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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002

 

Afinal, o que é e onde está a periferia? Uma análise dos contextos periférico e canônico na obra de Sábato e Saramago

 

 

Andresa Fabiana B. Guimarães

USP

 

 

Levando-se em consideração as mudanças metodológicas sofridas pela Literatura Comparada nos propusemos a estudar a questão do cânone e do periférico voltada a dois contextos específicos: Portugal e Argentina. Para isso, utilizamos as narrativas; Informe sobre Ciegos (1964) de Ernesto Sábato e Ensaio sobre a Cegueira (1995) de José Saramago.

Esta pesquisa teve como objetivo mostrar a oposição cânone e cultura popular por meio da caracterização dos autores. Analisando o contexto cultural em que eles estão inseridos tentamos verificar o que leva uma obra ou um autor a ser considerado um cânone ou periférico/ marginal.

O presente trabalho insere-se dentro dos estudos de Literatura Comparada, por isso inicialmente faremos um breve esboço teórico para nos situarmos dentro da sua Teoria. No início a Literatura Comparada punha em relação duas ou mais literaturas, perseguindo a migração de um elemento literário de um campo a outro. Hoje, pode-se dizer que essa atuação se ampliou possibilitando a sua atuação em diversas áreas, apropriando-se de vários métodos, cria-se seu caráter interdisciplinar. Pode-se dizer que essa mudança se deu na passagem de um discurso coeso e unânime para outro plural, descentralizado e consciente das diferenças que identificam cada corpus literário. Embora ela tenha tido como eixo os estudos comparatistas formado pela Europa Ocidental e a América do Norte, ela teve como corolário o deslocamento do foco de atuação para pólos que até então eram considerados marginais como a China, índia, África e América Latina. Esta descentralização ampliou o cunho internacional e interdisciplinar da Literatura Comparada, que passou a abranger uma rede complexa de relações culturais. A obra literária não podia mais ser vista por uma ótica exclusivamente estética; como um produto cultural, era preciso que se levasse em consideração suas relações com as diferentes áreas do conhecimento. O desvio do olhar comparatista teve maior expressão naqueles locais até então situados à margem. Nestes, o modelo eurocêntrico tido como referência, foi posto em xeque e os paradigmas tradicionais cederam lugar a construções alternativas e flexíveis, cuja principal preocupação reside na articulação dos produtos culturais locais em relação com os de outras culturas, especialmente daquelas com que havia mantido vínculos de subordinação. Neste momento, o elemento político do comparatismo é assumido conscientemente e surge a necessidade de uma revisão dos cânones literários.

A questão do cânone torna-se central na Literatura Comparada, há uma discussão do sistema de valores instituído pelos grupos detentores do poder. Este questionamento se estende desde a exclusão de uma produção literária oriunda de grupos minoritários, nos centros hegemônicos até o abafamento de uma tradição literária significativa nos países que passaram por processos de colonização recentemente. Com a descontrução dos pilares em que se apoiavam os estudos literários tradicionais e a indefinição instaurada entre os limites que funcionavam como referenciais, o cânone perde sua sustentação, afetando a estrutura da Teoria e da Crítica Literárias. Conscientes de que não se trata de uma simples inversão de modelos, da substituição do que antes era tido central pela sua antítese periférica, os comparatistas atuais abandonam o paradigma dicotômico e lançam-se na exploração da pluralidade de caminhos como resultado do contato entre colonizador e colonizado.

É importante ressaltar que a reestruturação do cânone das diversas literaturas latino-americanas vem ganhando um grande espaço nos estudos acadêmicos, em que se clama a inclusão de registros até então marginalizados pelo discurso oficial, como por exemplo, o das línguas indígenas como o quechua e o guarani, o cordel brasileiro, dentre outros. Para o teórico Coutinho (1990), essas questões que abordam as diferenças latino-americanas, revelam a ineficácia da transferência de paradigmas de uma cultura para a outra. Para ele, a concepção monolítica da cultura latino-americana vem sendo questionada e muitas vezes substituída por propostas alternativas que busquem dar conta de seu caráter híbrido.

