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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002

 

A invasão do labirinto: a casa e a cidade na literatura argentina

 

 

Ary Pimentel

UFRJ

 

 

Este mundo dividido em compartimentos,
este mundo cindido em dois, é habitado
por espécies diferentes.
Frantz Fanon

Existem dois importantes ''personagens'' que protagonizam um número significativo de textos da literatura argentina. Estes personagens são a casa, como espaço concreto de moradia, e a cidade de Buenos Aires. Muitas vezes, porém, estes dois espaços se confundem e são um mesmo personagem, na medida em que a casa é uma metáfora da cidade, aparecendo em narrativas e discursos poéticos que poderiam ser vistos como uma alegoria da história argentina.

Pelo menos desde a primeira década do século XX acumularam-se os títulos em que a casa não só constitui o cenário como também potencializa significados simbólicos, assegurando a possibilidade de uma leitura que combina a celebração de elementos da tradição hispano-criolla com a crítica aos aspectos vinculados à modernidade, à imigração e às classes populares. O que temos neste vasto corpus, que envolve a produção de autores tão diferentes e importantes quanto Borges, Cortázar, Sábato, Bioy Casares, Mujica Láinez e Martínez Estrada, é a dramatização no texto literário e em um fragmento concreto do corpo da cidade das lutas sociais, políticas e culturais de um longo período da história. Neste espaço cênico da casa-cidade são representadas algumas das principais questões para a evolução do campo literário em sua estreita relação com o processo histórico.

''Ya Buenos Aires, más que una ciudad, es un país'', dizia Borges em 1926 (1994, p.14). Nesta época Buenos Aires era um centro metropolitano em franca expansão. O crescimento acelerado que se registrou especialmente a partir do final do século XIX foi também um importante fator na mudança de mentalidade dos diferentes grupos humanos. Os habitantes da capital passaram de 150.000, em 1863, para 240.000, em 1884. Quarenta anos depois esse número passaria dos dois milhões, com a Capital Federal concentrando em torno de vinte por cento da população do país. Em um movimento paralelo, aumentaria a resistência ao elemento estrangeiro, bem como aos segmentos populares e se multiplicariam as barreiras em todas as áreas a fim de manter um certo equilíbrio no sistema forças que garantia a hegemonia criolla. Juntamente com a população aumentou também a polarização social, econômica e cultural na cidade.

Os imigrantes haviam buscado a Argentina movidos pela utopia da Terra Prometida. A maioria logo percebeu que jamais poderia alcançá-la, pois as possibilidades de ascensão foram limitadas pela elite local que reagiu com violência aos que começavam a conquistar os mesmos diretos que os argentinos chegados há mais tempo. Contudo, apesar da exclusão, das perseguições dos grupos nacionalistas e das restrições legais, no início do século XX, o estrangeiro passava a ser o principal habitante da cidade. Ocupava postos de trabalho, ingressava na universidade e começava a destacar-se no campo cultural.

Os argentinos recentes, com o tempo, iriam constituir uma nova elite de origem burguesa. Muitos dos industriais mais ricos da cidade de Buenos Aires e dos complexos fabris vizinhos haviam cruzado o oceano. Inúmeros imigrantes e filhos de imigrantes iriam destacar-se no mundo da cultura. Alberto Gerchunoff, que chegou em 1889, aos cinco anos de idade, já era um dos principais nomes do prestigioso jornal La Nación em torno de 1920. Alguns outros galgaram importantes posições na vida política. Em 1904, Alfredo L. Palacios, por exemplo, já se projetava como o primeiro deputado socialista da América, eleito pelo tradicional bairro genovês de La Boca. Com o correr das décadas, os imigrantes enriquecidos e também os que compunham a nova classe média letrada iam assumindo o primeiro plano na sociedade argentina, enquanto o patriciado passava a desempenhar um papel cada vez menos importante na vida econômica, política e cultural do país. Com a interrupção do fluxo de trabalhadores europeus para a Argentina em 1930, a Capital Federal passaria a ser o destino de um forte fluxo migratório interno que reforçaria o surgimento do homem-massa e a pressão sobre a velha elite dominante.

