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An. 2. Congr. Bras. Hispanistas Oct. 2002

 

A presença da morte no romance O general em seu labirinto, de Gabriel García Márquez

 

 

Evely Vânia Libanori

UNESP

UEM

 

 

O romance histórico O general em seu labirinto, de Gabriel García Márquez tem como personagem central o líder político Simón Bolívar, Libertador da América do Sul. Conhecido como o grande líder revolucionário e libertador de sete países da América do Sul do jugo europeu, Bolívar é enfocado em seus últimos meses de vida. O homem forte e audaz que chefiava exércitos se vê só, doente e desiludido com a política, em companhia do serviçal José Palácios. A narrativa começa no momento em que terminam as batalhas mais importantes de Bolívar. Esta fase é a menos documentada da vida do general porque não há nenhuma ação que vá incidir nos rumos deste ou daquele país, o que caracteriza o fato histórico. À História, não interessa a vida do indivíduo, mas as ações de uma coletividade. O homem, em seu exercício pessoal de viver, pouco representa para os anais históricos, entendidos enquanto fonte de saber científico e objetivo. Mata Indurain (1995) comentou o árduo processo do autor de romances históricos para reconstruir o estado psicológico das personagens históricas. Há, segundo o autor, uma barreira na recriação do perfil emocional dominante em determinada época histórica, dada a intrínseca dificuldade de observação da interioridade da natureza humana. A recomposição de valores e hábitos sociais implica atividade menos árdua do que a recuperação do estado de ânimo de certo período histórico. Mata Indurain (1995, p.54) esclarece: "Una posible solución para que los personajes resulten interesantes y creíbles, sin necesidad de modernizar su psicología, consiste en enfrentalos com problemas eternos, como el amor, la ambición o la envidia."

Em vez de tratar de um destes temas, García Márquez preferiu abordar outro problema eterno do homem: a morte. O objetivo deste trabalho será o de investigar os procedimentos narrativos que, na organização textual deste romance histórico, colaboram para a construção direta ou indireta de imagens vinculadas à morte e à finitude. Pretendemos demonstrar que, ao longo da estrutura discursiva, a personagem histórica Simón Bolívar é desvelada em suas camadas interiores ao mesmo tempo em que se constrói todo um universo de significação vinculado à morte.

Toda a construção textual constitui-se uma grande metáfora para a morte. Paradoxalmente, apenas a personagem central não se refere à iminência do seu próprio fim. Apenas no final do texto, Bolívar se dá conta de que está para morrer. Tanto o narrador onisciente quanto as demais personagens do texto sabem da exigüidade da vida da personagem central, menos ela própria. Há várias referências do narrador sobre a maneira como Bolívar vê a cessação da vida, mas elas sempre atestam uma visão da morte como verdade experimental e não como verdade particular e individualizada: "Sempre encarara a morte como um risco profissional sem remédio." (García Márquez, 2000, p.16). A morte é pensada em seus aspectos materiais e não enquanto possibilidade ontológica. Bolívar não adentra o terreno metafísico ao pensar na efemeridade da vida humana porque está por demais integrado ao mundo social e físico e dele não se dissocia para problematizar o acontecimento mais absolutamente pessoal e intransferível, tirante o nascimento. Sua atitude traduz a convicção do homem que sempre cumpriu um papel social e, por isso, não pode temer seu destino. Neste sentido, a relação do herói com o mundo circundante ganha um sentido épico: o homem pensa a sua vida como indissociavelmente ligada à vida de uma comunidade. Não há espaço, na narrativa épica, para a exposição de dramas pessoais, pois, em defesa do interesse coletivo, não pode haver prioridade para com o indivíduo. Mesmo em situações extremas, a combatividade do herói épico não permite lugar para um comportamento de entrega à melancolia e ao lamento, o que traduziria uma postura egocêntrica. A integração do herói com a vida pública e o comprometimento com a causa social impedem, nos textos épicos, os conflitos existenciais quando da constatação da derrota pessoal. No texto de García Márquez, a integração homem-coletividade, provoca, ainda, a dificuldade para a constatação da iminência da morte, iminência esta já denunciável na decrepitude do corpo do militar precocemente envelhecido. A vida vivida para a comunidade aguça a percepção sobre os comportamentos sociais, mas, em consequência, traz certo alheamento de si. Em relação a si mesmo, Bolívar é aquele que não vê, aquele que não sabe uma verdade já conhecida por todos que convivem com ele. O desconhecimento da proximidade da morte, desta forma, faz com que a trajetória de Bolívar aproxime-se à de um cortejo fúnebre. Metaforicamente, ele é o defunto em sua última viagem, objeto de reverência e despedida: "todos os que o viram passar sob os arcos de flores acharam com assombro que só vinha para morrer." (idem, p.23). Sem saber, Bolívar deflagra a definitiva viagem rumo à grande verdade da vida humana.

