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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002

 

Os meandros do tempo em A guerra do fim do mundo de Mario Vargas Llosa

 

 

Edna Castilho Peres

UNESP
UEM

 

 

O novo romance histórico desponta, soberano, como forma de reconstruir o passado através da arte da palavra. Na literatura atual, este subgênero reveste-se de outra roupagem e se instala com características próprias no campo artístico-literário. O crítico literário uruguaio Fernando Ainsa (1988) lhe dá destaque e o consagra como narrativa pós-moderna, sobretudo na América hispano-americana; por ele, os autores revêem a história, parodiando de modo crítico, satírico ou grotesco. Desarranjam a ordem dos fatos, destroem heróis, enaltecem mitos até então desprezados e, através da ficção, contestam a realidade histórica e reconstroem o que haviam destruído, sempre tendo por base grandes eventos dos povos e grandes mitos da humanidade apresentados nos anais da História.

Na historiografia, o episódio de Canudos tem sido fartamente retratado em textos substanciosos, como ''Os sertões'' de Euclides da Cunha (1902), um cânone brasileiro; também os compêndios didáticos oportunamente falam daquela guerra. Poucos fizeram uma abordagem ficcional. Vargas Llosa, escritor peruano, como grande romancista hispano-americano, deu tratamento poético ao tema. Em dezembro de 1981 publicou ''La guerra del fin del mundo'', que se sobressai dentre as produções literárias que vão buscar na História a inspiração ou a matéria com que recheiam os textos. Obras desse porte merecem análise; é o que pretendemos ao examinar a organização discursiva da narração nesta obra (versão em português), no que se refere ao tempo. Deixando de lado a linearidade histórica, este passa a ser psicológico, desenhando meandros entre presente e passado.

O escritor, narrador onisciente, narra numa seqüência que determina ao estabelecer o plano da obra, no caso do novo romance histórico, com estrutura temporal propositadamente truncada. Vargas Llosa teve o cuidado de estabelecer certa simetria em linha quase senoidal para a disposição do tempo. Propôs então uma ordem dita psicológica e a sedimentou dando voz aos actantes do enredo, ou seja, de acordo com os estados emocionais deles. Este é o recurso maior de que lança mão, mantendo-se narrador ausente; com estrutura narrativa do palimpsesto, por artimanhas discursivas, joga com presente e pretérito dos tempos verbais, sobrepondo épocas passadas e presentes no ato de narrar. É através de formas verbais que fixa o roteiro temporal que tencionou dar ao texto.

 

A História e a história no novo romance histórico

Os seres humanos agem dentro de um espaço físico e de um espaço temporal, criando fatos e acontecimentos que podem ser narrados através da linguagem. Estas narrativas podem ser históricas ou ficcionais: a história é a narração de eventos passados, baseada no real e se diz racional; a outra é imaginária. Roland Barthes discute se realmente uma difere da outra e como estas se enquadram no sistema discursivo. Abordando a questão da organização do discurso, conclui que a História não é ciência totalmente exata pelos critérios da veracidade e isto é o que a aproxima da ficção, até porque o seu discurso é uma construção lingüística em que os fatos são definidos com a intervenção da linguagem. E o discurso ficcional histórico baseia-se nesta história assim posta; acaba sendo o relato de um relato.

O tratamento da matéria histórica confere novos rumos à narrativa hispano-americana contemporânea, aproximando o escritor ficcional do historiador. Este narra os feitos segundo uma lógica estrutural linear, com dados selecionados e contestados, estudados em sua pretensa verdade. Aquele pode cometer excesso imaginativo e ver os fatos por uma lógica artística. Entretanto, na pós-modernidade, o romancista assume uma cientificidade que se evidencia nas linguagens especializadas e intertextualizadas; leva rigorosamente em conta a historiografia ao compor sua obra, sem contudo deixar a originalidade de lado. Neste aspecto, o fator tempo lhe propicia a expansão da criatividade talvez mais do que os outros elementos da narrativa, ficando limitado apenas pelos percalços da representatividade da linguagem quando vai beber na fonte da História, na produção de uma história romanceada. Fernando Ainsa chega a afirmar que o novo romance histórico tem a pretensão de desmontar a história tradicional, recontando-a sob uma nova ótica.

