturais e de reinserção de disciplinas em saberes interdisciplinares que se voltem a práticas de memória e cidadania.

Estas transformações convidam-me a ousar uma reflexão sobre a subalternidade, fruto da modernização, e deixar de lado práticas da cultura letrada com sua preocupação pelos cânones, estratégia que segmenta e exclui e define o gosto a partir do mercado para repensar a tensão histórica entre oralidade e escritura, entre cenas, letras e corpos.

Valho-me da discussão de Alfredo Bosi sobre cultura e colonização para mostrar que:

a possibilidade de enraizar no passado a experiência atual de um grupo se perfaz pelas mediações simbólicas. É o gesto, o canto, a dança, o rito, a oração, a fala que invoca...vínculo do presente com o outrora-tornado-agora, laço da comunidade com as forças que a criaram em outro tempo e que sustêm a sua identidade. (BOSI,1992,15)

Neste sentido não me proponho a abandonar a elaboração mallarmiana do papel como corpo mas promover o estilo antropofágico ao ensaiar-lhe um novo papel: o do corpo, na tentativa de vincular-me a forças que se marginalizaram no processo de colonização e que fazem hoje da leitura um ato não reiterável: a performance.

Sendo assim convém explicar, em primeiro lugar, a percepção do corpo como um discurso e falar como Barthes, citando os eruditos árabes: '' Que corpo? Temos muitos''. (BARTHES, 1987,25). Entretanto dos muitos corpos o que Barthes denomina corpo de fruição guarda com o texto a semelhança de ser uma lista aberta de ''fogos de linguagem'' e sua forma humana é a do corpo erótico. Esta idéia se conecta à visão de Judith Butler que apresenta o corpo como um artefato e não como um mero elemento material, mas uma fronteira variável, uma superfície cuja permeabilidade é politicamente regulada ( BUTLER, 1991, 34) O corpo como uma construção simbólica plural representa-se distintamente no tempo e no espaço e passam por ele eixos de transversalidades de etnia, gênero, classe e sexualidade, sendo usado por diferentes disciplinas (medicina, religião, biologia, direito, antropologia), segundo seus interesses e teorizações. Neste sentido pensar no corpo como discurso significa desconstruí-lo, pluralizá-lo servindo-se dele como um espaço de transgressão de linguagem e pluralidade de sentidos.

Nesta medida a leitura corporal aproxima a literatura de outro suporte - o corpo – que, em seu bojo, traz a idéia de performance. Contemporaneamente a performance se converte em um termo ''mutante e nômade''1 (PRIETO, 2001) ao combinar diferentes genealogias e definições, segundo se fale a partir das artes plásticas, do teatro, da música, da antropologia ou da literatura. Provisoriamente no campo da literatura satisfaz-me a visão de Paul Zumthor que a entende como:

um ato de leitura onde além da decodificação da informação se agregam elementos não-informativos que evocam o prazer no receptor e se converte em realidade poética pela leitura que é praticada por um sujeito determinado. (ZUMTHOR, 2000,29)

Introduzir na literatura o tema da performance serve para estudar o presente na profusão de uma nova camada de trabalhadores informais que resgatam o histrionismo, a acrobacia e o malabarismo ou a técnica da mímica nas ruas das principais latino-americanas.2 Ou dos escritores que reivindicam a oralidade como é o caso de Elicura Chihuailaf, poeta mapuche chileno que em sua obra bilingüe ( en castellano e em mapuzugun) Recado confidencial a los chilenos se autodenomina um ''oralitor'' porque realiza a oralitura:

la palabra sostenida en la memoria, movida por ella, desde el hablar de la fuente que fluye en las comunidades. La palabra escrita no como mero artifício lingüístico ...sino como un compromiso en el presente del Sueño y la Memoria. (CHIHUAILAF,1999,62)

Se no presente a literatura como corpo espalha-se no âmbito multidisciplinar da performance e da poesia étnica, a fim de elaborar leituras diacrônicas, recorro à contribuição a Antonio Cornejo Polar, que, embora em seu momento compreendia a literatura latino-americana como totalidade, ressalta o fenômeno cultural como um sistema complexo, feito de vários conflitos e contradições. Um dos primeiros conflitos, segundo Cornejo Polar, seria a duplicidade de seus mecanismos de conformação - a oralidade e a escritura que remetem a duas racionalidades diferenciadas. Entre uma e outra há uma larga e complicada franja de interseções e aponta como grau zero de interação: o diálogo entre Atahualpa e o padre Vicente Valverde em Cajamarca em abril de 1532. Desde um locus, o Peru, Cornejo Polar compõe uma genealogia a seu conceito de heterogeneidade.