O que se constrói, neste romance, portanto, não é a figura do militar intrépido e glorioso em suas conquistas, embora esta figura não seja negada enquanto passado. Trata-se de contar, não a vida do general mitificado, excessivamente registrada em documentos históricos, mas de contar aquilo que não interessa para os anais históricos: a luta de Bolívar contra a indigência do corpo, em duelo inconsciente com seu destino. Neste sentido, interessam o estado interior e as sensações de Bolívar ante si mesmo e o outro e não os acontecimentos passados.

Nesta obra, o procedimento literário adotado para a exposição da intimidade de Bolívar é o de fazê-lo descer do pedestal para revirar-lhe em seu itinerário cotidiano, itinerário este cercado de detalhes sobre suas inúmeras mazelas. Não há, no entanto, intenção de destruir uma imagem para, em seu lugar, construir outra uma imagem, no sentido de veicular uma outra verdade. De fato, o novo romance histórico e, neste sentido, o romance de García Márquez, não pretende corresponder à versão oficial de uma verdade historicamente documentada, nem para afirmá-la, nem para negá-la. É característico do novo romance histórico sua natureza híbrida: misto de invenção e de realidade documentada. A verdade objetiva, ponto de chegada dos historiadores, é ponto de partida e matéria romanesca. Os fatos históricos são o pano de fundo para o exercício da função criadora do romance.

Os acontecimentos do romance histórico O general em seu labirinto se passam às margens do rio Magdalena e o elemento "rio" tem, na literatura ocidental, intenção de simbolizar o fluir temporal e a fugacidade de todas as coisas. A viagem pelas margens do rio significa, no texto, a vida em curso e a inexorabilidade da morte. Temos, pois, o grande símbolo da morte na composição do tecido narrativo. A corrente das águas do rio metaforiza o transcorrer da vida e as sucessivas mudanças operadas ao longo da existência. Não sem razão, uma das mais antigas referências à simbologia da água na cultura ocidental provém do filósofo grego Heráclito (1999, p.31), um dos primeiros filósofos a abordar as implicações ontológicas do fluxo temporal. Para ele, o mundo constituía-se num eterno fluir, como um rio, o que tornava impossível a um homem banhar-se duas vezes na mesma água.

Logo no pórtico do romance, temos a referência à água como elemento construtor do quadro de composição do perfil de Bolívar: "José Palácios, seu servidor mais antigo, o encontrou boiando nas águas depurativas da banheira, nu e de olhos abertos, e pensou que tinha se afogado. Sabia que esta era uma de suas muitas maneira de meditar, mas o estado de êxtase em que jazia à deriva parecia de alguém que já não era deste mundo." (García Márquez, 2000, p.11). Este excerto inaugural revela que, no processo de recriação de Bolívar tem mais importância o "homem" do que o "general", uma vez que ele está despido das vestes militares. A abertura do texto com a focalização de Bolívar nu, na banheira, é elemento sinalizador do distanciamento da personagem em relação à face que o mundo social conhece. De fato, o mergulho na banheira medicinal deflagra o processo de humanização da personagem, uma vez que ela é conduzida a um nível primordial, em que nada está oculto. Simón Bolívar é retirado da convivência político-social e é exposto na sua solidão existencial. Cumprida sua função militar, o ex-general agora terá de se preparar para o exercício cotidiano do viver. A água depurativa em que Bolívar flutua associa-se à ação vital do líquido materno, elemento ligado à idéia de segurança e bem-estar. Paradoxalmente, neste nascimento simbólico, a morte revela-se a possibilidade da existência. Ao mesmo tempo em se que descreve um estado primordial, a descrição vem permeada de conotações ligadas à morte. O uso do verbo jazer corrobora tal conotação. Simbolicamente, o texto constrói a figura do militar morto que, por estar morto, faz levantar o homem também prestes a morrer.

A organização textual é conduzida por um narrador em terceira pessoa que se coloca numa posição de onde tem amplo acesso ao saber das personagens. A voz onisciente que narra, portanto, está autorizada para desvelar os pensamentos de todas as personagens do romance, pois ela pode penetrar no mais recôndito dos seus pensamentos. Contudo, sua atitude narrativa não é a de interpretar estados emocionais ou ações práticas. Sua intenção primeira é mostrar as situações para que delas o leitor extraia ou formule possiblidades de sentido. Em alguns momentos, o narrador relativiza a onisciência para que a própria personagem se revele através de suas ações ou através de sua aparência:

