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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002

 

O deserto e a selva: paisagem e configuração da alteridade no romantismo hispano-americano

 

 

Cláudia Luna

UFRJ

 

 

Introdução

Este trabalho é parte do projeto ''Representações da alteridade e projetos nacionais na literatura hispano-americana do século XIX'', que coordeno no Departamento de Letras Neolatinas, na UFRJ. Nesta etapa desenvolvo o tópico da representação da paisagem, que acompanha a constituição do discurso hispano-americano desde a conquista.

O objetivo deste trabalho é analisar como se apresentam nossos dois principais espaços ''naturais'' – o deserto e a selva – configurados tanto como realidades geográfico-históricas como simbólicas (LE GOFF, 1988, p. 83), no Romantismo. Como os cronistas-viajantes, no século dezenove o narrador revisitará real ou imaginariamente a paisagem, dialogando com representações anteriores de cenários naturais e seus habitantes originários.

O intertexto evidente são os relatos de viagens que, consideramos, estão presentes, sob diversas roupagens, configurando a multiplicidade da prosa romântica, auxiliando na construção da discursividade romanesca, fornecendo procedimentos técnicos, discursivos e temáticos. Nossa prosa de ficção se forja ao mesmo tempo em que elabora a paisagem, define o cidadão-não cidadão e o narrador se constrói (SÜSSEKIND, 1900, p. 19).

 

O relato de viagens como matriz do romance

Benjamin comenta a existência de dois tipos básicos de narradores. Um deles seria o marinheiro comerciante, que alcança terras longínquas, e, ao regressar, fascina a comunidade com relatos de maravilhas e feitos incríveis. O outro seria o camponês sedentário, que extrai suas histórias da experiência cotidiana e da tradição (1987, p. 198-9). Permanência e mudança; o mesmo e o outro, tradição e novidade; desses pares temáticos, segundo ele, se alimenta a grande linhagem da literatura ocidental.

Se a ascensão do ''romance moderno'', para usarmos a expressão de Ian Watt (1991), se nutre das viagens mirabolantes imaginadas por Stevenson, Deffoe e outros, o processo não é novo. Ao recuarmos no tempo, às origens do ''romance'' ainda na Antigüidade, percebemos que os primeiros romances, que encantavam um público urbano distribuído por cidades distantes, unificadas sob o Império Romano pelo bilingüismo que exigia dos cidadãos cultos o conhecimento do grego, tinham como propósito entretenimento e diversão. O leitor inicial do romance, como seu parceiro da Modernidade, recebia o relato escrito, individualmente. (GARCÍA GUAL, 1988, p. 58).

No relato da Antigüidade, como no precedente célebre, a Odisséia, o maravilhoso se associa ao elemento histórico, mesclam-se relatos folclóricos e lendas longínquas, como a viagem ao mundo dos mortos (ibidem, p. 67). Mas os mais fascinantes eram os que traziam notícias de terras distantes, de povos ''exóticos'': os relatos de viagem.

No período clássico, a polis grega circunscrevia à esfera do ''mito'' a alteridade, como exteriorizações de dimensões humanas, escalonando a diferença em bárbaro e selvagem, ao qual progressivamente se associam aspectos de perigo e inferioridade, mas que estavam bastante próximos, na floresta, na natureza circundante. Posteriormente, sob o Império Romano, o viajante é conquistador, aventureiro, um herói, que, assumindo a primeira pessoa do relato, garante ao leitor a veracidade das situações vividas por mais ''extraordinárias'' que possam parecer. O teor bastante cambiante das experiências e a pouca importância atribuída ao romance (considerado menor) fará deste um gênero protéico, sem regras ou ''poéticas'' definidas.

 

