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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002

 

Ainda o pós-boom

 

 

André Luiz Gonçalves Trouche

Instituto de Letras - UFF

 

 

Há cerca de vinte anos o projeto criador hispano-americano começava a abandonar determinadas atitudes escriturais, retomava e/ou substituía determinados procedimentos retóricos, apresentando novas interfaces e anunciando – na opinião de alguns - a chegada a um novo patamar. A enorme dificuldade de encontrar denominadores comuns válidos para o conjunto de obras que vinham sendo publicadas, praticamente inviabilizou que fosse forjado um conceito que representasse e indicasse esta fase do processo literário. Assim, o termo pós-boom – parecendo limitar-se a indicar um momento em que não mais vigia o fenômeno do ''boom'', transformou-se num verdadeiro leito comum por onde vêm se encaminhando a maior parte do discurso crítico.

A presente comunicação - fruto de um projeto de pesquisa que vem se desenvolvendo há dois anos no interior do GT da ANPOLL – Relações Literárias Interamericanas e na UFF - pretende retomar a questão do pós-boom, objetivando maior rigor conceitual na construção deste conceito, e buscando estabelecer limites e abrangência na consideração deste fenômeno.

Esta imprecisão conceitual alem de dificultar uma avaliação de conjunto da produção narrativa na América Hispânica, revela grande ingenuidade na avaliação do campo intelectual e do projeto criador das últimas décadas do Século XX, tão avesso a qualquer proposta poética coletiva e, principalmente, não permite uma delimitação temporal do fenômeno. Ou seja, podemos considerar que hoje, prevalece ainda o mesmo projeto que veio dando forma à produção narrativa hispano-americana desde fins dos anos 70?

Esses os dois eixos entre os quais este trabalho pretende oscilar. De um lado, revisitar as principais linhas ou propostas de análise que se debruçaram sobre a produção narrativa nos anos 70/80, e de outro, promover uma ''ojeada de conjunto'' sobre a narrativa produzida pelas novas gerações de escritores, buscando estabelecer e/ou levantar identidades e aproximações em nível de procedimentos retóricos e concepções poéticas.

Antes de qualquer coisa, porém, penso ser indispensável uma rápida referência inicial à perspectiva com que encaramos os termos boom e pós-boom, para que possamos deixar bem claro o ponto de partida conceitual de nossa investigação.

Retomando o que afirmamos no trabalho a ser publicado pelo GT da ANPOLL a que nos referimos, embora os termos "boom" e "pós-boom" enquanto indicadores de um fenômeno de recepção e, posteriormente por extensão metonímica, de fases históricas do processo literário hispano-americano, em princípio, estejam aparentemente muito mais próximos da pesquisa no campo da sociologia (recepção) e da história literária — penso ser imperioso tratá-los no âmbito específico das questões identitárias e literárias.

Neste sentido, é fundamental sempre articular o estudo e a reflexão sobre sua trajetória no discurso crítico hispano-americano ao universo das narrativas e das construções identitárias que os conformam.

Assim os termos "boom" e consequentemente o "pós-boom" serão considerados, como conceitos teóricos forjados pela teoria econômica para analisar a performance de venda e marketing de um determinado produto, em modernas sociedades de consumo. A partir deste patamar, tomando este conceito por empréstimo, é que "armamos nosso olhar", em busca de, se não responder, pelo menos equacionar, algumas indagações que permanecem desafiando o discurso crítico latino-americano: afinal, de que se fala quando falamos em "boom" e "pós-boom" ? De um termo meramente indicador de um fenômeno de recepção da literatura hispano-americana? De um termo cunhado pelo discurso crítico europeu/norte-americano, a (re)descobrir a América? De um termo eivado de etnocentrismo, que indicia apenas um fenômeno editorial, manipulado pelas grandes editoras multinacionais de então? De um termo que aponta o surgimento de uma rica floração literária, sem precedentes no processo narrativo latino-americano? De um conceito teórico revelador da emergência e da maturidade do processo literário latino-americano? Que autores devem ser elencados como formadores do "boom" e por que? Pode-se pensar em alguma proposta poética comum a este grupo de autores e obras? Em que momento se dá a explosão expressa pelo termo "boom" e o que determina a passagem para uma fase de "pós-boom"? Como se expressam no "boom" e no "pós-boom" as grandes questões identitárias que sustentam a produção narrativa latino-americana no século XX? E, principalmente, diante de tal quadro de perplexidades, qual a validade crítico-conceitual destes conceitos hoje?