 

Ernesto Sábato e a Argentina vistos como periféricos:

Partindo do contexto argentino que, neste caso, retrata o periférico, podemos dizer durante os anos 20 e 30 Buenos Aires teve um considerável crescimento, nas ruas falava-se uma espécie de ''panlíngua'' (pidgin) de caráter imigratório. A cidade tornou-se cosmopolita, no entanto, esse crescimento não atingiu fortemente a periferia. Em 1936 quebra-se a imagem de uma cidade totalmente hegemônica, neste período Buenos Aires contava com uma grande quantidade de estrangeiros, os imigrantes, que contribuíram para o crescimento da metrópole Argentina. Este crescimento acarretou o aparecimento de novos jornais e revistas com um novo formato e com uma maior diversidade de assuntos.

A questão da língua, das traduções, do cosmopolitismo, do crioulismo são alguns dos tópicos do debate ideológico estético que se instaura na cidade. Sarlo (1998) refere-se à cultura Argentina como sendo uma cultura de mesclas, onde coexistem elementos defensivos e residuais junto a programas renovadores. O sistema de respostas culturais produzido nestes anos foi influente até meados da década de 50, trata-se de um período de incertezas, de releituras do passado. A modernidade vai avançando sobre o cenário urbano, há um questionamento de valores pertencentes a dois espaços: o campo e a cidade. Perde-se a hegemoneidade da cultura rural, há uma influência dos imigrantes das ''quadrilhas'' que entravam e saíam deste mundo crioulo.

O mundo marginal foi um espaço extremamente produtivo, Buenos Aires tornou-se uma cidade onde a margem foi vista contaminado o centro e os bairros respeitados. Este processo iniciou-se na última década do século XX, em que se aceleram os contatos entre os universos sociais heterogêneos, com ênfase na forte marca imigratória e na mescla de culturas e línguas. Neste período, o campo intelectual incorporou escritores de origem imigratória que residiam na periferia da cidade e estes transportaram para a literatura a questão do periférico e marginal, ou seja, toda a poesia desta época está marcada pela idéia de fronteira, de limite, de margem.

Os escritores fundam o periférico a partir das mesclas estéticas e ideológicas. Borges inclui em seu trabalho os ideologemas suburbanos, as conversas, acriollando a tradição literária universal e universalizando a periferia; o que até então era considerado marginal torna-se socialmente visível na literatura Argentina no mesmo momento em que as traduções espanholas dos romances russos proporcionavam marcos e novos procedimentos aos escritores rio platenses. O público de nível econômico mais baixo encontrou neste tipo de narração vários níveis de identificação: o desenlace, a presença de personagens que possuíam as mesmas carências do povo, os romances continham personagens de diversas nacionalidades que por sua mescla, pareciam verossímeis, próximos à experiência de um habitante de Buenos Aires. Sarlo (1998) define da seguinte maneira ''era un vagón de segunda clase donde podían comunicarse las lenguas y las culturas, sin que un centro lingüístico impusiera su hegemonía sobre los extranjeros'' (SARLO, 1988, p.200-1).

Estas marcas de marginalidade estão presentes em Informe sobre Ciegos (1964) de Ernesto Sábato. Nela, podemos observar que o autor de maneira simbólica aprofunda-se na realidade noturna por meio da imersão do eu do seu narrador Fernando Vidal Olmos. O inconsciente deste personagem é o objeto de uma auto análise, o termo real da alegoria dos cegos. Por isso, fala das suas obsessões, de seus sonhos, de seus desejos inconfessados e, em geral tudo que é relativo a dimensão não racional do eu.