A radical alteração da realidade social nestes dois momentos da história argentina influenciaria de modo marcante a produção literária. Com os imigrantes surgia uma cidade poliétnica e a necessidade de conviver com a diversidade tanto no cenário urbano quanto no âmbito da sua representação artística. A primeira reação no plano da arte, ainda nos primeiros anos do século XX, foi a de canibalizar o diferente a partir de uma representação da cidade na qual a alteridade desaparecia. Surgia neste momento uma poética da nostalgia que se caracterizava por uma perspectiva enaltecedora da tradição e do passado, dimensões que se associam na formação de um complexo universo temporal e cultural do qual o Outro está excluído. Esta poética surge no bojo de uma preocupação mais específica de dotar Buenos Aires de uma fisionomia literária que correspondesse à memória da elite hispano-criolla. Alguns autores foram particularmente responsáveis por esta elaboração de Buenos Aires como tema destituído de seus problemas centrais. Nomes como Carriego, Lugones e Borges se destacam entre os que se encarregariam de fundar miticamente a cidade e ajustar a realidade a uma imagem ideológica que justificaria a posição de destaque das elites que detinham o poder. Neste processo funda-se uma literatura nacional baseada em um cânone que entroniza algumas obras, através das quais se processa uma releitura do passado e constrói-se uma memória das famílias que fizeram a pátria tanto no momento da fundação da cidade quanto no período que sucede às guerras de independência. A perpetuação desta memória familiar elevada à condição de memória nacional será o principal elemento de formação dos antigos argentinos nas lutas que se travam em torno do pertencimento à comunidade imaginada e ao campo cultural.

Na duplicidade de memórias e no seu enfrentamento se refletem os conflitos sociais. É a partir do controle da memória que um grupo se apropria da história e impõe uma visão do passado, selecionando o que deve ser registrado e lembrado pelas gerações futuras. Diante da coexistência de memórias diferentes em conflito, os imigrantes e as classes trabalhadoras tiveram que anular uma identidade menor de grupo para assimilar uma memória que caracteriza a identidade nacional. A memória familiar ou local que traziam e a memória de classe que se desenvolve na luta operária devem tornar-se esquecimento.

A memória oficial da nação era uma memória patrícia que originalmente apontava para o consenso com uma encenação da nacionalidade onde não se registravam os conflitos sociais passados e presentes. As classes dominantes tradicionais fundavam o seu poder na supressão da memória do Outro. A censura da memória visava a eliminar zonas de conflito. Com o regresso ao espaço campestre ou a uma cidade mitificada, o discurso da elite letrada objetivava eliminar toda memória incômoda. Obras como Fervor de Buenos Aires e Don Segundo Sombra se inserem neste processo de esquecimento deliberadamente provocado das tensões do passado e do presente. Poderíamos falar, com Peter Burke, da organização social do esquecimento, quando os grupos e os indivíduos que os formam decidem suprimir aquilo que não convém recordar (BURKE, 2000, p. 82).

Embora a supressão de um acervo de lembranças não oficiais se enfrentasse sempre com a impossibilidade de apagá-las de todo, para o conjunto da sociedade os acontecimentos traumáticos como o extermínio dos gauchos rebeldes, o massacre de 1909 ou a violência da Semana Trágica tinham sido esquecidos, ou seja, tornavam-se não-acontecimentos.

Quando os jovens conservadores da Liga Patriótica Argentina invadiam os centros culturais operários e queimavam bibliotecas inteiras, expressavam uma reação enérgica da classe opulenta, que castigava aos que ousavam querer ascender com as armas da cultura ainda consideradas um privilégio exclusivo, mas também demonstravam a importância da luta pela memória, ao destruir os documentos que registravam a história particular dos operários anarquistas e socialistas.

Contudo, mais que através da destruição concreta dos documentos, o apagamento da memória do Outro se deu através da elaboração de um discurso dominante que, traduzindo uma imagem construída do passado da elite criolla, foi usado como instrumento de dominação. É ele que legitima as pretensões deste grupo no presente. Para a manutenção de sua imagem pública que havia sido construída nas últimas décadas, a oligarquia precisava de um máximo de memória, e neste processo a atuação dos literatos é fundamental.