Vinte e quatro anos depois, absorto na magia do rio, moribundo e derrotado, talvez se perguntasse se não teria a coragem de mandar al carajo as folhas de orégão e de salva-brava, e as laranjas amargas dos banhos de distração de José Palácios, para seguir o conselho de Carreño e submergir até o fundo, com seus exércitos de mendigos, suas glórias imprestáveis, seus erros famosos, a pátria inteira, num oceano redentor de erva-cidreira roxa. (idem, p.136)

O uso da palavra dubitativa "talvez" cria um vazio constitutivo de sentido que deverá ser preenchido pelo leitor para a concretização dos efeitos estéticos do texto. Neste momento, não se pode ter certeza da real intenção de Bolívar. O uso do advérbio deixa em aberto uma possibilidade de descrença na vida e nas próprias ações e uma procura voluntária da morte redentora. O mergulho de si mesmo e também dos exércitos, glórias, erros e pátria "num oceano redentor de erva-cidreira roxa" ao mesmo tempo em que revela uma possível intenção de fuga da vida revela a fusão do indivíduo com os valores que sempre defendeu. Se existe, por um lado, um processo de depreciação de si mesmo e destes valores num momento presente, existe, por outro, a relevância dada, no passado, a tais valores. Embora não se possa afirmar a verdadeira intenção da personagem central, pode-se destacar as águas do rio como um símbolo do fluir temporal, símbolo recorrente no texto. Mergulhar "num oceano de erva-cidreira roxa" é praticar a ação de um Narciso às avessas: consciente de sua debilidade física e da impotência moral para mudar o estado de coisas, o mergulho não significa a busca, mas sim a saída de si mesmo. Ressalte-se, contudo, que, mesmo uma intenção de saída de si é resultado de um desgosto público. Não se constata, em Bolívar, uma tal intensificação dos problemas individuais que justificasse a morte como solução. Em vários outros momentos, o universo textual apresenta a personagem central em situações em que a água é o elemento que prenuncia a morte iminente: "Encontrou-o flutuando de costas nas águas perfumadas da banheira e só não acreditou que estivesse morto porque muitas vezes o tinha visto a meditar naquele estado de graça" (idem, p.59). "Dessa vez, de qualquer modo, nadou sem cansaço durante meia hora, mas o que viram suas costas de cachorro e suas pernas raquíticas não entenderam como podia continuar vivo com tão pouco corpo." (idem, p.79). Nas águas, Bolívar revela-se tal como é: semimorto e desafiador de explicações para uma firmeza de propósitos que sobrevivem à própria condição comprometida do corpo.

A imagem da morte também é construída também através do estado de nudez em que se apresenta Bolívar em diversos pontos da narrativa. Necessário esclarecer que, mais explicitamente, a nudez evoca a debilidade física e a privação material da personagem, mas também está associada à idéia de isolamento e ruína pessoal, como se pode constatar no seguinte fragmento: "Levantava para caminhar no escuro pela enorme casa lunar, só que já não podia andar nu, e se embrulhava numa manta para não tiritar de frio nas noites de calor." (idem, p.215). Neste caso, o estado de fragilidade do corpo deve ser protegido pelo uso da manta. No entanto, em vez de mascarar, a manta só revela ainda mais a proximidade da morte, uma vez que constitui a imagem de Bolívar no interior lúgubre de uma "casa lunar". Todo o ambiente fica, assim, impregnado com uma evidente conotação fúnebre. Tal como Adão, após ter praticado uma ação que libertou o homem de um destino opressor, ditado pelo outro, Bolívar percebe-se nu e tenta esconder sua nudez para escapar ao castigo do temível Criador. No entanto, diferentemente do homem primigênio, Bolívar não tem diante de si outro Senhor irascível senão a própria vida. A aproximação da nudez de Bolívar com uma atmosfera macabra mais uma vez pode ser percebida neste excerto: "Tinha por hábito se levantar da cama e perambular nu até o amanhecer para entreter a insônia quando não havia mais ninguém em casa. José Palacios o procurou com um cobertor na casa iluminada pelo luar verde e encontrou-o encostado num poial do corredor, como uma estátua sobre um túmulo funerário." (idem, p.53). Neste caso, a própria descrição do hábito da personagem explicita a mimetização da sua figura com o ambiente de cemitérios. Ao perambular no meio da noite, sozinho e nu, Bolívar se comporta como um zumbi que saltou para um mundo que não mais lhe pertence.