Apesar desta multiplicidade de possibilidades de consideração do fenômeno, a análise dos principais ensaios que buscam dar conta do conceito de boom, aponta claramente no sentido de entendê-lo como a culminância de um longo processo de afirmação do projeto criador hispano-americano, cristalizado pela denominação de ''Nova Narrativa Hispano-Americana''. E preciso, pois, pensar o boom como um conceito. Um conceito que, tomado de empréstimo à teoria econômica, inicialmente foi aplicado à literatura latino-americana, no intuito de dar conta de um súbito incremento de cifras no movimento editorial. Apesar da violenta reação que sempre provocou, este termo – que então apenas designava um fenômeno de comercialização e recepção —, por seu uso extremamente recorrente e indiscriminado, ganhou uma nova dimensão, através de um processo de metonímico de extensão de significado, passando a indicar um período, uma proposta poética e uma fase histórica do processo narrativo: o período que até então era designado pelo composto ''Nova Narrativa Hispano-Americana''. É ao longo desta trajetória, pois, que o significado deste termo vai se constituindo conceitualmente. Neste sentido, é importante voltar agora aos questionamentos que interpusemos e propor conclusivamente a absoluta validade de uma retomada crítico/conceitual desta questão, hoje, bem como propor a consideração do termo boom como um conceito – construído ao longo da trajetória de sua utilização pelo discurso crítico, nos últimos 30/40 anos – que aponta para importantes questões identitárias que sustentam o campo intelectual e o projeto criador latino-americano.

Ora, se concordamos em que o boom se constitui no momento de culminância (em todos os sentidos) da sedimentação do paradigma da Nova Narrativa, só se justificaria a indicação de uma nova fase do processo narrativo – uma fase denominada como ''pós-boom'', se esta nova fase veiculasse mudanças concretas a ponto de romper o paradigma original.

Que transformações tão significativas foram estas que, legitimariam o anúncio de uma nova fase, um novo projeto criador?

Na tentativa de responder a esta questão o discurso crítico hispano-americano vem se dividindo em duas vertentes antagônicas, a meu ver ambas redutoras e incapazes de abranger a abertura do projeto criador. Alguns, tomando por base autores como Antonio Skarmeta, Isabel Allende, Tomás Eloy Martinez, Mempo Giardinelli e outros propõem a volta à narratividade, o abandono do experimentalismo e a retomada do compromisso social como transformações que romperiam radicalmente com o paradigma do boom. Outros, no extremo oposto, tomando a produção de narradores como Diamela Eltit, Roa Bastos, Arturo Arias etc. tentam construir um jogo de equações onde a narrativa de corte modernista ( no sentido anglo-saxão amplo deste termo) estaria para a Nova Narrativa (a narrativa do Boom) assim como a experiência pós-moderna estaria para o pós-boom.

De um lado, na procura indiscriminada de equivalências entre o chamado ''pós-boom'' e a perspectiva pós-moderna, aliam-se ensaios como os de Raymond Willians, The postmodern novel in Latin America, para quem, por exemplo:

No caso do romance da América Latina, a ''grande narrativa'' foi a narrativa modernista de Fuentes, García Márquez, Cortázar e Vargas Llosa nos anos 60; o oposto desta ''grande narrativa'' é a obra de Eltit, Pacheco, Sarduy e outros escritores pós-modernos (...)estes novos discursos, esta nova feição da pós-modernidade, descendem em linha direta da escritura modernista latino-americana - da narrativa de Borges, Astúrias, Carpentier, García Márquez e outros. Eles são também práticas culturais que representam uma ruptura fundamental com o passado recente dos anos 40, 50 e 60 (WILIANS, 1996, p.)1

Do outro lado, no outro extremo talvez, encontramos vozes francamente ingênuas como a de Juan Manuel Marco, que em De García Márquez al postboom perora ''denunciando'' os autores do ''boom'', na busca de ressaltar uma pretensa ''correção ideológica'' do ''pós-boom'':

Não apenas os autores típicos do ''boom'' e em última instância a serviço do estabelecido como Borges, Fuentes e Vargas Llosa, assim como outros mais de transição e progressistas como Carpentier, Cortázar e García Márquez, propagaram a imagem narcisista de uma escritura luxuosa, cosmopolita e elaborada, totalmente contrária à suposta pobreza prosaica da tradição regionalista, que é capaz de captar com ''maior sutileza'' o tecido labiríntico do inconsciente coletivo, a trama inextricável da vida, em que jaz o minotauro da realidade (MARCOS, 1986, p. 09).

Longe deste patrulhamento ingênuo e redutor, porém enveredando pelo mesmo viés de identificar a narrativa do pós-boom com o abandono do experimentalismo, com uma reação contra o ''excessivo elitismo e uma atitude inamistosa em relação ao leitor'' (SHAW, 1995. p.11) e, conseqüentemente, com o ressurgimento de contadores de histórias mais próximos ao verismo tradicional e a denuncia social e política, Donald Shaw, ainda que postulando uma atitude de cautela nesta aproximação, chega a tomar de empréstimo o arquiconsagrado termo neo-realismo, empregando-o mais de uma vez, num ensaio em que busca apresentar um balanço da narrativa das últimas décadas.