No caso do encontro de Cajamarca o episódio que aparece nas crônicas, deixou marcas profundas em performances andinas atuais como em Paucartambo, Carhuamayo3 que, ao lado das festas cristãs, também sobrevivem à transculturação em forma de rito da morte de Atahualpa. O episódio do breviário atirado ao chão por Atahualpa reverbera na cultura andina desde o século XVI pois se o livro sagrado provocava nos iletrados uma certa reação de submissão como se o livro ou as letras contivessem espíritos, não conteria a mesmo sentido que para os letrados.

Isto explicaria por que os cronistas incas como Santa Cruz Pachacuti dedicam poucas linhas ao episódio? Em comparação aos textos espanhóis relativos ao evento Nueva Corónica de Guamán Poma de Ayala enfatiza o verbo ''dizer''evocando obsessivamente recorrentes indicações de oralidade ( Polar, 2000, 231). Ao privilegiar a oralidade Guamán Poma faz sobressair o corpo indígena, sua cultura e a imagem que se retrata nas páginas dessa obra intersemiótica e a memória da voz que se simula simula no campo oral, diferentemente de Garcilaso que contesta a versão de rebeldia em Atahualpa, ao mostrá-lo submisso em aceitar o desígnio divino da evangelização.

É justamente a obra Comentarios Reales de Garcilaso, el inca que sela o pacto entre a voz e a letra. Esta resolução está na base de sua canonização como escritura? Se por um lado a escrita penetra na cultura andina como misto de poder e autoridade, por outro funciona para desprezar outros sistemas de signos, outras linguagens. Deste modo a morte de Atahualpa virou mito - tragédia pan-andina: (wanka). O encontro em Cajamarca mostra, como diz Cornejo Polar, ''o triunfo inicial da letra e a primeira derrota da voz''.

Essa breve incursão pelo mito de Atahualpa e suas atualizações deve-se não só à intenção de consolidar o conceito de heterogeneidade, cunhado por Cornejo Polar, na tensão entre oralidade e escrita como para combiná-lo à abordagem lezamiana de uma construção histórica que se utiliza do ''logos poético''.

No entanto durante a fase da conquista ocorreram outras situações homólogas relatadas em crônicas, diários e cartas e representadas mais tarde como de tensão entre línguas, modelos culturais como a do encontro em México entre Cortés, Malinche e Montezuma4. No caso deste último encontro, além da questão intercultural e intersemiótica, havia também neste episódio a questão de gênero que transformou no século XIX a figura de Malinche, em bode expiatório na conexão da ''lengua''(intérprete) com o estrangeiro (CYPESS, 1991, p. 27). E no século XX deu origem ao ''malinchismo'' que em política mexicana tornou-se sinônimo de traição. Com o movimento feminista e a reterritorialização das chicanas a mediação de Malinche no primeiro encontro entre o rei asteca e o invasor espanhol passa a valer como a primeira situação de poder da mulher no México e neste sentido desconstroem o mito de Malinche como ''la chingada'' a fim de valorizá-la como a mulher que interpreta e de quem a humanidade depende. O desempenho oral da escrava Malinche tão poderosa por que multicultural, dominava o idioma maia-quiché e o náhuatl mas constituiu-se como mito feminino negativo até bem pouco tempo no imaginário mexicano.

Assim, a partir da desestabilização das práticas culturais com os meios eletrônicos, exerço a tentativa de um olhar diacrônico para operar enlaces com o suporte do corpo e para refletir como o capitalismo engessou os estudos literários a um único suporte da literatura nos três últimos século: o livro. Hoje no jogo o corpo entra com seu eixo de transversalidades, ressaltando leituras sobre como a literatura dispõe a subalternidade em sociedades assimétricas como as que ficam do lado debaixo do Equador. Ao agregar estudos de performance e de vocalidade como suportes a olhares críticos e sobretudo a ouvidos que não pretendam continuar moucos visibilizam-se práticas culturais subalternas, tais como a palavra cantada, as pelejas ou as performances populares urbanas.