Desde a primeira década do século XX, já se manifesta com Evaristo Carriego o projeto coletivo construir uma imagem do mundo portenho a partir da casa patrícia, na qual se projeta Buenos Aires, a Argentina e o próprio mundo. A urbe é a casa e a casa é o orbe. Esta literatura constrói uma imagem da família, traça um perfil da casa-cidade e conjura a presença do Outro. As bases desta representação são compartilhadas pelos textos que integram o que chamamos acima de poética da nostalgia, mas caracterizam também o que poderíamos chamar de poética do ressentimento. Embora não se confundam e posamos perceber que a poética do ressentimento é bem mais freqüente do que a da nostalgia, muitas vezes um mesmo texto pode situar-se dentro destas duas poéticas. Isto se dá porque a precondição do ressentimento é a mesma da nostalgia, ou seja, o deslocamento das elites dominantes provocado pela emergência dos imigrantes, da nova classe média e, em um momento posterior, da massa peronista. Textos com o tema da casa, como ''Casa tomada'', de Julio Cortázar, e ''La casa de Asterión'' ou ''Juan Muraña'', de Jorge Luis Borges, estão no centro da poética do ressentimento.1

O conto de Cortázar reproduz recria sintetiza no microcosmo de uma velha residência senhorial habitada por dois irmãos as atitudes de determinados grupos da sociedade argentina diante do processo histórico da primeira metade do século XX. O que marca o movimento da narrativa é o surgimento de um elemento ameaçador para esses remanescentes da elite rica e ociosa de Buenos Aires. A força hostil vem de um espaço externo para apropriar-se de uma parte da casa e instaurar mais uma vez a lógica dos mundos polarizados, mas não é de todo estranha aos antigos residentes. Ao ser informada por seu irmão da presença dos estranhos dentro da casa, Irene demonstra alguma surpresa, mas não a que se esperaria diante de um fato insólito que ela não pudesse compreender. A poderosa força de invasão parece ser algo quase esperado que, contudo, não se pode aceitar quando de fato ocorre. O irmão simplesmente informa, ao voltar da cozinha: ''Tuve que cerrar la puerta del pasillo. Han tomado la parte del fondo.'' (CORTÁZAR,1994, p. 109)

Irene não pede nenhum esclarecimento, apenas pergunta se o irmão tem certeza que invasores ocuparam esta parte dos fundos, que poderia ser lida como a parte Sul da cidade. Diante da confirmação do irmão, sem maiores discussões, ela retoma a sua atividade depois de constatar: ''Entonces (...) tendremos que vivir en este lado.''(p.109) A conclusão é obvia: se este ser coletivo, indiciado pela desinência verbal, tomou a parte de trás, os antigos residentes, orgulhosos de seu status, mas passivos ante as novas forças que se projetam em seu meio, terão que restringir-se à parte da frente da casa. Não podem conviver ou misturar-se com ''eles'', que constituem um elemento inominado, mas não desconhecido pelos dois.

O conto ilustra de forma indireta episódios fundamentais da história social e cultural da Argentina. O ato de fechar a porta, além de expressar o medo dos irmãos diante da inominada força invasora, adquire um significado mais amplo que no texto se encerra na expressão de mandato que precede a ação (''tuve que cerrar...'') e na descrição do ato que traduz uma explícita violência: ''Me tiré contra la puerta antes de que fuera demasiado tarde, la cerré de golpe apoyando el cuerpo; felizmente la llave estaba puesta de nuestro lado y además corrí el gran cerrojo para más seguridad.''(p.109). Acossados, os irmãos ''fecham a porta'' de modo violento, assim como o Estado em diversos momentos aprimorou seu aparato coercitivo para garantir uma ordem que privilegiava determinados segmentos sociais. Se estabelecemos um vínculo entre as relações que se manifestam no mundo criado por Cortázar e as que se mostram no mundo exterior da realidade argentina, é inevitável a associação deste ato com os acontecimentos que envolvem a reação observada em momentos determinados da história, como a Semana Vermelha de 1909 ou a Semana Trágica de 1919, quando se registraram a criação da Liga Patriótica Argentina e o sangrento ataque aos grupos de trabalhadores organizados. Mas, esta reação de violento fechamento da sólida porta de carvalho é perceptível sobretudo na conspiração que levaria ao golpe de 1930, quando se cristalizam os fundamentos do ressentimento.

