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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002

 

Ecos da reconquista na conquista do México

 

 

Andréa Silva Ponte

Universidade de São Paulo

 

 

A chegada dos espanhóis ao México marca um novo início para a construção de sentidos da América. O primeiro movimento nesta direção ocorre com a chegada de Colombo. O discurso deste primeiro momento preocupa-se em esmiuçar a natureza, o exótico e até mesmo o monstruoso e deixa de lado o homem, que ocupará o lugar de ator coadjuvante nesse cenário.

O caso de Cortés é diferente. Sua expedição também se depara com a mesma natureza exuberante de Colombo, no entanto, esta já havia sido discursivamente incorporada, ou seja, já havia um discurso sobre a América, que já havia sido vista, tomada e dominada. O encontro com as civilizações mesoamericanas exigirá um discurso novo, o de Colombo não é mais suficiente e a Europa, uma vez mais, terá que digerir o desconhecido e produzir sentidos para ele. O encontro com toda uma civilização de infiéis trará à tona a memória discursiva de antigas batalhas. O herói medieval, a cruzada religiosa e a superioridade espanhola voltarão por meio de formações discursivas que já haviam participado de outros jogos de produção de sentidos e que aqui ganharão nova vida — produzirão diferentes efeitos de sentido — graças à relação com um novo contexto, uma nova exterioridade.

A memória discursiva ou memória da língua deve ser entendida na perspectiva da Análise do Discurso,

(...) a noção de memória discursiva nada tem a ver com a noção de memória tal como concebida pela Psicologia ou pela Psicolingüística. (...) memória discursiva diz respeito à existência histórica do enunciado no interior de práticas discursivas reguladas por aparelhos ideológicos: como certos enunciados estão na origem de atos novos, como são retomados ou transformados, qual a força da sua permanência. (BRANDÃO, 1997, p.128)

Para observar a ação dessa memória discursiva, é importante considerar a noção de interdiscurso. Pelo conceito de interdiscurso existe sempre um discurso anterior, que é exterior ao sujeito que enuncia e que sustenta o que é dizível, isto significa que as palavras chegam a nós repletas de sentidos diferentes, há um já-dito que regula a possibilidade de todo dizer. Para que as palavras tenham sentido em um enunciado específico, é preciso que elas já façam sentido. O interdiscurso é, então, esse conjunto de formulações feitas e esquecidas que, de certa forma, determina o que dizemos: retomamos em nossas palavras o que pertence ao já-dito — embora ignoremos sua existência — , repetimos discursos que também foram repetidos.

No entanto, não estamos somente condenados a repetir o já-dito, as palavras adquirem sentidos de acordo com a posição ideológica de quem as usa, e isto remete a uma conjuntura ideológica específica que determina o que pode ou deve ser dito. É recorrendo ao já-dito que o sujeito tem a possibilidade de significar; a confluência de interdiscurso, posição ideológica do sujeito que enuncia e conjuntura sócio-histórica-ideológica produzirá os sentidos inerentes às formações discursivas.

Ao analisar as Crônicas da conquista do México, podemos observar que as bases da construção de sentidos para o Novo Mundo se fundam sobre a memória da Reconquista. O interdiscurso que observamos nos relatos da conquista nos mostra que, apesar de o discurso ser outro (há novas formulações de sentido para um novo objeto: a América), a postura imperialista espanhola continua a mesma, ideologicamente pouco ou nada mudou desde a cruzada contra os mouros.

A Reconquista foi um fato determinante na formação do caráter espanhol, ela modelou a estrutura do Estado e impregnou seu espírito e seus costumes. Sua lentidão determina sua importância, pois se os infiéis tivessem sido expulsos rapidamente da Península Ibérica, a Espanha provavelmente seria outra.

Essa lentidão constrói um sentimento de superioridade absoluta para a Espanha. Nos primeiros séculos da invasão árabe, os reinos cristãos lutam de maneira independente, muitas vezes entre si, e não há um sentimento coletivo de união contra um inimigo. Em 1212, esses reinos se unem pela primeira vez e os progressos da Reconquista começam a ser visíveis. Passa a existir um sentimento prévio de vitória. Durante os dois séculos seguintes, os espanhóis lutam, mas já saboreiam a derrota do inimigo.

Podemos afirmar que de 711 a 1492 a sociedade espanhola é uma sociedade em combate permanente; uma vez terminada a Reconquista, tal sociedade será invadida por um enorme vazio: boa parte dela não tem razão de ser fora do combate. A conquista da América será a continuação natural da Reconquista medieval e seus ideais serão reproduzidos — e adaptados — no Novo Mundo.