 

O discurso da narração

A nova modalidade de romance – o histórico – toma para si o trabalho de harmonizar as aporias fenomenológicas do ser humano com relação ao tempo, através da narratividade. O próprio Vargas Llosa afirma que há uma obsessão do homem por sua história, pela sua identidade; este pendor se revela pelo ato de narrar. Para Benedito Nunes, ''narrar é contar uma história, e contar uma história é desenrolar a experiência humana do tempo''. Para ele, a narrativa histórica, por força da mimese, isto é, da recriação da realidade, liga o tempo natural ao cronológico pelo discurso materializado no texto, de acordo com a dinâmica do enredo. Como o discurso é atividade lingüística sobre as múltiplas ocorrências da vida do indivíduo, nele a língua é atualizada num dado momento (tempo verbal da narração), do ponto de vista de um eu situado. No discurso narrativo, não só o pronome e nem só o verbo se prestam a designar pessoa e tempo; há estruturas lingüísticas e estéticas capazes de materializar estas idéias na construção discursiva: a elaboração supra-lingüística pode garantir o trânsito temporal. É o que Vargas Llosa faz com engenho e arte quando trata da guerra.

 

Antonio Conselheiro e o arraial de Canudos

Alentados pelas promessas de vida melhor, os sertanejos formaram o grande arraial, quase um paraíso, uma comunidade produtiva, dirigida por Antônio Conselheiro, em plena caatinga, às margens do rio Vaza-barris. Este, já quase septuagenário, e seu grupo não representavam, em si, ameaça real ao governo, que mal sabia do que se passava naquela localidade. O fato mais grave tinha sido aquele de 1893, quando, ao passar por Natuba, o líder religioso mandara arrancar e queimar as ordens de cobrança de impostos, coladas nos postes da cidade. Tempos depois, duas expedições tinham sido desafiadas e o líder rebelde e seus liderados poderiam se transformar em perigoso foco de subversão, tornando-se, assim, ameaça à ordem republicana. Daí a decisão de eliminá-lo, matar seus ''jagunços'' e demolir o povoado.

 

A guerra reconstruída por Vargas Llosa

a) O tempo da narração

Em confronto com o tempo do narrado, o tempo da narração parece um labirinto cronológico artisticamente arquitetado como releitura da História. Em artigo sobre o novo romance histórico latino-americano, Esteves e Milton (2001) apontam as características deste subgênero (dentre as quais a superposição de tempos históricos diferentes) baseados nas teorias de Menton. Daí destacamos a ''anacronia'' por ser justamente isto o que ocorre no romance. Também Ainsa refere-se à possibilidade de o artista-escritor fazer os tempos se interpenetrarem na composição da trama. Em ''A guerra do fim do mundo'', sobre o presente histórico da narração incidem os demais tempos. ''Há uma distorção consciente da história'', no caso, mediante os anacronismos; estabelece-se um tempo fictício para o percurso narrativo do texto.

Nesta narrativa ficcional, o tempo, textualmente marcado de 1877 a 1898, não coincide com o da maioria das obras historiográficas, que o computam linearmente de 1893 a 1897, sendo a guerra propriamente dita de novembro de 1896 a outubro de 1897. Nela o leitor é remetido ao antes e ao depois do evento que deu vez ao romance. Inicia-se o texto com as peregrinações do Conselheiro, oportunidade para o autor compor o quadro de uma parte da ''população'' dos personagens; em cada lugar, novos seguidores se juntam ao bando, cada um com suas peculiaridades. A partir de 2-10-1896, forma-se o segundo grupo: soldados, latifundiários, políticos e jornalistas. A narrativa volta então para os sertanejos e suas intrigas em 1877 e anos seguintes, quando mais personagens se incorporam à trama. A rede temporal se tece agora durante a guerra e se alonga até meses depois de a guerra acabada, quando o jornalista míope reconstitui a experiência que teve em Canudos, narrando a história num quase-monólogo diante de um entristecido barão de Canabrava.

Apesar da evidente anacronia, Llosa põe ordem no caos por conta de três fatores: a organização discursiva, a aproximação com as datas da História e a certeza da compreensão prévia do seu interlocutor, que se esforça por deslindar o mistério do tempo ficcional.

b) Recursos narrativos presentes no texto

No discurso narrativo da ficção, o texto é elaborado de maneira poética, quer dizer, a linguagem tem ênfase na mensagem, conforme Jackobson. No romance, como gênero literário, há um entrelaçamento das linhas de ocupação e disposição espacial e temporal. Levando em conta o homem, a realidade e a expressão, Vargas Llosa organiza seu texto aproveitando-se de recursos discursivos, lingüísticos e literários, de modo a exprimir de forma estética vivências humanas; faz um uso especial do discurso, criando a configuração mimética do real.