No conto, podemos identificar o confronto de mundos no âmbito maior da sociedade, mas também se observa a encenação da luta pelo poder nesta outra esfera mais específica que é o campo literário. É significativo que no primeiro setor da casa tomado pelos invasores esteja a biblioteca. Sem correr o risco de impor ao texto aquilo que ele não diz, é possível ver nisto um reflexo das tensões que se estabelecem no campo literário. A luta interna, que visa ao estabelecimento de um novo cânone que incorpore os invasores, também se expressa na ação de fechar a porta, especialmente quando esta é realizada por um personagem que se apresenta como um atualizado leitor de livros franceses, que acredita que desde 1939 não havia chegado nada valioso às livrarias argentinas.

A força inominada no conto de Cortázar é um retorno do reprimido. Pode ser uma manifestação fantástica de fantasmas familiares, mas pode ser também uma representação da horda de excluídos, que agora ameaçam tomar a casa, ao conquistar uma nova condição econômica, empregos na burocracia pública e espaços no campo cultural.

Integrantes da velha oligarquia de grandes proprietários que viviam da renda de suas fazendas, os irmãos não precisavam trabalhar nem relacionar-se com o mundo exterior. Viviam sozinhos, recolhidos ao conforto desta casa da calle Rodríguez Peña, na Recoleta. Em seu paraíso, os habitantes da zona sagrada, do grupo social fechado se bastam e acreditam poder continuar relacionando-se apenas entre si. Mas este tipo de relacionamento, que no conto é reforçado com o indício de incesto, irá determinar a esterilidade do núcleo familiar e a ruína de uma casa. Com eles desaparece não só um edifício, como também uma genealogia fundada pelos avós. A preocupação do personagem narrador com a limpeza da casa, que pode ser lida como a própria família, traduz a sua resistência a mesclar-se com o Outro, sentimento que se reforça com o fechamento da porta.

Como podemos ver pelo exemplo dado por Cortázar em ''Casa tomada'', as velhas famílias patrícias que até o século anterior haviam constituído a classe alta argentina não conseguem adaptar-se aos novos tempos. Retraem-se, passam a viver cada vez mais isoladas em seu pequeno mundo e são inevitavelmente acossadas em seu castelo, que se converte em uma praça sitiada. Como não fazem novas alianças que lhes permitam enfrentar a situação adversa que se projeta com o advento da modernidade, irão extinguir-se exatamente em função do isolamento que lhes dava um status diferencial.

Da poética do ressentimento, portanto, não estão imunes nem mesmo os autores que começam a publicar em torno de 1945, como Julio Cortázar, que a freqüenta em seus primeiros contos e aparece como um de seus grandes exemplos com ''Casa tomada''. Aí figura claramente, através do simbolismo da casa, a idéia da zona sagrada, representando um conceito de classe e de civilização circunscrito a um certo território da cidade e a umas poucas famílias. Mas este é apenas um exemplo em meio a um amplo leque de obras e autores. Em diferentes elaborações literárias publicadas no decorrer do século XX, a casa aparece como manifestação espacial de um grupo que acreditava em seus direitos exclusivos de ocupação deste território e acabou sendo dele expulso. Concretamente, o ressentimento reflete a decadência da oligarquia rural que, depois de viver seu auge no início do século XX, é obrigada a vender suas casas e palácios, desfazer-se de suas terras e lotear suas quintas. A crise deste grupo pode chegar mesmo ao completo desaparecimento, a partir da esterilidade a que seu isolacionismo levaria.

Através do acompanhamento de alguns textos que têm como núcleo temático a casa, é possível ver a maneira mais ou menos uniforme como alguns dos autores mais destacados do campo literário dialogaram com o processo histórico e como identificaram no corpo da cidade o passado destas famílias e a posição que ocupam no presente.

Borges é um dos escritores que melhor relata a história dessa ruína das famílias patrícias através da alegoria da casa. Como também ocorre nos textos de Bioy Casares, de Mujica Láinez e de tantos outros, a casa muitas vezes aparece em seus contos e poemas, expressando um sentimento de decadência e deslocamento compartilhado por várias gerações de autores argentinos. Não são incomuns na obra de Borges os personagens que empreendem uma trajetória de declínio, permitindo, impotentes, que acabe com eles uma herança econômica e cultural de muitas gerações de americanos. Em seu penúltimo livro de contos, Informe de Brodie (1970), temos um dos melhores exemplos da poética do ressentimento fundada sobre a imagem da casa. Através de uma série de contos cujo cenário básico é a casa, podemos acompanhar alguns momentos marcantes da luta entre a cidade sitiada da elite patrícia e os invasores estrangeiros e provincianos.