Relato de viagem como relato de fundação

Acelerando o túnel do tempo, o gênero transpõe os oceanos e aqui aporta. Na verdade, como ironiza Marie Louise Pratt, nós, latino-americanos, constituímos os ''viajados'' da Modernidade, descritos desde o texto fundacional de nossa história e de nossa literatura, para deleite do público europeu: os Diários de Viagem de Cristóvão Colombo. O fascínio do gênero, apresentado sob a modalidade de cartas, relatos, relações, comentários, crônicas, segue dois eixos básicos: o trajeto e a possibilidade do encontro com a alteridade ameaçadora, fascinante, prodigiosa; com espaços cujas leis obedecem a regras além da imaginação. Viagens ao mundo dos mortos, como a prototípica Viagem de Túndalo medieval, que servirá de modelo para a série de relatos do período expansionista ibérico, relatos de naufrágios, viagens iniciáticas. Relato do trajeto marítimo, encontro com o bestiário, o tópico da natureza infinita e ameaçadora, de um lado. Relato de chegada a terras novas – sua gente, costumes, a natureza, todos os mecanismos já fartamente estudados de projeção sobre a natureza americana das utopias do Paraíso, do locus amoenus. O narrativo cede espaço ao descritivo, assemelhando-se ao desenho ou à pintura; a dupla escrivão/escritor–gravador/pintor constitui integrante indispensável das expedições, aspecto que perdura até o presente, paulatinamente substituídos pelo fotógrafo e pelo videomaker.

 

O escritor-viajante e a fundação do território imaginário

Se hoje o ''turista'', descendente aburguesado dos desbravadores de outras eras, ''conhece'' seu trajeto de antemão, graças aos ilustrados livros de turismo, no século dezenove a viagem latino-americana se revestia de outro teor: a descoberta, a fundação do território, e, dentro da perspectiva do escritor ilustrado, educador e guia das massas, a decodificação da paisagem tanto para o público estrangeiro quanto para o local.

Pratt analisa como Alexander Von Humboldt, o viajante-cientista, ''reinventa'' a América do Sul para norte-americanos e europeus, por um lado, e para as elites recém-independentes, de outro, dialogando com o imaginário anterior e apresentando três ícones que se unem para promover a representação metonímica do continente: as florestas tropicais, as montanhas geladas e as vastas planícies - llanos e pampas (1999, p. 121).

Observando a literatura romântica é interessante observar a profusão de relatos de viagem, disfarçados sob variadas formas – cartas, diários, autobiografias, romances, transitando livremente entre o científico, o ensaístico e o ficcional, a partir do modelo de Humboldt, ou sentimentais, na seara de Sterne. Observar a motivação destas viagens é revisitar o panorama político convulsionado da época, que, associado à intensa participação política do intelectual, fará com que exílio e fugas sejam uma constante. Por outro lado, há tanto a viagem de formação, a la Echeverría, em cuja bagagem traria a estética romântica, como a viagem de ''estudo'' de Sarmiento, para assimilar a ''civilização'' no berço.

Tanto os relatos de experiências reais como as narrativas imaginárias têm como ponto comum refletir espaços de encontro e/ou confronto com a alteridade, expressando, ao mesmo tempo, anseios e projetos da elite urbana letrada em relação à construção de suas nações, e para tanto, a necessidade da delimitação de nossas fronteiras. Lembrando Rama (1985), a cidade letrada ideal se imagina como paradigma de ordem e modernidade, civilidade e cultura, cercada por espaços caóticos e perigosos, que é preciso domesticar, colonizar, conquistar. Dentre eles, se destacam o deserto e a selva. Não por acaso, se associam à necessidade expansionista das burguesias regionais: o primeiro, utilizado preferencialmente para designar as terras dos pampas; quanto à selva, primordialmente relacionada à floresta amazônica, sempiterno objeto de cobiça e tantas potências.

a) O deserto

O termo se notabiliza com Sarmiento. Facundo – civilização e barbárie, obra multifacetada, traz o viés do descritivismo geográfico com forte teor interpretativo, taxativo na definição dos males da Argentina. Trata-se da extensão desmesurada: ''el desierto la rodea por todas partes y se le insinua en las entrañas; la soledad el depoblado sin una habitación humana'' (1989, p. 49); e acrescenta ''el horizonte siempre incierto, siempre confundiéndose con la tierra entre celajes y vapores tenues que no dejan en la lejana perspectiva señalar el punto en que el mundo acaba y principia el cielo'' (1989, p. 49).