Embora haja muito que relativizar nestas análises, elas apontam para fenômenos concretos e inegáveis. Ainda que a produção do boom não autorize, nem reconheça nenhum programa poético coletivo, organicamente definido – e estamos longe disto, a partir de meados dos anos 70, o processo de afirmação da ''Nova Narrativa'' está definitivamente sedimentado e o projeto criador começa a buscar novas propostas e a ter que encarar novos desafios.

O que parece realmente comprometedor nestas tentativas de reflexão sobre o conjunto da produção literária na América Hispânica, nas últimas décadas, é o caráter exclusivista destes estudos, que se perdem exatamente por pretender compor um quadro de características hegemônicas, tão ao gosto da velha historiografia literária, fundada exclusivamente na ótica dos estilos de época e dos antigos conceitos de movimento literário, como se ainda fosse possível nos anos 80 e 90 pensar em grupos articulados em torno a propostas programáticas coletivas.

Além disso, e principalmente, não se pode deixar de levar em conta a enorme abertura no próprio conceito de literatura e de ficção que caracteriza as últimas décadas. As transformações que o truculento novo contexto ditatorial impôs ao campo intelectual e ao projeto criador latino-americano além das mudanças nas concepções poéticas e nos procedimentos retóricos já referidos, serão incrementadas à potência máxima, a partir dos anos 90 com a voga dos estudos culturais. Sem lugar a duvida a emergência e a sedimentação dos estudos culturais, com os questionamentos que interpôs em relação à noção de corpus e cânone literário promoveram uma transformação e uma abertura radicais na concepção de narrativa de ficção e, até mesmo de obra literária desconstruindo, e ampliando as fronteiras do literário e forçando a criação de novas convenções de leitura.

A emergência também da produção de novos atores literários como as mulheres, negros, exilados/imigrantes e subalternos em geral, que passam a tomar a palavra e a ocupar um novo espaço no campo intelectual, e no projeto criador, não só determinou essa enorme relativização das fronteiras do literário, como permitiu o estabelecimento de formas literárias alternativas como o testemunho, por exemplo, que ao ser legitimado como forma literária ideologicamente conformada e comprometida com grupos sociais até então condenados ao silêncio, e também como forma literária especialmente capaz de dizer a sua época, e promover uma intervenção transgressora, patrocinou uma série de questionamentos éticos e estéticos, fundamentais para a compreensão do processo literário latino-americano contemporâneo.

Não se pode acusar o discurso crítico latino-americano de não reconhecer a força da emergência, desta forma narrativa. Muito pelo contrário, desde a instituição da categoria "Testemunho", pela comissão de premiação da Casa de las Américas, em 1970, considerada por todos como marco de legitimação crítica desta forma literária, os testemunhos e as questões teórico-conceituais que suscitam, vêm ocupando grande parte do pensamento crítico latino-americano, no afã de definir seus contornos e entornos. Também a literatura feminina, e a produção de afro-americanos, exilados e minorias étnicas, a partir dos 80, e principalmente, nos anos 90 ganham grande visibilidade, e forçam o esgarçamento das convenções e pactos narrativos que garantiam o reconhecimento do objeto estético. Novos parâmetros de critica surgem então, buscando dar conta desta nova ordem.

A esta nova ordem, em que a própria noção de literatura e de narrativa literária são encaradas de forma tão relativizada, há que se acrescentar o trabalho das gerações intermediárias (Juan José Saer, Piglia, Arturo Arias, Mempo Giardinelli etc.), a produção das novíssimas gerações de escritores – Rosario Ferrer, Hector Tizon, Helena Poniatowska, Alberto Fuguet, entre muitos outros e a continuada produção dos grandes ícones da narrativa do boom, como Garcia Marquez, Vargas Llosa, Carlos Fuentes – só para citar os mais consensualmente aceitos como narradores típicos do boom - que se mantém ativos, publicando narrativas, e servindo de referência para o projeto criador.

A completar a composição da cena literária hoje é fundamental que se leve em conta ainda, as novas e sucessivas perplexidades que o contexto pós-ditatorial e fini-secular impuseram ao campo intelectual e ao projeto criador hispano-americano.

Como penso estar evidente, um contexto como este é irredutível a uma crítica que busque estudá-lo com os mesmos instrumentos e a partir dos mesmos valores que sempre garantiram e legitimaram o estudo das sucessivas sincronias literárias, e exige que busquemos novas formas de pensar o conjunto da produção literária americana.

O certo é, a meu ver, que boom e pós-boom são hoje conceitos importantes, sim. Mas de importância arqueológica, e que dizem respeito a uma concepção de literatura e a um contexto literário que já não vige mais. Referem-se a uma época em que Macondo era uma poética metáfora da América, e não como significa hoje em dia para as novas gerações, simplesmente uma cadeia sonora, apenas capaz de suscitar o nome de um hambúrguer, ou o da maior multinacional de fast food, como anunciou outro dia, Alberto Fuguet.

 

BIBLIOGRAFIA

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1 Em todas as citações apresentamos uma tradução livre do original indicado