Interessa-nos aqui tratar sobre o que o autor fez para recolocar à sua moda, o tempo cronológico e como ele estabeleceu a ordem dos acontecimentos em sua obra. Em outras palavras, usando que artifícios expressivos ele conta a um auditório o que se passou em Canudos e como ele formula as relações dialéticas entre uma realidade concreta e a realidade da literatura. Neste mister, nosso romancista conta com os personagens que criou, dando-lhes voz e, por ela, estabelece a seqüência narrativa.

Como narrador onisciente, o autor vai narrando e, numerosas vezes dá voz aos personagens para que eles próprios falem de suas ações e dos lugares (caso do frenólogo Galileu Gall). Após mapear as formas verbais e pessoas do discurso nos quatro capítulos, foi possível associar o tempo da narração a cada um dos personagens principais, isto é, aqueles que tiveram voz e contaram a história. Aliás, a fábula foi duplamente apresentada: pelo narrador e seus coadjuvantes e, depois, pelo jornalista míope. Foram duas visões de um mesmo episódio, narrado consoante ao ponto de vista de cada um.

No plano global, a narração transcorre entre os acontecimentos no sertão e os reflexos que eles impunham ao pessoal do litoral e também na dualidade republicanos/monarquistas. No início do romance, a bipolaridade sertão/capital litorânea é mostrada pela oposição dos tempos verbais: pretérito/presente. Entretanto, este é um presente fingido que a gramática denomina presente histórico ou narrativo, como assinalam Lindley & Cintra: ''um processo de dramatização lingüística pelo qual o narrador, referindo-se a um evento passado, trata-o como se estivesse acontecendo no agora narrativo''; induz a um processo psicológico de volta no tempo, com sabor de atualidade que aproxima o leitor do fato narrado.

Na seqüência da narração, predominam os pretéritos (perfeito, imperfeito e mais-que-perfeito) alternando com o presente e, muito raramente o futuro (do presente e do pretérito); neste último caso, nas digressões e diálogos. Evidentemente, o recurso de que se vale o romancista é, com certeza, o lingüístico: por meio de formas verbais nas falas dos personagens estabelece os meandros temporais que há de percorrer o leitor para ''receber'' a obra.

c) Composição do enredo em razão do tempo

Muitos autores já escreveram sobre a guerra de Canudos, mas ninguém o fez como Vargas Llosa. Na verdade, ele enredou personagens e ações, desmontando a cronologia da história, refazendo-a de modo mirabolante. Como o enredo é a organização artística da fábula, quer dizer, é a maneira como a matéria narrada é apresentada ao leitor, o romancista histórico tem todo o direito de dar a ordem que desejar nos episódios, desde que dê um encaminhamento global das seqüências no interior do texto narrativo. Isto se dá pela articulação e interdependência dos planos do discurso que narra e da história que é narrada.

Comentamos no tópico anterior, que a trama girou entre passado e presente no início da narrativa. No segundo capítulo, por um processo de analepse, a linha temporal do enredo é quebrada e o produtor do texto coloca o leitor num momento especial: está-se em Salvador, na redação do Jornal de Notícias com o jornalista míope apresentando ao proprietário do periódico, Epaminondas Gonçalves, o rascunho da reportagem sobre a derrota da expedição do major Febrônio de Brito e o pedido de intervenção do governo federal na Bahia a fim de ''aniquilar o movimento subversivo de Antônio Conselheiro''. A crônica política dá conta, ainda, das discussões ocorridas na Assembléia Legislativa, narrada com verbos no pretérito perfeito, como se fosse uma ata. Então o discurso que narra a história ficcional torna a apresentar verbos no presente, uma vez que retrata o diálogo entre patrão e empregado, numa apreciação sobre a notícia redigida. Após ser elogiado, o jornalista pede para acompanhar a expedição de Moreira César.