O sentimento de superioridade oriundo da conjuntura ideológica da Reconquista e da auto-identificação com o herói medieval caracteriza o conquistador espanhol e deixa marcas no seu discurso,

(...) también les preguntaron qué aquellas lombardas1 (...) y respondieron que con unas piedras que metíamos dentro dellas matábamos a quien queríamos, y que los caballos, que corrían como venados, y que alcanzábamos con ellos a quien les mandábamos. (DÍAZ DEL CASTILLO, 1998, p.142)

Y como yo vi el gran daño que se comenzaba a revolver y cómo la tierra se levantaba a causa del dicho Narváez, parescióme que con ir yo donde él estaba se apaciguaría mucho porque viéndome los indios presente no se osarían levantar (...). (CORTÉS, 1994, p.256)

Além da sensação de poder trazida de conquistas anteriores, o sentimento de superioridade espanhol se fundava sobre sua noção de civilização. De certo modo, tal noção se expressa por meio do conhecimento espanhol e de seu poder tecnológico, como é o caso das armas e do domínio da pólvora e da navegação. Mas na Espanha do século XVI, a noção de civilização está intimamente ligada à questão religiosa: só é civilizado o povo que segue os desígnios do Deus verdadeiro — e o espanhol já havia se afirmado sobre a sangre limpia e sobre o orgulho do cristiano viejo.

Antes do século VIII, os religiosos, apesar de sua importância na sociedade, não podiam ser soldados nos reinos da Península. Após 711, ocorre a militarização da Igreja como resposta à tradição de guerra santa trazida pelo Islã. Assim, se estabelece uma forte identificação entre cruz e espada, guerra e religião. Ao longo da Reconquista, a Igreja ganha poder, o clero passa a formatar a base ideológica da sociedade: determinará a direção espiritual e, em boa medida, material, do Estado.

Aos poucos, surgem o ideal de unidade de fé e, conseqüentemente, o orgulho de ser cristiano viejo. Os nahuas e demais povos americanos, apesar de todo o seu avanço, não se encaixavam nesses moldes e eram, convenientemente, seres inferiores. Essa idéia é reforçada pelo tom quase didático dos enunciados dirigidos aos índios,

(...) se les dijo (...) todas las cosas tocantes a nuestra fe, y cómo éramos vasallos del emperador don Carlos e que nos envió para quitar que no haya más sacrificios de hombres, ni se robasen unos a otros; y se les declaró muchas cosas que se les convenía decir. (DÍAZ DEL CASTILLO, 1998, p.140)

E pela crença espanhola de ocupar um lugar privilegiado aos olhos de Deus,

Mas como Dios haya tenido siempre cuidado de encaminar las reales cosas de Vuestra Sacra Majestad desde su niñez y como yo y los de mi compañía íbamos en su real servicio, nos mostró otro camino aunque algo agro no tan peligroso como aquel por donde nos quería llevar, y fue de esta manera.(CORTÉS, 1994, p.198)

Ainda no tocante à religião, a reprodução do discurso do outro também se verá impregnada de concepções cristãs. É o que ocorre com o que teria dito Montezuma em seu primeiro encontro com o capitão Cortés:

Muchos días ha que por nuestras escripturas tenemos de nuestros antepasados noticia que yo ni todos los que en esta tierra habitamos no somos naturales della, sino estranjeros y venidos a ellas de partes muy estrañas. Y tenemos ansimesmo que a estas partes trajo nuestra generación un señor cuyos vasallos todos eran, el cual se volvió a la naturaleza. (...) Y siempre hemos tenido que los que dél descendiesen habían de venir a sojuzgar esta tierra y a nosotros como a sus vasallos, y segúnd de la parte que vos decís que venís, que es a do sale el sol, y las cosas que decís dese grand señor o rey que acá os envió, creemos y tenemos por cierto él ser nuestro señor natural, en especial que nos decís que él ha muchos días que tenía noticia de nosotros. (CORTÉS 1994: 210, 211)

No que se refere ao conteúdo, devemos considerar que, efetivamente, há nas supostas palavras de Montezuma inúmeras referências à história e à mitologia nahua2. No entanto, devemos considerar também que esta é uma fala irrecuperável, e que nunca saberemos ao certo o que disseram Cortés e Montezuma em seu primeiro encontro e nem se de fato disseram algo. Além disso, ao analisar o discurso, devemos nos preocupar mais com os efeitos que ele provoca do que com sua veracidade,

(...) um fato pode não ter acontecido, contrariamente às alegações de um cronista. Mas o fato de ele ter podido afirmá-lo, de ter podido contar com a sua aceitação pelo público contemporâneo, é pelo menos tão revelador quanto a simples ocorrência de um evento, a qual, finalmente, deve-se ao acaso. A recepção dos enunciados é mais reveladora para a história das ideologias do que sua produção (...). (TODOROV, 1999: 64)

Portanto, visto que o objetivo desta análise é o discurso, seria mais adequado evitar a dúvida: não importa se este enunciado é verdadeiro ou inventado por Cortés.

