2, v.3A (im) possibilidade da tradução culturalAinda o pós-boom author indexsubject indexsearch form
Home Pagealphabetic event listing  





An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002

 

Maluco e a esfericidade das suas personagens

 

 

Ana Lúcia Alves Gomes

UFF

 

 

Maluco. La novela de los descubridores. Este é o instigante título dado por Napoleón Baccino Ponce de León ao seu romance. Não só instigante como dialógico, pois se desborda em vários significados. O primeiro deles seria o jogo paródico com as palavras Molucas e Maluco. O primeiro termo se remete a uma ilha coberta de especiarias que a expedição almejava chegar e também as riquezas e glórias que isto significava. E o segundo? Este o próprio narrador nos fala: ''¿sabían que en portugués significa loco? — ¿No creen que esa palabra tiene un sonido extraño, como mágico? — ¿Por qué le llamarán así? — ¿Adónde queda?'' (León, 1989, p. 121) e o mesmo explica:

¿Qué era para nosotros el Maluco? Sólo un nombre. Un nombre extranjero que cada uno adaptaba a sus propios sueños, aferrándose al sortilegio de su extraño sonido pero sin inquirir en su significado, como presintiendo que aquella palabra portuguesa no podía significar otra cosa que loco, porque en verdad eso éramos. (ibid., p. 14).

Maluco. La novela de los descubridores, que a partir de agora chamaremos apenas de Maluco, tem como um dos seus objetivos precípuos narrar as venturas e desventuras vividas pelo judeu convertido Juancillo Ponce, de profissão bufão, ao ingressar na expedição de circunavegação comandada pelo português Fernando de Magalhães. Essa primeira leitura é a mais simplista e a que desencadeia outra leitura que é desvelada no transcorrer da obra: qualquer acontecimento histórico terá uma interpretação diferente de acordo com quem lê o texto em que o mesmo estiver inserido e pelo prisma por que estiver sendo lido.

Na narrativa em questão, a perspectiva diferenciada é contada na voz do bufão, o que de antemão já é irônico, pois como ele mesmo expõe: ''Lo peor de esta profesión de nos que es la de ser fabricantes de ilusión y creadores de folganza, es que nadie nos toma en serio cuando hablamos en serio, ni se cuidan de nuestras prevenciones y avisos por atinados que ellos sean''. (León, 1989, p. 80) Assim especulando sobre a possibilidade de se obter as verdades através dos discursos oficiais ou de qualquer outro discurso, Juancillo nos leva para navegar pelo poder da palavra.

Sua narrativa se inicia no ano de 1519, um ano após ter sido firmado com D. Carlos e Dona Juana as capitulações para a viagem de circunavegação, explicando os motivos pelos quais ingressou nesta viagem. Sendo filho de uma mulher que se ''acostaba'' com muitos, não sabendo quem era seu pai, Juancillo decide averiguar. Foi assim que se dirigiu à casa da esposa do amante de sua mãe, pois não entendia como alguém podia ter duas esposas e fazer filhos com ambas e explica o porquê: ''por no asustar a mi madre me determiné ir con mis dudas donde la señora rubia'' (ibid., p. 153), sendo por este motivo entregue a um clérigo que era conselheiro e capelão deste que viria ser seu primeiro amo, o Conde Juan, que, ao morrer, deixa-o desamparado, sem ter onde comer ou dormir. Neste ínterim, Juancillo descobre através de um mendigo que se preparava uma expedição para o Maluco e decide tentar a sorte. A partir daí, somos transportados para o porto onde a frota aguardou, durante três meses, a chegada dos capitães que iriam comandar a expedição. Com sua saída, todos os desejos, ambições, sonhos, medos da tripulação vão sendo narrados de acordo com os acontecimentos históricos narrados pelas crônicas oficiais. Porém, a intenção neste relato é mostrar como cada um destes homens viveu esta experiência: desde o alto comando ao mais simples marinheiro.

Juancillo conta esta história já velho e de seu povoado natal, mas a permeia com recordações de sua infância, com recordações de seus companheiros de viagem e de pausas para argumentar com o rei. Nestes fragmentos as reações do rei ao ler a crônica são minuciosamente descritas, como se pudéssemos entender o que o rei sente ao lê-la, pois também somos arrebatados pelo mesmo desejo: o de que Juancillo não pare de narrar para que possamos junto com estes homens circunavegar pelo mundo.

Com respeito as personagens de ficção, afirma Antônio Cândido que o enredo existe através destas e que ambos, enredo e personagens, ligados, exprimem os intuitos do romance. E o que dizer então sobre o Maluco, romance em que as personagens emergem através das elocubrações e da visão de um personagem-narrador cuja profissão é a de bufão, ou seja, cuja principal atividade é a de criar e contar histórias? Como não poderia deixar de ser sua visão é poética, circular, satírica e mordaz ao nos apresentar as outras personagens ao que poderíamos atribuir ao nosso enredo as mesmas características.