No conto ''Juan Muraña'', o narrador diz que acreditou ter-se criado no bairro de Palermo, mas que de fato cresceu atrás de uma grade, em uma casa com jardim e com uma vasta biblioteca que havia sido de seu pai e antes deste de seu avó.2 Os dados, que parecem ser apenas uma paráfrase de outro livro do autor usada para situar o personagem narrador como esse outro Borges que também escreveu Evaristo Carriego e estudou na calle Thames, têm um importante simbolismo. De fato introduzem já desde as primeiras linhas os elementos centrais de uma segunda dimensão desta aparente trama fantástica ou policial. Emerge a partir daí uma possibilidade de leitura prevista pelo autor que não se expõe ao leitor como trama aparente, mas vai adquirindo significados a partir da orquestração de elementos que lhe outorgam existência coerente no relato. A presença da casa e da biblioteca neste primeiro momento faz com que ecoe por todo o conto um núcleo temático que dialoga profundamente com a singela história de um amigo que foi despejado de casa, de uma tia louca e de um cuchillero de Palermo.

Segundo Borges, cada relato tem pelo menos dois argumentos. Um que se formula de modo visível e outro, elaborado com elementos subentendidos, que são exatamente a matéria da análise crítica.3 Se se aceita este fato, parece evidente que o conto fala mais uma vez de uma casa arruinada que remeta à trajetória dos Borges e de toda uma geração que nasceu em antigas famílias, que foram entrando em decadência e persistem apenas como uma orgulhosa nostalgia e vagos registros em placas de ruas. Está subentendida na história de um trivial conflito de locação a luta entre as famílias patrícias e os grupos adventícios. A trama oculta é exatamente a batalha travada pelo território da casa-cidade através da qual se expressam os antagonismos sociais.

Unindo dados de duas pessoas com quem conviveu — um companheiro de escola que lhe ensinou algumas palavras de lunfardo e um sobrinho de Juan Muraña4 — o autor arma um personagem que em um encontro casual lhe conta uma história do tempo do Centenário. A história se centra em uma casa estreita e cumprida de uma família que já não consegue pagar o aluguel e está prestes a ser despejada. No quarto de cima, vive isolada, presa às lembranças daquele mesmo passado que Borges havia poetizado nos anos de 1920, uma tia que foi a esposa de Muraña, um compadrito de Palermo que para Borges seria símbolo dos subúrbios humildes da zona norte nas décadas finais do século XIX.

Os elementos que estruturam a mensagem subentendida se apresentam em momentos que não merecem maior ênfase do narrador, como a passagem em que se informa, quase displicentemente, que o atual dono da casa é um italiano que vive em um dos subúrbios operários de Buenos Aires (''La casa era de propiedad de un tal señor Luchessi, patrón de una barbería en Barracas.'' (BORGES, 1982, p. 65).

O locador, esse ''tal señor Luchessi'', ameaça despejar a família por falta de pagamento e, diante da aflição da mãe do narrador do relato emoldurado (um relato que aparece dentro da moldura de outro relato),5 a tia intervém para assegurar: ''Juan no va a consentir que el gringo nos eche.'' (BORGES, 1982, p. 66). A cena afirma a importância do passado no esforço para salvar a casa e prepara a conclusão, introduzindo também elementos para uma possível interpretação do subtexto. O dono da casa agora é um italiano que ameaça expulsar o inquilino, antigo residente empobrecido. Impotente mas com a altivez do criollo falido que não pode pagar o aluguel, e considerando que negociar com o locador italiano é rebaixar-se, o locatário recorre ao passado mítico para defender-se.

No dia seguinte, quando se inicia o intenso movimento de pessoas e carros no bairro de Barracas, o barbeiro italiano é encontrado morto com inúmeras punhaladas. Apesar da explicação realista que desmonta a possibilidade fantástica ao sugerir que a tia havia matado o italiano com a arma de Muraña, resta um dado enfatizado no texto que reforça a possibilidade de leitura, a partir da qual se identifica nesta família uma classe sem fortuna e sem poder que lança mão de um estatuto mítico para construir uma realidade compensatória: ''la daga era Mureña''.6 O final é melancólico para os integrantes desta família e expressa a crise de uma classe média oriunda da decadência dos grandes proprietários pecuaristas que se refugia no passado, construindo através de seu setor intelectual a base ideológica do nacionalismo criollo, sem contudo conseguir fazer frente ao avanço da imigração. Com a reação violenta associada ao elemento mítico, apenas retardaram o fim, mas serão de qualquer modo desalojados como o foi a própria elite oligárquica. O que estrutura este plano do subentendido é o mundo privado da mulher louca que modela a realidade presente a partir de fragmentos do passado e com eles tenta interferir no futuro.