Como relata Gerd Baumann, o ritual público em sociedades plurais servem a minorias tanto como um discurso simbólico como uma consolidação de valores e sentidos internos em uma arena que permite e encoraja múltiplas leituras. (BAUMANN, 1989, 101). Não é o mesmo escrever uma história e dançá-la. Inscrevendo-se em diferente racionalidade a performance se define como conhecimento e ação que se restauram. (SCHECHNER, 1985). No caso da morte de Atahualpa há textos ininteligíveis que transformam o ato efêmero em algo sagrado, envolto em mistério, através da voz mostra-se a resistência à letra que traduz o ritual da dominação sobre uma cultura ágrafa. O ininteligível da oralidade em performances andinas atuais supre o sentido no ato de comunhão que responde a vozes ancestrais.

E nessa trajetória de refletir sobre o privilégio da escritura sobre a oralidade pretendo somar a concepção lezamiana que opõe à visão histórica, dirigida pela razão, ao logos poético que permite pensar a analogia, a ressonância e as urdiduras realizadas na dança, o teatro, as máscaras, a música em uma a multiformidade do real, expressando uma visão histórica pelo filtro da imagem''. (CHIAMPI, 1988, 24) Neste sentido ao discorrer sobre a idéia de que é impossível reconstruir a verdade dos fatos, Lezama Lima enriquece a história com a idéia de que para criar um processo que leva ao auto- conhecimento, surge:

a atividade metafórica que, por sua vez, se distingue do ato de recordar porque se este se vincula '' ao espírito, a memória é como um plasma da alma, é sempre criadora, espermática, pois memorizamos a partir da raiz da espécie. (LEZAMA LIMA, 1988, 59).

Ao aplicar sua reflexão sobre o logos poético como produtor de auto conhecimento num ensaio sobre a poesia de expressão ''crioula''5 Lezama Lima, através de uma catalogação whitmaniana de imagens vai tecendo as urdiduras sobre as décimas, vindas do romance hispano mas em busca de fatos miúdos, derivação de folhetim, aconselhadas pela música¸ na sátira de subterrâneo, mal enraizada na picaresca espanhola, ''situado entre o percurso do romance e a intensidade da copla'', entoação de cego ocorre a ''voz que vai resgatando a linguagem de sua própria pertença.'' E mostra como:

nasceram para ficar, pois têm algo de mineral, do costume e do milagre. Têm algo do silencioso repique da morte no dia em que morremos. Mas que até lá nos olham com olhos vivos e nos solicitam. (LEZAMA LIMA, 1988,140)

O autor vai definindo o corrido mexicano, gênero épico cantado em quartetos de rima variável característico na literatura oral mexicana e semelhante ao cordel do Nordeste ou aos desafios e pelejas do sul. Cataloga depois os aspectos dos cielitos da comarca platina com a maternidade do umbu - casa do deserto, com seu tom ''de homens'' clássico e fatal e no idioma da alegria que vai do aumentativo - estardalhaço- ao diminutivo na contração, diz Lezama envolvendo a leitura naquela fábula de intertextualidade que só ele sabia criar.

E para concluir resta-me abordar a Alfredo Bosi que enfrenta no ensaio ''A escrita e os excluídos'' a discussão sobre cultura não-letrada, mostrando como em uma operação de passagem o letrado incorpora as imagens rústicas ao repertório do leitor culto. E de outra maneira, o que ele chama de cultura de fronteira seria a passagem para a escritura das narrativas recitadas ou cantaroladas em forma de cordel pelos repentistas que de anônimos passam, no final do século XIX a assumir gradativamente a postura de autores (BOSI, 2002, 260). Como expõe Bosi a questão da cultura popular mostra-se como uma questão aberta e se ao crítico lhe interessa descobrir o leitor e o escritor potencial do excluído, proponho, neste sentido, pensar em práticas de oralidade e performance que envolvem o trabalho, a etnia, o gênero e a política, em vários segmentos do cotidiano, , dando-lhe a visibilidade na academia. Essas mediações simbólicas representam não só uma manifestação da memória como a intenção de uma inscrição cidadã 6, para reforçar na comunidade o ''outrora tornado agora'' que podem se estabelecem entre o passado que dói e o futuro que ameaça.