No capítulo 5 da narrativa, Fernando faz uma descrição minuciosa sobre si mesmo:

Yo me llamo Fernando Vidal Olmos, y estas palabras son como un sello, como una garantía de que soy algo, algo bien definido: no sólo por el color de mis ojos, por mi estatura, por mi edad, por mi día de nacimiento y mis padres (es decir por estos datos que aparecen en la cédula de identidad) sino por algo más profundo de índole espiritual: por un conjunto de recuerdos, de sentimientos, de ideas que dentro de uno, mantienen la estructura de ese algo, que es Fernando Vidal y no el cartero o el carnicero ( Sábato, 1964, p. 262)

Neste fragmento, a identificação do personagem é feita de uma maneira real, criando no leitor uma sensação de proximidade, este ''sello'' do qual fala Fernando é o mesmo utilizado para diferenciar um indivíduo do outro na sociedade. Temos então, a caracterização feita de forma verossímil a um cidadão que faz parte do mundo real.

Outra marca do discurso periférico é encontrada quando Fernando descreve, no primeiro capítulo, o lugar por onde está caminhando: ''veo caras, ratas en un granero, calles de Buenos Aires ou Argel prostitutas y marineros...'' (SÁBATO, 1964, p.247) neste fragmento nota-se a caracterização do ambiente feita pelo lado periférico da cidade.

 

Portugal e Saramago: de um contexto periférico a um contexto canônico

Durante muito tempo Portugal foi visto como a periferia da Europa, devido aos seus grandes problemas internos. Problemas estes aparentemente solucionados por Salazar. Apesar de ter sofrido um grande processo de industrialização como a construção de uma nova cidade universitária em Coimbra, também nesta época surgiu a Universidade Católica, no entanto, o desenvolvimento da cultura foi prejudicado pela crescente intervenção do governo e pela sua desconfiança. Na área das Letras a censura foi grande, proibindo-se os artigos, os jornais, as publicações periódicas, as peças de teatro, os filmes, os programas de rádio e televisão, sendo assim, poucos movimentos de vanguarda puderam difundir-se, no campo da renovação cultural os escritores dependiam de recursos e verbas estrangeiras para publicarem suas obras.

No âmbito da literatura ocorreram algumas mudanças. No final da década de 30, surgiu em Portugal o chamado movimento neo-realista, como uma espécie de resposta às condições político-sociais do período salazarista. Este grupo rebelou-se contra o descompromisso da corrente anterior, o Presencismo. Propunha-se agora uma literatura engajada, ancorada na realidade concreta que o país estava passando. A função da literatura seria, então, conscientizar o público desta realidade censurada e não apenas preocupar-se com a arte pela arte.

Nos anos 50 surgem as poéticas de vanguarda juntamente com as preocupações existenciais. A literatura contemporânea portuguesa ainda apresentava muitos traços neo-realistas, mas predominava, neste momento, ecos das vanguardas modernistas cruzados com traços nacionalistas típicos da tradição portuguesa, além da tendência ao experimentalismo formal. È nesta linha que José Saramago se destaca juntamente com outros escritores portugueses como Jorge de Sena, Herberto Helder, dentre outros.

Saramago primeiramente escreveu poesias. Segundo ele, o principal motivo pelo qual as escrevia era porque estava apaixonado, até meados de 1980 dedica-se a escrita de contos, crônica e teatro, neste período o autor não obteve reconhecimento literário, pelo contrário esta dentro de um contexto periférico, pois suas obras não se enquadravam nos moldes literários. O autor só ganha prestígio com a publicação do livro Levantado do Chão (1980), neste livro Saramago inaugura uma nova maneira de narrar e para explicar este novo processo diz:

Sem perceber, sem parar para pensar, comecei a escrever como todos os meus leitores hoje sabem que escrevo: sem pontuação. Sem nenhuma, sem essa parafernália de todos os sinais, de todos os sinais que vamos pondo aí. O que aconteceu??? Eu não sei explicar, Ou então, tenho uma explicação: se eu tivesse escrevendo um romance urbano, um romance com um tema qualquer de Lisboa, com personagens de Lisboa, isso não aconteceria. E tenho certeza de que hoje estaria escrevendo esses romances como todo mundo faz- talvez bons, mas estaria acatando respeitosamente toda a convenção do que se chama escritura (...) sem que eu percebesse, é como se, na hora de escrever, eu subitamente me encontrasse no lugar deles, só que narrando a eles o que eles me haviam narrado. Eu estava devolvendo pelo mesmo processo, pela oralidade, o que, pela oralidade, eu havia recebido deles. (Revista Cult, dezembro de 1998)

Do mesmo processo narrativo nasceram os demais romances. É evidente que, como afirma o próprio autor, existem mudanças, adaptações, temas diferentes, mas a essência usada nas outras obras é a mesma. Com a publicação do Memorial do Convento (1982) Saramago firma-se dentro do que se pode chamar ''escrita literária''.