Imprescindível, portanto, se torna que observemos a construção e a função das personagens neste romance, para que consigamos entender as vozes dialogizantes que ele trás à tona. Para fazermos isso recorremos aos críticos literários Forster e Oscar Tacca, pois as suas colocações são importantes para uma reflexão sobre as personagens no Maluco.

O primeiro deles em seu livro Aspectos do Romance dedica um dos seus capítulos para discutir o tema das personagens. Segundo este autor, estas podem ser classificadas em planas ou redondas. As primeiras corresponderiam às personagens construídas ao redor de uma única idéia ou qualidade, por isso tão facilmente reconhecíveis. Já as redondas são aquelas definidas por sua complexidade, apresentando várias qualidades ou tendências que surpreendem convincentemente ao leitor. Também se apresentam dinâmicas, multifacetadas, constituindo imagens totais e, ao mesmo tempo, individualizadas do ser humano.

No Maluco, podemos observar que a personagem de Juancillo Ponce apresenta uma visão multifacetada e convincente, podendo por isto ser classificada como redonda, segundo a classificação de Forester. Mas além de personagem ele também é o narrador da história, como já afirmamos, portanto ele é aquele que ''modula diferentes vozes através da sua, como num sutil jogo de espelhos'' (Tacca, 1978, p. 33) dando ao romance uma perspectiva pluralizante.

Assim sendo, por se tratar de um romance metahistoriográfico e metaficcional, emergem no texto as personagens históricas e fictícias moduladas através da voz de Juancillo, que assume o relato na primeira pessoa. Porém, se isso pode empobrecer a perspectiva de determinados romances, pela visão ser unilateral, no Maluco isto não acontece. Pelo contrário, assim como no romance picaresco que, para Oscar Tacca, possui grande parte do seu encanto por estar sendo narrado desde um único ponto de vista inferior e restringido, porém absolutamente autêntico e legítimo, que vê o mundo através da fome, ''através de uma consciência que não chega a compreender, a princípio, e que crê compreender depois, mas só em termos de gratificação, desprezo, crueldade; enfim, o mundo alegre e triste, ao mesmo tempo, dos inocentes humilhados'' (ibid., p. 81) o mesmo ocorre no Maluco. Porém, há uma diferença: neste a narrativa é conduzida desde um ponto de vista inferior, mas não restringido. Ou seja, no Maluco a visão do narrador é caleidoscópica e apesar do estilo ser parecido ao da picaresca, na voz de Juancillo também são parodiados vários personagens da história real e o próprio ato da escritura é comentado, o que não ocorre no romance picaresco.

Ainda segundo Oscar Tacca, as personagens:

converteram-se, paulatinamente nos canais fundamentais do caudal dramático. Passaram a ser, mais do que o próprio tema do romance, fontes de informação, jogo de espelhos, postos de observação. Do narrador, do seu manejo dos estilos (direto, indireto, indireto livre) depende a nossa relação de leitores com os personagens. A sua possibilidade é múltipla: pode contar coisas que não lhe dizem respeito, introduzir personagens que relatam e introduzem personagens... – e o milagre épico não é mais do que essa polifonia de vozes que escutamos, umas através das outras. (ibid., p. 123)

E é assim que as personagens de Fernando de Magalhães, Cristobal de Haro, Ruy Faleiro, Juan de Cartagena, Gaspar de Quesada, Luis de Mendoza, entre tantos outros ilustres que participaram ou contribuíram para que a expedição ocorresse, vem à tona no texto: desde uma perspectiva plural, por vezes apresentada pela voz de Juancillo, por vezes pelo fluxo da consciência, por vezes através do relato que outros contaram a Juancillo.

Desta forma a personagem de Fernando de Magalhães que é descrita no início da narrativa pelos seguintes adjetivos: impenetrável, solitário, taciturno e de aspecto sobrenatural e inumano devido ao uso da armadura, no final da narrativa, após tornar-se amigo de Juancillo, despindo-se desta, é apresentado como frágil, pequeno, sensível. Conforme se aproxime ou se distancie das personagens o narrador imprime-lhes um caráter de valor. Já o rei que ao princípio da narrativa é tratado por suntuosa, Mirífica Majestad, ao final da mesma chega a ser tuteado, pois conforme avança a narrativa, avança o grau de ''intimidade'' chegando a ponto de ocorrer uma inversão dos papéis sociais entre ambos. Assim sendo o rei pode assumir a função de cozinheiro que ao decretar o ''prato do dia'' eliminaria com o problema da fome em seu reinado (já que todos – independentemente de sua posição social seriam obrigados a comer o que lhes foi determinado) e o bufão pode se transformar em Conde no Maluco.