Observaremos aqui o discurso produzido por Cortés e o tom bíblico que ele lhe dá. Ao usar palavras como escriptura, Cortés faz uma paráfrase da Bíblia e atribui aspectos ocidentais a um discurso que não se refere ao Ocidente e que nem sabe o que ele significa (aqui me refiro ao sentido político e não geográfico de Ocidente). Não seria exagerado afirmar que Cortés se apodera dos mitos nahuas e lhes dá um novo significado.

Esta reprodução do que disse Montezuma é ilustrativa da relação entre conquistador e conquistado. O dizer de Montezuma (o conquistado) está predeterminado pela posição de Cortés (o conquistador). Neste discurso (o da Conquista), Montezuma não pode ocupar as mesmas posições discursivas que ocupa Cortés. É a partir da posição do conquistador que se projetará a posição do conquistado (ORLANDI, 1990). Por meio do discurso, os espanhóis começaram a apagar os sentidos do mundo indígena e de sua religião, para substituí-los por sentidos ocidentais e conseqüentemente cristãos.

Da mesma forma que no fragmento anterior a palavra escriptura resgata sentidos bíblicos, em outros momentos do discurso da conquista o léxico é também muito expressivo. Como já foi mencionado, o encontro com povos avançados, exigirá uma nova elaboração para a América, será necessário assimilar o outro. O conquistador estabelecerá essa alteridade com base em sua última experiência: a Reconquista. Dessa forma, serão freqüentes as alusões à África e aos mouros, e o léxico, uma vez mais, será sua expressão mais reveladora.

La primera ciudad destas terná tres mil vecinos, y la segunda más de seis mil, y la tercera otra cuatro o cinco mil vecinos, y en todas muy buenos edificios de casas y torres, en especial las casas de los señores y personas principales y de las de sus mezquitas u oratorios donde ellos tienen sus ídolos. (CORTÉS, 1994, p.56)

Pues hecho esto, mandó Cortés llamar a todos los caciques de la serranía de los pueblos, nuestros confederados y rebelados al gran Montezuma, y les dijo cómo habían de servir a los que quedaran en la Villa Rica e acabar de hacer la iglesia y fortaleza y casas (...) (DÍAZ DEL CASTILLO 1998: 136)

Observemos a escolha de algumas palavras desses fragmentos. No primeiro enunciado, Cortés, ao descrever a cidade, usa a palavra mezquita. Por que mezquita e não iglesia, como faz Bernal Díaz? Mezquita não é uma palavra de origem espanhola e sim árabe. Já traz em si a memória do outro, do mouro; mas Cortés sabe que aquela não era uma cidade árabe. O uso de mezquita está relacionado aos infiéis, àqueles cuja religião não é verdadeira e que conseqüentemente devem ser esclarecidos — e, por que não, conquistados? Por meio dessa escolha, Cortés estabelece a alteridade, visto que o único outro que conhece até então é o árabe (para ele já existe um discurso): ele, como cristão, considera diferente o que pertence ao mundo islâmico. Além disso, nada relativo à religião dos infiéis deve ser nomeado em sua língua. Mais tarde, observadores do mundo asteca tentarão estabelecer analogias entre os deuses astecas e os romanos como o fez Bernardino de Sahagún mas evitarão uma comparação direta com o Deus verdadeiro, neste caso o seu Deus, por considerá-la uma heresia. Qualquer analogia simples e direta entre as duas religiões (a ''verdadeira'' e a mexica) será considerada obra do demônio. Já Bernal Díaz, que também usa mezquita em muitos momentos da sua descrição, no último fragmento não pode fazê-lo, pois não se refere a um templo pagão e sim a um templo erguido pelos espanhóis, já no seu intuito de converter as almas que ali se encontravam.