É célebre a associação de barbárie à natureza e de civilização à cultura, a oposição entre a terra inculta e o ''campo'' cultivado, entre o rústico gentio local e o laborioso campônio imigrante. Interessa observar como, acima de tudo, ressoa, incomensurável, imenso, gigantesco, o DESERTO. Insatisfeito com sua descrição, Sarmiento apela para uma citação legitimadora: a representação literária do ''Deserto'', no canto homônimo de La cautiva, texto que trouxe a designação dos documentos e mapas do século XVIII para a literatura. Como explica Alicia Carrera: ''En 1703 el cartógrafo francés Guillaume de L'Isle, em su Carte du Paraguay, du Chili, du Detroit de Magellan, denomina deserts el Valle superior del Salado (...) y utiliza el término pampas como gentilicio al referirse al pays des pampas:'' (1979, p. 51). Em 1736, o padre Lozano expressa, na Historia de la conquista del Rio de la Plata: ''las llamaba el ilustrísimo señor Vitoria (...) maremagnum terrestre, al modo que llaman mares arenosos a los vastísimos campos llenos de arena y sal que ocurren a los que de Siria van por Persia a la India'' (ibidem, p. 52). Lozano estabelece a diferença entre o ''célebre desierto que acá llamamos Pampas'' (p. 52) e as terras africanas e orientais calcada no fato de que são férteis, sustentam gado, além de serem habitadas por ''muchos infieles'' (p. 53). Para Sarmiento, são os ''salvajes'' ''que aguardan las noches de luna para caer cual enjambres de hienas, sobre los ganados que pacen en los campos y sobre las indefensas poblaciones'' (1989, p. 49-50).

Viñas já analisou a expansão da fronteira argentina, através do extermínio, durante o século XIX, de milhões de indígenas, do Chaco à Patagônia, num processo que define como Segunda Conquista. Importa recordar como o genocídio foi legitimado através do discurso letrado, para o que se reforçam associações que remontam à tradição judaico-cristã, matriz do pensamento católico colonial. Segundo este, o deserto se associa a provação, encontro com a morte, solidão, peregrinação, purgação, como nas hagiografias. Carregado de símbolos e promessas, espaço de contigüidade com o animal, o eremita, o selvagem. Os índios, por sua vez, associadas aos infiéis da Reconquista, são assimilados à imagem do homem selvagem, que transita em textos históricos ou literários, vinculado à barbárie, em processo de demonização progressiva que culmina no Romantismo na festa sabática com que lhes brinda Echeverría, no canto ''El festín'' de La Cautiva.

Sarmiento confessará que conhecia o pampa somente de relatos ''histórico-geográficos'', literários e pictográficos. Diz ele a Gutiérrez, de Milão, em carta de 6/5/1847: ''no he cruzado la pampa hasta Buenos Aires, habiendo obtenido la descripción de los arrieros sanjuaninos que la atraviesan todos los años, de los poetas como Echeverría, i de los militares de la guerra civil.'' (1997, p. 263). Na Divina Comédia, o poeta diz encontrar-se no meio de grande deserto. Em notas, explica que se trata de viagem alegórica aos males do país (no caso, Florença). Também para Sarmiento, o deserto argentino se associa a vazio de idéias e possibilidades, dentro de sua visão moldada por uma imaginação colonizada. Ao chegar ao Rio de Janeiro, ele repete célebres preconceitos: nos trópicos, ''lo que no alcanza a ser bello, es monstruoso y repugnante'' (1997, p. 58). Embora afinal se renda às belezas tropicais, quanto aos elementos culturais é taxativo. Queixa-se do calor demasiado, que lhe tolda a razão, e despreza a vida cultural, explicando sumariamente: ''En matéria de bellas artes i de monarquía, me guardo para ir a verlas en su cuna, que aqui sus imitaciones me parecen mamarrachos i parodias necias.'' (ibidem, p. 67-8)

b) A selva-deserto

A selva, mais precisamente a amazônica, será outro dos espaços-chave do imaginário latino-americano. Se o deserto é a negação, o vazio e a perdição, a selva surge como espaço pleno de possibilidades, associada a uma série de utopias medievais, ligadas a abundância, fartura, satisfação sexual ou longevidade. Ali se encontraria a terra da Cocanha, o Eldorado, regiões habitadas por seres mitológico-legendários (canibais, híbridos e monstros, espíritos da floresta, animais imensuráveis), e evidentemente as amazonas, que representariam o ideal da conquista da natureza através da sedução, no imaginário grego.