A voz do narrador Juancillo é múltipla, ele pode contar coisas que não lhe dizem respeito. É assim que ficamos sabendo da estória de Francisco que é narrada por Blas, que se tornou amigo de infância deste ao protegê-lo de uns meninos que insultavam a sua mãe porque esta possuía os seios mais desejáveis e comentados do povoado. Após defendê-lo, Blas começa a freqüentar a casa de Francisco, porém com o intuito de ver os irresistíveis seios de sua mãe. Quando da expedição, para ter motivo para continuar freqüentando a casa de Francisco, convida-o para ir com ele falando-lhe das riquezas que este poderia obter podendo assim, tirar sua mãe daquele povoado. Por isso, quando este se atira ao mar, pois acredita estar vendo durante um intenso nevoeiro a uma embarcação cheia de riquezas, Blas sente-se terrivelmente culpado: tanto pela sua morte como também por haver desejado avidamente a mãe de seu amigo.

É também através do contar de outras personagens, durante a espera dos comandantes para que a viagem a Molucas se iniciasse, que ficamos conhecendo a história do cartógrafo Ruy Faleiro. Foi ele quem projetou erroneamente os cálculos sobre o tempo que levaria a expedição e é introduzido, no texto, através de uma história contada pelo bacharel Morales à Juancillo, porém o primeiro a soube através de uma prostituta, que ouviu falar de um alto funcionário da corte, que os seus cálculos realmente só podiam estar equivocados já que este havia ficado louco desde a morte de sua filha aos quatro anos de idade. Desta forma, o narrador Introduz dados históricos, porém desconstruindo seu caráter de autenticidade ao dizer que ouviu dizer, ou seja, atribuindo várias autorias ao que está sendo dito, Juancillo desconstrói a crença na possibilidade de o cronista funcionar como agente legitimador daquilo que está sendo narrado.

Ao falar dos pontos de ligação e das especificidades entre os campos da literatura e da história, Heloísa Costa Milton atesta que no ''discurso histórico o 'realismo' de sua forma não passa de um artifício – o efeito do real – que esconde os significados da ilusão de que é possível a supremacia dos referentes''. (Milton, 1992, p. 45) e que ambos os discursos: o historiográfico e o ficcional passam pela construção de sentidos, ''empreendida por uma figura central em todo o processo: o narrador''. (ibid.)

No Maluco, quem empreende esta tarefa é Juancillo Ponce que subvertendo toda a autoridade histórica e ficcional – através de seu discurso dialogizante e do riso carnavalesco –, na terminologia de Bakthin, não pretende dizer que seu texto é mentiroso e sim trazer à tona uma verdade possível: a da sua interpretação dos fatos.

Por isso, apesar de evidenciar o caráter de construção de seu texto, expondo explicitamente as regras que o regem, ou seja, comentando o ato de sua escritura, o narrador do Maluco consegue nos persuadir através ''da força comunicativa de sua fantasia, da habilidade de sua magia'' (ibid., p. 47) derivando daí, segundo Mario Vargas Llosa, supracitado no ensaio da professora Heloísa C. Milton, a verdade de um romance.

E a verdade do Maluco reside, exatamente, nesta grande capacidade que possui o seu narrador de imprimir ao seu texto o caráter de verossimilitude, pois fala sem ser omissivo. Como é sobre suas sensações e da de seus companheiros de viagem – durante o transcorrer desta e até mesmo antes do seu início – que Juancillo quer falar ao rei, ele expõe e deixa fluir em seu relato os medos, as alegrias, a revolta que esses homens sentiram.

 

BIBLIOGRAFIA

BAKHTIN, M.. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1999.

CANDIDO, A.. A personagem no romance. In: A personagem de ficção. 9ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 1970. P. 9-49.

FERRO, R. Maluco. La novela de los descubridores de Napoleón Baccino. Una invención literaria de la historia. Buenos Aires: Coghlan, 1999.

FORSTER, E. M. Aspectos do Romance. Trad. Maria Helena Martins. Porto Alegre: Globo, 1974.

MILTON COSTA, H. Alguns aspectos de uma relação solidária: a literatura de ficção e a história. In: Revista de la APEESP, n.4. São Paulo, 1992.

PONCE DE LEÓN, N. Maluco. La novela de los descubridores. La Habana: Casa de las Américas, 1994.

TACCA, O. Las voces de la novela. 3ª. ed. Madrid: Gredos, 1985.