Há uma grande ruptura com as tradições literárias, marcada por este modo de narrar tão singular do autor e esta escritura, perdura nas suas obras posteriores. Esta ruptura traz o elemento periférico à narrativa literária, a valorizando a oralidade e a cultura popular.

No caso do romance Ensaio sobre a cegueira (1995), o narrador usa diversos mecanismos para aproximar-se do leitor, um deles é a linguagem coloquial: ''Aonde vai você a estas horas, se alguém o tivesse feito sabia como haveria de responder, Vou mijar, diria, o que não queria era que fosse a mulher do médico a chamá-lo'' (Saramago 1995, p. 77).

Outra ruptura ocorre quando ele contrapõe a linguagem coloquial a um discurso mais formal. No trecho a seguir ele contrapõe os dois discursos para falar da mesma situação:

Encaminhava-se já para a camarata quando sentiu uma forte necessidade de evacuar. No sítio onde se encontrava, não tinha a certeza de ser capaz de chegar às latrinas, mas decidiu aventurar-se. Esperava que alguém ao menos, tivesse tido a lembrança de levar para lá o papel higiênico que viera com as caixas de comida. Enganou-se no caminho duas vezes, angustiado porque a necessidade apertava cada vez mais, e já estava nas últimas instâncias de urgência quando pôde enfim baixar as calças e agachar-se na retrete turca. O fedor asfixiava. Tinha impressão de haver pisado uma pasta mole, os excrementos de alguém que não acertara com o buraco da retrete ou que resolvera aliviar-se sem querer saber mais de respeitos. Tentou imaginar como seria o lugar onde se encontrava... (Saramago, 1995, p.96).

Como se pode notar, no romance há uma contraposição entre linguagem culta/ formal e linguagem popular, em uma tentativa do narrador de aproximação e também de distanciamento do leitor, desta maneira pode-se dizer que o narrador faz reflexões sobre o comportamento do ser humano na sociedade, tenta alertar as pessoas para a necessidade de uma mudança nas atitudes, pois hoje vivemos num mundo cheio de preconceitos e ganância em que o ser humano deixa de pensar em seu próximo para pensar somente no seu bem estar. Com a vida moderna as pessoas não têm mais tempo para ajudar um amigo, ou mesmo ter paciência para escutá-lo em um momento difícil. Há uma crítica ao comportamento do ser humano que se torna cego para todas as coisas que não lhe trazem satisfação e prazer.

Outros elementos importantes que aparecem no romance são as parábolas e provérbios, pois estes dão ao texto um tom religioso e profético: ''Parece outra parábola, falou a voz desconhecida, se queres ser cego, sê-lo-ás'' (Idem, p. 129). Ou no trecho: ''É uma grande verdade a que diz que o pior cego foi aquele que não quis ver'' (Idem, p.283).

A partir destes elementos, pode-se dizer que a obra saramaguiana é marcada por dois momentos distintos, o primeiro seriam os anos iniciais da sua carreira, período que podemos considerá-lo como periférico ou marginal, pois até então sua obra não era literariamente reconhecida pela Crítica. Na segunda etapa, esse reconhecimento vai se tornando possível com a publicação dos romances Levantado Chão (1980), Memorial do Convento (1982), O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), dentre outros. No ano de 1988 o escritor recebe o prêmio Nobel de Literatura, o primeiro para um autor de língua portuguesa, nesta fase Saramago é, de certa forma, inserido nos cânones da literatura. A partir disso pode-se verificar a dificuldade em moldar sua obra dentro dos paradigmas literários, pois sua tendência inovadora traz ao cânone novas rupturas no nível estrutural e de conteúdo.

 

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