No mesmo fragmento, Bernal Díaz usa cacique em lugar de rei. Esta escolha mostra um processo de assimilação (ou melhor, apropriação) de inúmeras palavras das línguas indígenas, que começou com a chegada de Colombo. A imposição da língua espanhola foi usada como instrumento de poder na colonização da América, porém tal imposição teve conseqüências que hoje podem ser observadas na língua. A língua espanhola era inadequada ao mundo geocultural americano e teve que adaptar-se a sua nova casa, o que explica a incorporação de palavras das línguas indígenas, mais adequadas ao contexto. No entanto, essas palavras já não são as mesmas. Durante a colonização perderam, em parte, sua memória sócio-cultural e ganharam novos significados, atribuídos por uma memória sócio-cultural diferente: a Ocidental. Os espanhóis tomam a língua indígena e a devolvem com novos sentidos, no entanto, não devemos deixar de observar que este movimento também ocorreu no sentido contrário, muitas palavras do espanhol também ganharam novos significados no Novo Mundo. A língua, afirma Guimarães (1996, p.32), ''(...) é um sistema de regularidades que esquece e guarda as enunciações por que passa.'' Uma forma na língua, afirma ele,

(...) não é nem a soma de seus diversos passados, nem a deriva de um étimo, nem algo em si: senão uma latência à espera do acontecimento enunciativo, onde o presente e o interdiscurso a fazem significar. (idem)

Significados e sentidos: palavras que se repetem exaustivamente em estudos lingüísticos e discursivos, talvez porque, como afirma Eni Orlandi (1999, p.32), as palavras ''significam pela história e pela língua, o que é dito em outro lugar também significa em nossas palavras''. Isto nos permite afirmar que todo discurso se relaciona com outros discursos e assim estabelece uma história.

A Reconquista funda um modelo para a conquista da América, de seus sentidos nascem os conquistadores do Novo Mundo, que trarão o ímpeto cristão; a energia que lhes restava após 700 anos de luta contra o infiel. Estabelecem sua relação com o outro baseada no ideal de superioridade e na unidade religiosa. Suas vitórias demonstram a força do seu Deus, suas armas criam a ilusão de invencibilidade, sua língua se transforma em língua de prestígio, destinada a la gente principal; e, mais tarde, sua tradição cultural e literária será amplamente difundida na colônia que cultiva os temas do universo greco-latino. Assim nasce o discurso da conquista do México, carregado de sentidos oriundos da Idade Média que, conseqüentemente, derivarão em práticas igualmente medievais.

A tendência geral nos leva a pensar que o impacto da conquista e da colonização é um fato passado, isolado, que não guarda nenhuma relação com o presente, uma vez que vivemos num século cujo discurso predominante prega um mundo de pseudo-igualdade, onde toda e qualquer diferença pode — e deve — ser diluída pela dita globalização. No entanto, devemos considerar que ''(...) os sentidos dos discursos não se fecham em momentos específicos da história; eles produzem reverberações em outros momentos e contextos (...)'' (GRIGOLETTO, 2002, p.18). O discurso da conquista do México funda um modelo para o estabelecimento da sua história e dos seus sentidos, assim como, em outro momento, o discurso da Reconquista fincou as primeiras estacas para a construção de sentidos do Novo Mundo.

 

BIBLIOGRAFIA

BRANDÃO, H. N. Subjetividade, Argumentação, Polifonia. A propaganda da Petrobrás. São Paulo: Editora UNESP, 1997, p. 191.

CORTÉS, H. Cartas de Relación de la Conquista de México. México: Espasa-Calpe mexicana, 1994, p. 687.

DÍAZ DEL CASTILLO, B. Historia Verdadera de la Conquista de Nueva España. Barcelona: Plaza & Janés, 1998, p. 479 .

GRIGOLETTO, M. A resistência das palavras. Discurso e colonização britânica na Índia. Campinas: Editora da UNICAMP, 2002, p. 236.

GUIMARÃES, E. Enunciação, Língua, Memória. Revista da Anpoll, São Paulo, no 2. 1996, p. 27-33.

ORLANDI, E. Análise de Discurso. Princípios e Procedimentos. Campinas: Pontes, 1999, p. 100.

TODOROV, T. A Conquista da América — A questão do outro. São Paulo: Martins Fontes. 1999, p. 324.

 

 

1 Armas
2 O episódio se refere ao regresso do deus Quetzalcoalt, um dos deuses que havia se sacrificado para alimentar o Sol e garantir a sobrevivência dos astecas. Cortés chega à Tenochtitlán na data em que deveria regressar Quetzalcoalt (o Ce Ácatl). É possível que, pelo menos num primeiro momento, os astecas tenham confundido o conquistador espanhol com o deus que deveria chegar para domina-los.