É assim que se articula novamente a volta ao passado: o capítulo três ambienta-se todo ele no sertão, no ano de 1897, o auge da guerra. Entre Queimadas, referida com verbos no presente (fingido), e as demais povoações, com verbos no pretérito (perfeito e imperfeito), o narrador fala de um passado (que para o leitor já é super-passado), desde a chegada de Moreira César e sua comitiva, em janeiro, até o mês de outubro daquele fatídico ano. Fica no ar o desfecho deste momento, obviamente de propósito, para que a história seja contada, meses depois, como reminiscência de um passado próximo. O quarto capítulo enreda-se com o diálogo entre o jornalista e o barão de Canabrava; misturam-se aí um passado e dois presentes: um presente da narrativa, quando os dois conversam, e um presente histórico, quando falam dos tempos idos como se fosse ''o hoje deles''. E a trama se fecha neste presente, com duas formas verbais representativas: diz (a velhinha) e eu vi. Presente e passado convivem equilibradamente por obra e graça do discurso narrativo lingüisticamente representado.

 

E o tempo não é mais o mesmo

a) A inventividade que garante a narrativa

A linguagem permite transitar, no discurso da narração, entre espaços temporais tão diversos quanto sobrepostos. O romancista, aproveitando-se do poder das palavras, dá asas à imaginação e recria a história, parodia os acontecimentos, dando-lhes, inclusive, uma seqüência temporal fictícia. Claro, ele apresenta a fábula pela ótica da estética e, numa atividade lúdica, faz poesia no texto literário. É assim que Vargas Llosa destrói a linearidade do tempo histórico e lhe dá contornos psicológicos centrados no emocional de seus personagens. É de fato uma arte estruturar as ações dos personagens de maneira não-linear e organizar as suas falas (no plano da linguagem), alternando-as com as do narrador (no plano do discurso) de modo a formar um todo significativo e inteligível.

Assim, o romancista foi inventivo quando compôs os personagens, tirando-os do sertão agreste, da sociedade burguesa da época, da vida pública político-administrativa, de profissionais autônomos e de alguns párias. Foi original ao mitificar Conselheiro, desfocando-o em seu romance e valorizando a guerra em si e o fanatismo como barbárie. Entretanto, como arquiteto da cronologia, ele foi único e exemplar; contou a história num vai-e-vem crônico engendrado de tal modo que o percurso da narração se mostrou atraente, dinâmico e coeso, sendo também coerente com o narrado pela historiografia, no que concerne às datas.

b) Acertando o calendário: confronto entre o tempo do narrado e o tempo da narração

Numa linha senoidal, é possível confrontar o tempo em que transcorreu o evento narrado na História dos brasileiros e o tempo da narração ficcional de Mário Vargas Llosa, demonstrando que, realmente, os dias, meses e anos formaram meandros no romance. Percorrendo a trajetória do tempo, desde 1877 até 1898, a narração abarca o início da vida do Conselheiro, vindo do Ceará para o nordeste baiano, quando arregimenta fiéis para a sua causa. Prossegue com os episódios de 1893 e 1894, prelúdios da guerra; vai depois para 1896, com os combates já em andamento, e 1897, com as lutas entre sertanejos/jagunços e soldados e policiais do Exército, ao que chamou de Campanha de Canudos. Meses depois, já em 1898, pelo artifício das rememorações, o tempo vai e vem entre 1897 e 1898, terminando justamente com a destruição do arraial (que fora incendiado) e com as falas de dois personagens, um conhecido e um anônimo, dando conta do acontecido com o último homem forte da resistência sertaneja, João Abade. ''Foi levado aos céus'', revelou a desconhecida personagem ao poderoso alferes Maranhão.

E a romanesca história caminhou paralelamente à História oficial, com os acontecimentos no tempo real de suas concretudes, porém situados no discurso da narração numa ordem ficcional, artística. Com isto, é possível representar em gráfico os meandros que o romancista desenhou em sua obra.

 

Referências bibliográficas

AINSA, F. La nueva novela histórica latinoamericana. México: Plural, 1991.

BARTHES, R. O rumor da língua. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo.

ELMORE, P. La fábrica de la memoria. Lima: FCE, 1997 (1º cap.).

ESTEVES, A. R. & MILTON, H. C. O novo romance histórico hispano-americano. In: MILTON, H. C. & SPERA, J. M. S. (orgs.) Estudos de literatura e lingüística. Assis-SP: Unesp, 2001.

LUKÁCS, G. La novela histórica. México: Era, 1977 (cap. I).

MENDILOW, A. A. O tempo e o romance. Porto Alegre, Globo, 1969.

NUNES, B. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1988.

VARGAS – LLOSA, M. A guerra do fim do mundo. trad. Remy Gorga, Filho. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1985.