A importância da imagem da casa em sua recorrência como elemento central no que chamamos poética do ressentimento está exatamente na tradução de um sentimento compartilhado pelos diferentes escritores e pelo grupo social que eles integravam. Todas as imagens sociais, todos os ruídos sociais são dotados de sentido e, como tal, emanam de si uma memória coletiva, não apenas a memória do indivíduo que eventualmente as processa sob a forma de arte. Assim, as casas que aparecem nos contos ''Casa tomada'' e ''Juan Muraña'' não são apenas elementos de um cenário urbano, mas a tradução das tensões que afetam a sensibilidade dos homens de letras. Estas narrativas correspondem a uma necessidade que sentem os integrantes do campo cultural de dar seu depoimento sobre o processo vivido por eles, por sua família e sua classe. Elas traduzem uma demanda social que impõe a sua articulação sob a forma de discurso artístico, especialmente nos momentos de crise, quando o grupo se sente ameaçado ou irreversivelmente derrotado.

 

BIBLIOGRAFIA

BORGES, J. L. El tamaño de mi esperanza. Buenos Aires: Seix Barral, 1994.

_________. Prólogos (con un prólogo de prólogos). 2ª. ed. Buenos Aires: Torres Agüero Editor, 1977.

_________. El informe de Brodie. 5ª. ed. Buenos Aires: Alianza, Emecé, 1982.

BURKE, P. Formas de historia cultural. Trad. Belén Urrutia. Madri: Alianza, 2000.

CORTÁZAR, J. Cuentos Completos/1 (1945-1966). 3ª. ed. Buenos Aires: Alfaguara, 1994.

 

 

1 Curiosamente, os dois contos (''Casa tomada'' e ''La casa de Asterión'') foram publicados primeiramente na revista Los anales de Buenos Aires, dirigida por Borges a partir de seu terceiro número, entre março de 1946 e novembro de 1948. A revista era mantida pela Sra. de Ortiz de Basualdo, uma rica integrante da sociedade portenha, que criara uma associação conforme o modelo da Société des Annales, de Paris.
2 O texto repete as palavras iniciais do prólogo de Evaristo Carriego (1930).
3 Borges voltou algumas vezes a essa idéia, que é também compartilhada por vários outros autores, entre os quais, Ricardo Piglia. Um dos pontos onde registra esta possibilidade de uma segunda trama é em seu livro Prólogos. (1977: 59).
4 Borges era sobretudo um criador de realidades e, embora se diga incapaz de engendrar um personagem, é óbvio que, mesmo naquelas que muitos consideram suas narrativas menores, o que temos é um processo de transcriação e não uma mera cópia da realidade externa. Apesar de apresentarem elementos de pessoas com quem o autor conviveu, estes personagens não são um reflexo, mas uma construção. Do indivíduo real, Borges tira muitas vezes um simples dado para criar uma atmosfera: o parentesco com um cuchillero, por exemplo, embora o conhecido do escritor fosse primo irmão dos Iberra, de Turdera, e não sobrinho de Juan Muraña, do íntimo bairro de Palermo.
5 Há um narrador primeiro que se identifica como Borges, o qual reproduz uma história que lhe é contada por um segundo narrador chamado Emilio Trápani.
6 BORGES, J. L. (1982) p. 66. ''Las armas, no los hombres, pelearon.'' diria Borges em outro conto deste volume (''El encuentro''). Os homens são meros atores que encarnam um papel, autômatos que representam ciclicamente a trama do mito, cuja essência está na arma onde pulsa a coragem. Com isto, perde importância aquele que mata e aquele que morre. Desta quase displicência com que os atos violentos são apresentados deriva uma visão idealista que lança foco narrativo para além do mundo humano: os sujeitos não matam e morrem, os instrumentos reencenam antigos combates que cabe imaginar como um único combate.