En esta noche en este mundo
Las palabras del sueño de la infancia de la muerte
Nunca es eso lo que uno quiere decir
La lengua natal castra
Órgano de conocimiento
del fracaso de todo poema
castrado por su propia lengua
Órgano de re-creación
del reconocimiento
De mi horizonte de Maldoror con su perro
Y nada es promesa
Entre lo decible
Que equivale a mentir
(todo lo que se puede decir es mentira)
el resto es silencio
sólo que el silencio no existe. (PIZARNIK,1992)

 

BIBLIOGRAFIA

BARTHES, R. – O prazer do texto – trad. J. Guinsburg, SP: Perspectiva,1987.

BAUMANN, G. -'' Ritual implicates ''Others'': rereading Durkheim in a plural society'' in COPPET, D. (Editor.) - Understanding Rituals, London and New York: Routledge, 1989.

BOSI, A – Dialética da colonização, São Paulo: Cia das Letras, 1992.

BOSI, A - Literatura e Resistência, São Paulo: Cia das Letras, 2002.

BUTLER, J. – Gender Trouble, New York/London: Routledge, 1990.

CHIHUAILAF, E. – Recado confidencial a los chilenos. Santiago:Lom, 1999.

CORTÉS, H., 32a. Ed. - Cartas de Relación, México:Porrúa, 1992.

CYPESS, S. M - La Malinche in Mexican Literature, Austin: University of Texas Press, 1991.

CORNEJO POLAR, A - O Condor voa, Belo Horizonte: UFMG, 2001.

LEZAMA LIMA, J. – A expressão americana, São Paulo: Ed. Brasiliense, 1988.

PIZARNIK, A – Obras Completas, Buenos Aires: Sudamericana, 1992.

SCHECHNER, R.(1985) -Between Theatre and Antropology, Philadelphia: University Press of Pennsylvania,1995.

ZUMTHOR, P. – Performance, recepção, leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo:EDUC, 2000.

 

 

1 Essa idéia foi lançada por Antonio Prieto em debate durante o II Encontro Internacional do Instituto Hemisférico sobre performance, em Monterrey/México, ocorrido entre 05 a 13 de junho de 2001.
2 O ''homem do gato''- Feliciano Falcão no Sul do Brasil e a Associación de comediantes callejeros de Lima no Perú já começam a ser estudados no âmbito da literatura através do GT Performance popular urbana do Instituto Hemisférico que congrega estudiosos da performance no continente americano.
3 Como um artefato cultural a encenação da morte de Atahualpa se reatualiza em festas locais, e através de diferentes gêneros como a performances de Carlos Levoyer - Victorias del Ticci Cápac (Rey del Mundo Nuevo) Atahualpa com 200 artistas amadores de paróquias rurais de Quito com música de Gerardo Guevara; com a suite sinfônica Ocaso del Imperio de Luis Humberto Salgado; com a crônica de Jorge Carrera Andrade (http://www.cultura.com.ec) ou o poema de Taki Ongoy (http://www.Raicesargentinas.com.ar/TakiOngoy/encuentro.htm).
4 Refiro-me ao encontro entre o poder espanhol (Hernán Cortés) e o asteca ( Montesuma) mediado pela indígena Malinche relatada em epístolas como as Cartas de Relación de Hernán Cortés, crónicas de López de Gómara e Bernal Díaz de Castillo, representada como ''traidora'' pela literatura mexicana no século XIX e hoje reivindicada pelas chicanas. Ver a obra de Sandra Messinger Cypess - La Malinche in Mexican Literature- Austin:University of Texas Press.
5 A tradutora Irlemar Chiampi adota esse termo, ''apesar do equivalente imperfeito em português, tendo-se em conta a sua acepção generalizada de ''negro'' , em nossa língua... a tradução justifica-se, em parte, como um resgate: o vocabulário foi introduzido no espanhol por empréstimo do português ''crioulo'' ('' o que é criado em casa, derivado de criadouro''), já no século XVI. Desde então as acepções variaram no correr do tempo; no século XVIII fixa-se como ''ser da terra'' de cada nação hispano-americana...hoje crioulo voltou ao sentido prístino de ''americano essencial''...LEZAMA LIMA, 1988, nota de rodapé da p. 134.
6 Caso de performances do MST ao invadir campos de transgênicos em 2001 ou na Argentina as performances denominadas ''los escraches'' e conduzidas pela organização H.I.J.O.S – ver em TAYLOR, D. ''El espectáculo de la memoria: trauma, performance y política'' em http://hemi.ps.tsoa.Nyu.edu/archive/text/hijos2.html