Em certos momentos, o narrador o focaliza em tal condição de falência anímica que o faz regredir às primeiras fases do processo de desenvolvimento humano, tamanho seu grau de dependência de outras pessoas: "Fernanda Barriga tinha o costume de lhe pôr um babador e dar a comida com uma colher, como às crianças, e ele a aceitava e mastigava em silêncio, chegando a tornar a abrir a boca, ao terminar. (idem, p.214). Trata-se de um procedimento narrativo revelador de uma cadeia temporal cíclica. A passagem do tempo faz o homem caminhar para a morte mas esta passagem não se dá de modo absolutamente progressivo, uma vez que implica o retorno de estágios passados. A vida seria menos a presença da novidade e do inédito, e mais a repetição do passado com novos significados. Neste caso, o novo significado se articula com a dependência do herói épico para o ato mais primário da sobrevivência humana: o da alimentação. O enfraquecimento físico de Bolívar, acentuado até o ponto de aproximá-lo de um bebê, denuncia o ritmo temporal cíclico e desvenda a própria essência humana em sua impossibilidade de deter o tempo. Assim sendo, a passividade de Bolívar traduz o comportamento daquele que aceita o seu destino com estóica resignação. Em momento algum, a personagem deixa-se vencer pela desdita no presente. A depauperação física como indicativo da morte, portanto, ao mesmo tempo que revela Bolívar como partícipe da essência constituinte da natureza humana, revela-o um ser diferenciado, se considerarmos a firmeza moral e a dignidade com que as doenças são enfrentadas. O texto, da mesma forma que revela o homem que existe no herói, revela também o herói que existe no homem.

A integração ontológica entre Bolívar e os elementos componentes do cenário só é rompida quando ele se dá conta de que está prestes a morrer. Neste momento, todos os objetos componentes do cenário são alvo da observação da personagem e revelam uma existência independente da sua, existência com determinadas funções que serão desempenhadas mesmo depois da sua morte:

Examinou o aposento com a clarividência de quem chega ao fim, e pela primeira vez viu a verdade: a última cama emprestada, o toucador lastimável cujo turvo espelho de paciência não o tornaria a refletir, o jarro d'água de porcelana descascada, a toalha e o sabonete para outras mãos, a pressa sem coração do relógio octogonal desenfreado para o encontro inelutável de 17 de dezembro, à uma hora e sete minutos de sua tarde final." (p.266)

Apenas momentos antes de sua morte, Bolívar se dá conta dela. O ato de refletir com a "clarividência de quem chega ao fim" é determinante para a percepção da distância entre sua existência e a existência das coisas. Para se chegar à autêntica consciência de si, o outro é mediador necessário. A sensação que o faz pensar em si mesmo e em seu destino pessoal faz com que considere a existência daquilo que não é ele, por isso, a personagem precisa pensar a existência daquilo que resistirá à sua morte. Obviamente, Bolívar não poderia saber a hora exata de sua morte, o que acontece, neste excerto, é uma fusão entre o pensamento da personagem e a voz do narrador, resultado daquele processo chamado de "visão com" por Jean Pouillon (1974, p.16). No momento em que Bolívar percebe a morte, o narrador que, durante toda a narrativa se referiu a ela pode, enfim, unir seu conhecimento ao conhecimento da personagem. A percepção dolorosa da vida cumprida é indicada pela antropomorfização do relógio: "a pressa sem coração do relógio octogonal desenfreado". Ao final, e com a mesma dignidade com que aceitara a doença, Bolívar aceita a entrada numa condição que constitui a única eternidade para a frágil matéria humana: a de estar morto.

A frase final de Bolívar, ao saber da extrema gravidade de seu estado e da proximidade da morte, revela-nos o homem refém de um destino sem complacência: "Carajos – suspirou – Como vou sair deste labirinto?" (García Márquez, p.266) Se o labirinto pressupõe um complexo cruzamento de diversos caminhos, alguns dos quais não oferecem saída, pode-se dizer que a vida em curso pressupõe uma sinuosa estrutura labiríntica. Há diversas possibilidades de caminho que se cruzam, se comunicam, se fecham. A morte, no entanto, interrompe todos eles. A pergunta de Bolívar, portanto, não pode ser respondida. Qualquer possiblidade de resposta revelar-se-ia precária e questionável. A ausência de uma resposta definitiva dá lugar apenas para a certeza de que a vida é o caminho labiríntico para o mistério final da morte.

 

BIBLIOGRAFIA

GARCÍA MÁRQUEZ, G. O general em seu labirinto. Rio de Janeiro: Record. 2000.

HERÁCLITO. "Tudo é um". In: ABRÃO, Bernadette Siqueira (Org. e Red.). História da Filosofia. São Paulo: Nova Cultural. 1999.

MATA INDURÁIN, C. "Retrospectiva sobre la evolución de la novela histórica". In: SPANG, K. et al. (Ed.) La novela histórica. Teoria y comentarios. Barañain,U.N. 1995, p.13-63.

POUILLON, J. O tempo no romance. São Paulo: Cultrix. 1974.