Viajantes em busca de riquezas, de almas a salvar, de conquista de territórios. Sucedem-se no decorrer dos séculos súmulas e relatos de expedições, de conquistadores, exploradores, aventureiros, missionários, mas o caráter das descrições e seus objetivos são quase sempre os mesmos. Comparemos alguns deles, relacionando a visão da natureza e a descrição do povo shuar, um dos mais representativos da região. Em 1792, o jesuíta Juan de Velasco comenta: ''los jíbaros, en el Reino de Quito, fueron y son hasta ahora, por su multitud y su ferocidad, lo mismo que los Araucanos en el reino de Chile.''(1981, p. 240) Sobre a região, lembrará: ''la capital de aquel reino, al cual llamaban el Dorado, era la ciudad de Manoa, (...) no muy distante de las riberas del Marañón. (...) Esta [la ciudad] era como la que vio San Juan en su Apocalipsis, esto es, fabricada toda de oro purísimo y de preciosas piedras'' (ibidem, p. 463). Em 1910, o dominicano Allioni será taxativo na descrição deste povo: ''es un pueblo absolutamente primitivo, que vive al estado natural. (...) No tiene sociedad política, no tiene historia o tradiciones históricas, no tiene una religión concreta'' (1978, p. 9). Ressalte-se a relação que estabelece entre ''ausência de civilização'' e abundância ou pujança da natureza: ''la fecundidad sorprendente del suelo hace que el primitivo encuentre cerca de su casa lo que necesita para vivir. Hasta ahora no siente la necesidad de la vida civilizada'' (p. 9). Outro aspecto que destaca é o caráter impenetrável da selva, ''les sirve para atacar y para defenderse''.

Em Cumandá, o mais famoso romance indianista, de 1872, passado na selva amazônica, a aurea patria, se realiza a utopia ideal: o extermínio do mau selvagem, no caso o povo shuar, tratado segundo a designação pejorativa de jívaro, a catequese do bom selvagem, no caso os aculturados (e hoje extintos) záparos, as relações familiares e sexuais delimitadas por classes e raças. Nesta obra, coloca-se, ademais, em questão, a posse das terras amazônicas, consubstanciada nas lutas de fronteira, onde o Equador perde quase dois terços do território para seus vizinhos. É curioso observar o diálogo que trava com o discurso de viagens, como o narrador atua como guia turístico direcionando os sentidos do leitor através do cenário luxuriante e misterioso. Sua representação da natureza segue a perspectiva religiosa de concretização de misteriosos desígnios divinos. O sublime romântico e a espiritualidade nos aproximam outra vez da utopia genésica: ''no hay más que la vaga e indecisa línea del horizonte entre los espacios celestes y la superficie de las selvas, en la que se mueve el espíritu de Dios como antes de los tiempos se movia sobre la superfície de las águas.'' (p. 8-9). Bons selvagens, os záparos vivem idilicamente, perto de ''rios de auríferas arenas y mitológica belleza'' (p. 15). Quanto à terra dos jíbaros, não se exime de descrevê-las como célebres por ''sus minas de metales preciosos y sus mármoles tan bellos como los de Paros y Carrara.'' (p. 15-6).

Da mesma forma como o termo ''deserto'' correspondia menos a uma categorização geográfica, já que eram terras férteis e habitadas, tampouco a selva era cenário virginal e intocado. Estudos recentes comprovam que ocorreu a antropização do ecossistema florestal, o que contraria a versão da ''natureza virgem''. Como lembra o etnólogo Philippe Descola, ''a fisionomia atual da floresta amazônica é em parte resultado de vários milênios de ocupação humana. (...) Nessa região, portanto, a natureza é na verdade muito pouco natural, podendo ao contrário ser considerada o produto cultural de uma manipulação muito antiga da fauna e da flora''. (p. 115), invisível aos olhos ocidentais por não-predatória e pela integração entre ambiente e vida social, humanos e não-humanos, natureza e sociedade.

 

Conclusão

O relato funda o território. O narrador estabelece matrizes da narrativa de ficção. Fixa-se no imaginário a adesão aos projetos implícitos nas obras, a uma forma de olhar. O viajante real ou fingido é o intermediário gabaritado que decodifica os elementos da paisagem, definindo fronteiras e atores dignos de participar do processo histórico. Hoje, as populações indígenas sobrevivem em ''reservas'' e lutam por manter seus pequenos territórios e o direito à existência; os pampas se converteram em fazendas, o deserto incomensurável foi medido e dividido, entre tantos proprietários. Na Amazônia, nos territórios shuar, sobrevive uma população que explora racionalmente os recursos naturais e luta pelo reconhecimento dentro da nação equatoriana. Podem estar nas páginas coloridas dos guias turísticas, como seres exóticos; mas também ocupam manchetes de jornal, como agentes históricos, prontos para desafiar prognósticos neocoloniais.

 

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